Impor moda está fora de moda

As pessoas não aceitam mais padrões estéticos e querem se expressar por suas roupas, diz chefe da C&A

Do UOL, em São Paulo
Marcelo Justo/UOL e Arte/UOL
Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Espelho meu

O que vale hoje não é a moda impositiva, em que as marcas determinam o que usar. É a época da moda inclusiva, em que as pessoas se manifestam do seu jeito, diz o CEO da C&A, Paulo Correa, em entrevista na série UOL Líderes.

Ele fala sobre trabalho escravo no setor têxtil, as novas configurações das lojas C&A, pagamento da compra no próprio provador de roupas -sem fila-, consultas a consumidores para definir coleções e dificuldades econômicas e políticas.

A moda de cada um

UOL - Qual o papel da moda hoje?

Paulo Correa - Olhando como a sociedade está se comportando e olhando para a nossa essência, começamos a entender claramente que a moda do jeito que a gente conhece hoje -mais glamorosa e impositiva- está fora de moda.

A moda contemporânea, que é o que a gente vem trabalhando com mais força, é a moda inclusiva, a moda em que as pessoas, sem estereótipos, entendem que cada um tem o seu jeito de ser -independentemente de seu gênero, raça, credos, valores.

E cada um quer usar a moda para se expressar como pessoa, como indivíduo na sociedade. Eu sempre falo que a moda está presente na nossa vida na hora em que a gente nasce. Aquela manta que envolve o recém-nascido não é uma manta qualquer, é uma manta pensada, é um momento importante ali dos pais, das mães.

E em vários momentos da nossa vida a roupa tem um momento importante. Você vai casar, é o vestido, você vai fazer uma entrevista, é a roupa da entrevista, você vai fazer um batizado e há a roupa do batizado, a da formatura.

Os grandes momentos da vida da pessoa estão envolvidos pela moda. Com a dimensão digital e da sustentabilidade, esses grandes momentos vão trazendo para a sociedade uma necessidade de se expressar como pessoa: "este é o meu jeito".

Antigamente era mais questionado: "Será que esse jeito é certo ou não é?" Hoje em dia está cada vez existindo menos certo ou errado. Existe o seu jeito, do seu formato.

Acha que de fato a moda impõe padrões estéticos, chega a existir um prejuízo social por causa disso?

Hoje em dia a sociedade não está mais se deixando impor por esses padrões. A gente vê as pessoas se expressarem como indivíduos, cada um do seu jeito, e essa aceitação das diferenças entre as pessoas, seus gostos e desejos, acho que está cada vez maior.

Existem pontos de vista diferentes, isso faz parte. Mas, ao mesmo tempo, cada um está podendo ser mais verdadeiro ao longo do processo. A indústria da moda tem um formato tradicional, que foi concebido no século passado, das grandes casas dizerem quais são as tendências. E essas grandes casas também têm uma capacidade criativa enorme em que eles propõem ideias de design, etc.

Cada vez essas grandes casas estão entendendo que isso é hoje muito mais como proposta do que como imposição.

Você impor alguma coisa nos dias de hoje é, do meu ponto de vista, uma situação quase impensável. Com a disseminação da informação, com a internet, ninguém impõe, mesmo quem queira impor tem muita dificuldade. Esses dias estão contados para esses que ainda tentam.

Moda sem estereótipos

Conselho de clientes e pagamento direto no provador

UOL - Como toda a indústria, a sua vive de consumo. Como lidar com isso e ao mesmo tempo ter a preocupação de evitar consumismo e excesso de endividamento do cliente? 

Paulo Correa - Vou te falar uma filosofia que eu tenho. Na hora em que você abre uma porta de uma loja em qualquer lugar do mundo, o que você tem para oferecer tem que ser relevante. Quem decide a relevância não é você, é a sociedade. É ela que diz "me interessa" ou "não gostei".

O resultado financeiro é produto dessa relevância. Quanto menos relevante você for, mais agressivas têm de ser as campanhas comerciais: remarcações, ofertas. A oferta pela oferta é, na verdade, uma forma de mostrar qual é o valor que a sociedade dá ao seu produto.

Se tem de fazer ofertas o tempo todo, significa que há um descasamento entre aquilo que você acha que vale o seu produto e o que a sociedade acha de verdade.

E como fazer para conquistar o cliente?

De 15 em 15 dias, no mínimo uma vez por mês, eu sento com os clientes, com um grupo deles, sem saberem que eu sou o presidente. E a gente conversa. Eles vão, visitam as lojas e conversam sobre o que gostam ou não, o que está afligindo a vida dessas pessoas, que tipo de coisas estão procurando e não há; o que há, o que gostam mais.

Mais do que relatórios e apresentações, vejo o que as pessoas estão sentindo. Eu fico na loja o tempo inteiro e vejo o que estão gostando.

Temos também o que chamo do conselho fashion. São 2.000 clientes cadastradas que têm uma relação de conversas contínuas conosco. Chamo algumas pessoas do conselho fashion e mostro a coleção que vamos lançar em março e pergunto o que elas acham. 'Ah, não gostei disso, isso é horrível; isso é muito legal.' O que for considerado horrível é eliminado.

Às vezes elas opinam numa foto que vamos colocar numa loja, eu às vezes mando duas opções para elas escolherem. Acho que esse diálogo é o combustível da relevância. Se você está dialogando, ouvindo e prestando atenção, se está fazendo de fato, conseguindo traduzir isso que estão falando dos nossos produtos, o resultado é uma consequência.

As clientes do grupo da loja são escolhidas ali na hora ou existe uma pré-seleção?

Não, há uma pré-seleção, são consumidores de lojas de departamentos. Não necessariamente são clientes da C&A. Depende do foco que queremos. Às vezes queremos clientes que não sejam da C&A, para entender por que não são clientes.

As do conselho fashion são pessoas que têm relação com a C&A, que têm cartão ou que consomem com alguma frequência na C&A, que conhecem e entendem como funciona a C&A. E essas pessoas, uma vez cadastradas, a gente faz um acordo com elas. De tempos em tempos, participam de pesquisas conosco e são uma fonte de informação sensacional.

Isso é aberto para as pessoas se candidatarem?

Não é aberto, mas também não é fechado. A C&A é que procura os clientes, baseada nessas segmentações que a gente esteja procurando.

E as novidades tecnológicas, como pagamento direto no provador pelo aplicativo?

Temos um novo conceito de loja. É um formato um pouco menos segmentado, ele conta histórias. A gente chama de quartinhos, e cada quarto tem uma história, e você pode se identificar com algumas daquelas peças. E há outros quartos com os quais você também pode se identificar e misturar. É uma personalização na forma de se vestir.

Em 2017, havia umas 15 lojas assim, e há uma programação em 2018 de intensificar muito a reforma em outras lojas para criar essa ambientação. Uma grande parte dos nossos investimentos vai estar aí.

Outra parte bem importante é a fluidez que o digital permite na relação com os clientes. Hoje em dia você pode entrar no nosso site, comprar um produto e depois ir à loja retirar. Ou você consegue olhar no site se existe na loja que você quiser e ir retirar num período muito mais curto.

O aplicativo também facilita a vida: você está numa loja, gostou de uma peça e não tem do seu tamanho. Você pode ir ao aplicativo e comprar online. Vamos investir bastante nessa fluidez  digital para tornar a vida do cliente mais fácil.

A gente está fazendo experimentos como, por exemplo, pagar no provador. Em algumas lojas, acabou de se vestir, gostou da peça, você já pode pagar ali mesmo e ir para casa. Estamos testando para ver como os clientes recebem. Em 2017, havia só duas lojas, mas imagino que neste ano vai haver em um grupo maior de unidades.

A aceitação das diferenças

De olho em trabalho escravo

UOL - Tem sido frequente, em redes mundiais de moda, haver denúncias de trabalho semelhante à escravidão. Como encara a questão?

Paulo Correa - Temos uma série de iniciativas em sustentabilidade. Uma das dimensões de sustentabilidade são vidas mais sustentáveis. Precisamos ter a certeza de que na nossa cadeia de fornecimento, as pessoas que participam dela tenham condições dignas e justas.

Esses fornecedores, não só os donos, mas também os gestores, vêm aqui nas nossas instalações, a gente mostra para eles como é o processo, o que a gente aceita, como deveria ser e como eles fazem. A gente debate, faz mesas redondas discutindo desafios e soluções, compartilha soluções entre eles, fornecedores.

Esse compartilhamento também é um supermomento de aprendizado. Então eles voltam para lá e sabem quais vão ser as regras que vamos monitorar. Quando ele volta, ele sabe o que tem de fazer, e a gente vai de tempos em tempos à fábrica dele para verificar e questionar. Esse é um processo contínuo, temos de estar lá com eles juntos no processo.

Como saber que isso está sendo respeitado?

Estamos falando que o produto é uma forma de nos expressarmos para o mundo. Se você quer se expressar, você não pode ter uma mancha na sua expressão. Para termos certeza de que nosso propósito está acontecendo, fazemos uma série de processos nesse sentido há mais de 10 anos, processos bem sólidos e estabelecidos.

Somos líderes no mercado brasileiro nesse sentido. Isso começa primeiro com uma seleção de fornecedores. Para ser aprovado como fornecedor da C&A, suas oficinas são avaliadas. Essas oficinas são todas cadastradas. Temos um acordo: o fornecedor mostra quais são as oficinas, e não pode ter outra.

Se quiser ter outra oficina, tem de passar pelo processo, cadastrar e ver se está de acordo, senão não é permitido usar outra oficina.

Depois, uma vez aprovado, feito o contrato, essas são as regras do jogo, esses são os pontos que cada um tem de cumprir no nosso processo. E esses pontos são absolutamente explícitos: o tipo de pessoa, as condições de trabalho das pessoas, independentemente se é terceiro, tudo isso é absolutamente definido, e a gente assina o contrato.

Uma vez assinado esse contrato, fazemos um processo de capacitação. Há uma visita inicial em que a gente faz um diagnóstico da empresa e das oficinas que ela usa e aponta quais são os problemas, trocamos ideias e pedimos soluções para resolver.

E assumimos um plano de ação para esse acordo. Ao final desse período estabelecido, há outra visita. É um processo de clareza, de expectativas, de definição explícita de quais são esses requisitos, de treinamento e desenvolvimento e de monitoramento desses processos.

Isso consome quanto de energia e recursos?

Primeiro, todas as pessoas que fazem parte da companhia entendem e conhecem o processo. Eu tenho um setor específico com dezenas de pessoas para justamente fazer esse trabalho de capacitação e monitoramento da cadeia de fornecimento.

E todo o time de compras entende e sabe quais são as regras. O fornecedor que não atende aos requisitos não continua como fornecedor. É, como a gente chama aqui, "deal breaker". Se quebrou o contrato, já era.

Houve casos efetivos de cortar fornecedores por irregularidades?

No começo, sim. Hoje em dia, todo mundo sabe, todo mundo entende. Mas, no início do processo, houve momentos em que falamos que não ia ter condições, estávamos fazendo um plano de ação, mas infelizmente entendíamos que era uma decisão do empresário, do fornecedor, de não trabalhar naquele esquema. Então o contrato perdia o sentido, e a gente não continuava.

Vocês têm fornecedores estrangeiros, de China, Índia, Vietnã. Como essa verificação funciona? É a parte internacional da empresa que é responsável?

Sim, a organização internacional tem exatamente o mesmo processo, com estruturas lá no Oriente e na Europa que fazem exatamente o mesmo tipo de processo.

Clientes opinam nas coleções

A C&A é assim

  • Fundação

    1841 (no mundo), 1976 (no Brasil)

  • Funcionários diretos

    59 mil (no mundo), 15 mil (no Brasil)

  • Clientes

    1 milhão de clientes diários em lojas no Brasil

  • Lojas

    1.800 (no mundo), mais de 270 (no Brasil)

Nas cores, brasileiro gosta de "cheguei"

Quais as características do consumidor brasileiro de moda?

Paulo Correa - Comparado a outros países, tem um poder aquisitivo menor, mas ele gosta muito de moda, vestir é uma dimensão muito importante, e ele tem mais personalidade para se colocar nessa dimensão do vestuário.

Se você vai para a Europa ou EUA, é muito comum ver mais cores neutras, essas cores muitas vezes são quase uma impessoalidade, como se você conseguisse ficar invisível nesse sentido. Pode ser um estado de espírito em alguns momentos.

O brasileiro não é assim, o brasileiro gosta de cor, de falar: "cheguei, estou aqui". E é muito legal, muitas vezes, na cartela de cores daqui, a gente tem de considerar essas diferenças. E o Brasil é um país enorme, e há diferenças dentro do Brasil -Norte, Nordeste, Centro, Sul-, em termos de modelagem, preferência de cores.

E também há a dimensão climática. No Nordeste, os produtos com menos mangas, mais curtos, bermudas obviamente têm uma força muito maior do que no Sul do país, principalmente no inverno. Essas são as principais diferenças. Moda praia é uma coisa muito forte no Brasil, e é bem menos relevante fora do Brasil.

Que problemas o setor de moda enfrenta no Brasil?

O Brasil tem problemas de infraestrutura. Os transportes não ajudam. O mundo hoje está muito mais veloz, há um imediatismo muito grande. E é muito demorado termos uma infraestrutura totalmente dependente de estradas rodoviárias num país desta dimensão. Sair daqui de São Paulo ou do Rio e ir para o Norte e Nordeste pelo meio rodoviário é uma coisa lenta. Isso é uma história que precisa, de fato, evoluir muito neste país. Isso facilitaria o consumo nas diversas regiões. É um ponto bem relevante.

Outra coisa é a própria situação macroeconômica. Isso segura o investimento. Temos de investir e trabalhar junto com nossos fornecedores o tempo inteiro, porque eles têm muitas dificuldades e muitas barreiras como empreendedores. Seja acesso a crédito, tecnologia, desenvolvimento de pessoas. Tudo isso está na pauta desses fornecedores, e eles têm de estar trabalhando o tempo inteiro.

Se a gente não ajudar, eles não têm acesso a tantos canais. Ajudamos de diversas formas, seja em desenvolvimento de processos, para construir soluções melhores, compartilhar práticas, seja também nas dimensões financeiras muitas vezes, com financiamentos de curto prazo. Isso faz parte da nossa relação com eles.

Como a imprevisibilidade econômica e política do Brasil afeta o negócio?

Na C&A, temos uma cultura muito forte de que crise é um momento de oportunidade, é a hora de fazer o dever de casa, de fazer a casa ficar mais arrumada, mais organizada, e se preparar para o próximo ciclo de alta. Que vai acontecer, já havia sinais acontecendo em 2017, parece que estamos invertendo a curva e, se isso continuar em 2018, como deve, seria muito positivo.

Mas a crise não faz parte do nosso dia a dia. O que faz parte do nosso dia a dia são os clientes e as mudanças nas condições e nas preferências dele. Temos de estar muito ligados nisso. A crise em si a gente não tem uma atuação direta no curto prazo.

A nossa maior atuação é conseguir, de fato, movimentar a economia, conseguindo ter cada vez mais relevância para nosso cliente e atraindo seu interesse.

Tentamos não ficar muito impactados pelas dimensões macroeconômicas, porque, quando há um momento de crise, isso só traz energia ruim, não traz energia positiva para o negócio. O nosso negócio é emoção, viver o dia a dia das pessoas. Não podemos ficar nesse lugar baixo astral.

Quais os caminhos para uma carreira bem-sucedida?

Minha origem é de classe média baixa. Fui o primeiro da família a concluir uma faculdade. Falo isso para os meus filhos: sempre é possível recomeçar qualquer coisa. Você sempre pode se reinventar como profissional. Nunca é tarde para você se reinventar, sempre há uma oportunidade.

Mas a reinvenção só faz sentido se for focada nas suas paixões e nos seus interesses. Eu costumo dizer que quem corre atrás de cargo, corre atrás do vento. Porque o cargo é uma consequência do nível de relevância e impacto que você pode trazer na organização. E isso tem a ver com a sua capacitação, mas também com a forma como você consegue gerar esse impacto.

O sucesso tem a ver com a sua energia, com a sua paixão, com a sua vontade de fazer as coisas de um jeito diferente e não porque você está olhando para a torcida. Jogador que fica olhando para a torcida o tempo inteiro para ver se vão aplaudir ou não perde a jogada, não presta atenção ao jogo e acaba perdendo a bola.

O que eu daria de dica é uma coisa que falo para os meus filhos: prepare-se, invista em você, não é obrigação da empresa investir em você, é sua obrigação. Você é o CEO da sua empresa, chamada você. Você toma as decisões que parecem mais relevantes para você. Se acredita em você, tem que investir na sua empresa, em você mesmo.

Em segundo lugar, faça coisas que você goste de fazer, trabalhe com pessoas que você admire e goste. Não vai pelo rótulo, não joga para a torcida, joga para você, o resto acontece naturalmente. Talvez seja fácil para mim estar falando isso na posição que eu tenho hoje, mas não planejei estar aqui sentado onde estou hoje. Nenhum passo da minha carreira foi premeditado. O que foi premeditado foram os investimentos que eu fazia em mim.

Em algum momento, decidi largar tudo o que eu tinha, eu tinha um cargo bacana numa empresa muito legal, mas achava que precisava investir mais no meu conhecimento. Peguei tudo o que eu tinha acumulado naquele momento, arrumei uma dívida ainda e fui para o exterior fazer um mestrado. 

Aquilo ali abriu um monte de opções, um monte de conhecimento novo, que me permitiu fazer um segundo passo. Eu acredito muito nessa coisa do tente ser o melhor que você pode ser e não tente ter o cargo x ou y. Já vi muita gente na minha carreira se perdendo ou ficando infeliz. Às vezes até conseguem, mas ficam infelizes porque não estão fazendo aquilo de que gostam, aquilo em que acreditam, e se submetem porque não querem perder aquele status ou aquela situação.

Acho isso triste, a vida é muito curta, e a gente tem que se divertir o máximo possível. E ela é agora, não é amanhã. A vida é agora, e o amanhã vai ser consequência do agora.

Marcelo Justo/UOL e Arte/UOL

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