UOL - A mudança de rumo da Kroton em direção ao ensino básico está relacionada ao fato de o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) ter vetado a compra da Estácio no ano passado? Ficou mais difícil fazer negócios de ensino superior?
Mario Ghio Junior - É curioso porque a Kroton, na verdade, está voltando ao rumo que era o original. Ela era uma empresa essencialmente de educação básica. Por 32 anos ela esteve apenas na educação básica. Ela volta a esse segmento, mas sem deixar o ensino superior.
A partir da decisão do Cade, nós sabemos que alguma grande aquisição transformacional não é possível. No entanto, a companhia segue olhando ativos de crescimento orgânico ou inorgânico, que são ativos menores e mais regionais.
Mas ela segue o seu caminho de crescimento também com o novo marco regulatório, com a possibilidade da abertura de mais polos de educação a distância, que é uma vertente importante do ensino superior. Eu acho que há bastante caminho de crescimento.
Na educação básica nós vínhamos investindo, ainda que para um crescimento mais lento do que aquele que a Somos permitirá a partir da integração.
As mudanças que o governo fez no Fies também desestimularam o investimento no ensino superior?
A educação a distância (EAD) nunca teve Fies, apenas o ensino presencial. Então, em um momento em que há redução de expectativa de bolsas do Fies, naturalmente a educação a distância ganha mais foco.
Ainda há neste país muita gente que mora em cidades que não têm nenhuma oferta de ensino superior. Então, a possibilidade de espalhar mais polos de EAD e cobrir territorialmente o país é importante.
Na educação presencial, mudou um pouco a nossa maneira de oferecer cursos. Hoje, oferecemos cursos que tenham uma mensalidade mais alta. Se nós não temos alunos oriundos do Fies como tínhamos antes, nós precisamos repor essa receita, e a estratégia é utilizar um portfólio um pouco mais sofisticado.
Por exemplo, em quase todas as unidades presenciais, cursos das áreas de saúde e engenharia ganharam um percentual maior no mix total de alunos. Em hipótese alguma [a mudança do Fies] desestimulou o investimento, mas ela certamente mudou um pouco a estratégia desse investimento, a alocação.
Então, além de engenharia e saúde, há um foco maior em educação a distância?
Sim. A educação a distância tem uma série de características importantes, até do próprio contratante. Há 20 anos, existia uma preocupação dos futuros empregadores que um aluno formado por educação a distância teria, eventualmente, uma qualidade menor do que um aluno do presencial. Hoje, essa é uma questão superada, e a educação a distância permite uma educação mais flexível.
Um exemplo interessante: nós temos 261 mil alunos se formando na Kroton para serem futuros professores. Grande parte são mulheres, casadas e que não poderiam frequentar uma faculdade presencial porque têm seus filhos, seus maridos, mas podem frequentar um curso a distância, seja pela acessibilidade financeira do curso ou pela facilidade e flexibilidade. Então, a educação a distância é um produto que tem muita demanda.
A Saber foi criada em abril. Qual o motivo dessa reorganização da empresa?
A Saber é uma empresa que tem formalmente poucos meses, mas que tem 52 anos de história. Ela é uma holding que reúne os ativos de educação básica da Kroton, que foi de onde a Kroton nasceu. A companhia entendeu que, após um trabalho de dois anos, deveria voltar a investir na educação básica para crescimento.
A Saber foi criada dentro desse contexto, reunindo e otimizando os ativos de educação básica, depois iniciando a aquisição de escolas de referência e, mais recentemente, a aquisição do grupo Somos, que é a maior empresa de educação básica brasileira.
A criação da Saber tem relação direta com a compra da Somos Educação?
A criação da Saber não tem relação com a aquisição da Somos. Inclusive, a Saber foi anunciada antes de nós conseguirmos negociar a Somos. A Saber tem seu projeto de educação, que deve continuar, com alguns desvios, em relação ao que é o projeto da Somos em escolas.
Nós queremos ter várias escolas de referência no Brasil, escolas de qualidade absolutamente fora da curva e sobre as quais nós possamos abrir novas unidades. Essa é a escola típica da Saber.
Escolas de excelência precisam de mais unidades. Existem escolas muito boas no Brasil. Mas, muitas vezes, elas estão centralizadas em um único ponto no município, e as famílias não podem levar seus filhos até lá. Parte do nosso projeto é levar essa escola de referência para os novos bairros ou para as cidades próximas, onde as famílias desejem essa marca.
Parte importante do nosso projeto é trazer o bilinguismo como uma função central da escola. Nós entendemos que é incômodo para as famílias que os filhos tenham que ser transportados o tempo todo para lá e para cá, vai para o inglês e volta.
As famílias querem que os filhos tenham uma permanência maior na escola, mas uma permanência com significado, que desenvolvam a fluência no inglês e também tenham experiência com o esporte.
Em relação à linha pedagógica, a Saber pretende preservar o formato das escolas que forem adquiridas ou vai adotar algum tipo de padronização educacional?
Nós entendemos que uma escola tem dois alicerces centrais: um é pedagógico, que não pode ser mexido nunca. A escola que nós miramos é uma escola especial, e ela virou especial porque tem pessoas especiais, metodologias acadêmicas especiais, e essas serão sempre mantidas.
Para este pedaço, o nosso desafio é como replicar isso em novas unidades. O que significa que aquele diretor especial da primeira escola precisa formar o próximo diretor especial da segunda escola, e assim por diante. A mesma coisa com os professores.
Agora, toda escola também tem uma área administrativa, que nunca foi, na educação brasileira, a especialidade da escola. Nós podemos contribuir muito aqui. Podemos integrar uma série de processos. Não me parece que faça muita diferença para o pai se ele recebe um boleto do banco A ou do banco B.
Mas a coordenadora que fala com ele sobre o filho, sobre o comportamento e sobre o desempenho, essa é absolutamente fundamental que seja mantida dentro do projeto.
A deficiência do sistema público de ensino fundamental e médio, de certa forma, é uma vantagem para a sua empresa. Como lidar com isso? A Saber tem algum projeto de melhoria do ensino público?
Temos sim. É uma vantagem em termos, né? Porque talvez a maior ineficiência do sistema público seja o abandono maciço do ensino médio. Dos alunos que chegam aí, mais da metade vai embora. E se vai embora no ensino médio, não pode ir para o ensino superior.
Nós somos, talvez, tão vítimas como toda a sociedade é, de uma escola pública que precisa melhorar. Posto isso, temos um papel muito grande em ajudar a escola pública brasileira a melhorar.
Nós poderíamos pensar que uma boa escola tem recursos pedagógicos, como livros, como sistema de ensino. Isso nós fazemos. Que uma boa escola tem bons professores. Isso nós preparamos. Que uma boa escola tem lideranças escolares, que nós também formamos. Que uma boa escola tem que ter um processo de avaliação contínua, que nós temos cotidianamente.
Então, acreditamos que a escola pública que conseguir articular tudo isso vai oferecer uma educação melhor, os alunos vão conseguir terminar o ensino médio e isso vai favorecer todos os grupos de ensino superior e as universidades federais também.