Energia que vem do céu

Produção de energia a partir do sol e dos ventos avança no Brasil. Como isso afeta a economia e o que esperar?

Fábio Rodrigues Colaboração para o UOL, em São Paulo
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De vento em popa

Tem sido uma daquelas histórias "apesar da crise" que vira e mexe dão as caras no noticiário. Nos últimos anos, as fontes de energia solar fotovoltaica (produzida a partir do sol) e eólica (a partir do vento) nadaram contra a correnteza e registraram avanços de encher os olhos.

Apenas em 2017, a capacidade instalada em energia eólica cresceu 28,1%, atingindo a marca de 12,8 gigawatts (GW) distribuídos entre pouco mais de 500 parques de geração. É o equivalente a 8,1% de toda capacidade do Brasil. Os dados são da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão do governo responsável por estudos sobre o setor energético. 

No caso da energia solar, o salto foi ainda mais impressionante: 4.470% em apenas um ano. No começo de 2017, eram somente 21 megawatts, que, na virada do ano, estavam perto do primeiro gigawatt. Esse número, porém, deve ser visto com moderação: a energia solar continua na lanterna do sistema nacional de geração, com apenas 0,6% da potência instalada no Brasil.

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Dos grandes parques...

Mais de metade do salto da energia solar veio de apenas dois empreendimentos, inaugurados em setembro:

- a usina de Nova Olinda (na foto), localizada no município de Ribeira do Piauí (PI);

- e a usina de Ituverava, que fica em Tabocas do Brejo Velho (BA).

Juntas, elas têm potência de 546 MW, o suficiente para abastecer quase 570 mil casas. Construídas e operadas pelo grupo italiano Enel, que investiu US$ 700 milhões nos projetos, são os dois maiores complexos de seu tipo na América do Sul.

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

...aos pequenos lares

Além dos projetos de grande porte, a energia solar também vem se popularizando nas casas, como uma opção para diminuir a conta de luz.

Segundo a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), na virada de 2016, o Brasil contava com 7.000 unidades instaladas. Um ano mais tarde, eram mais de 16 mil.

Um dos motivos que ajudou foi a queda no custo dos equipamentos. Segundo o Atlas de Energia Solar, o preço caiu 90% (os "módulos" por watt instalado passaram de US$ 3,9 para US$ 0,39).

Natureza favorece o Brasil

É até uma vocação natural para o Brasil. Segundo o Atlas do Potencial Eólico Brasileiro de 2001, seria possível instalar até 143,5 GW em geradores de energia eólica no país.

Para ter uma ideia do que isso representa, hoje o país é capaz de produzir (incluindo as hidrelétricas) cerca de 150,3 GW, segundo o Balanço Energético Nacional de 2017. Ou seja: seria possível praticamente dobrar esse número só com vento.

Vento rápido e constante

Nossos ventos se diferenciam não somente por sua velocidade, mas também por sua regularidade incomum. Ventos constantes aumentam o rendimento dos aerogeradores.

Essa é uma relação expressa pelo chamado "fator capacidade", que, grosso modo, diz o percentual de tempo em que os equipamentos conseguem gerar eletricidade. Enquanto a média mundial é de 25%, no Brasil chega a 50%.

Os ventos brasileiros são os melhores do mundo.

Carlo Zorzoli, presidente da filial brasileira da Enel

Sol a pino

Em termos de energia solar, o país também não faz feio.

A edição mais recente do Atlas Brasileiro de Energia Solar informa, por exemplo, que no local menos ensolarado do Brasil é possível gerar mais eletricidade do que no ponto mais privilegiado da Alemanha --terceiro maior produtor global, atrás do Japão e da China. 

Essa capacidade varia de uma região para outro do Brasil. O "filé mignon" abrange o interior do Nordeste e o norte de Minas Gerais (no mapa, é a região de cor laranja mais intensa).

Renda e emprego no sertão

Pequenos agricultores do Nordeste descobriram no vento uma inesperada e bem-vinda fonte de renda complementar

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Israel Joaquim de Carvalho, 34

Caçula de uma família de três homens, o agricultor recebeu seu pedaço de terra do pai. Há quase cinco anos, tem perto de casa duas torres para gerar energia eólica e ganha cerca de R$ 3.500 por mês. Com o dinheiro, diz que espera poder ficar mais próximos dos pais, que moram longe e já estão com idade avançada, e dar uma educação melhor para os três filhos. "[Primeiro] vai beneficiar quem tem aerogerador, mas, indiretamente, vai beneficiar as outras pessoas também". Apesar da renda extra, diz que planeja continuar plantando mandioca.

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Maria Otília de Oliveira, 71

Agricultora e agente de saúde, ela cuida da casa e toma conta da mãe e de duas sobrinhas. Arrenda terra há quase 5 anos. Como os equipamentos precisaram ficar no local onde estava sua casa, recebeu uma indenização e construiu uma casa nova, maior e mais confortável. "No começo eu passei muita raiva [por causa da mudança de casa], mas melhorou a morada. Até a recepção do celular melhorou [risos]". O aluguel da terra para instalar três turbinas rende R$ 5.000 por mês. Com o dinheiro, diz que quer incentivar as sobrinhas nos estudos.

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Média de R$ 2.500 por família a cada mês

Pelas contas da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), já são mais de 4.000 famílias que arrendam (alugam) parte de suas terras para a instalação de geradores de energia eólica.

Em troca, essas famílias ganham uma parte das receitas geradas com a venda da eletricidade. A bolada se aproxima dos R$ 10 milhões, o que dá uma média de R$ 2.500 por família a cada mês.

Como a instalação dos geradores não chega a inviabilizar a produção agropecuária, os produtores rurais podem continuar suas atividades normalmente.

Ir aonde o melhor vento está

Os arrendamentos não são caridade. Eles fazem sentido econômico. Uma companhia eólica tem que ir, literalmente, onde o vento a leva.

"A gente depende do melhor vento. É isso o que nos dá competitividade", diz Lucas Araripe, diretor de projetos da empresa Casa dos Ventos (CDV), uma das principais desenvolvedoras de projetos de geração eólica no mercado.

As melhores jazidas de vento estão justamente nas regiões mais carentes, onde as terras valem muito pouco.

Lucas Araripe, diretor de projetos da Casa dos Ventos

Com projetos instalados em 10 municípios distribuídos entre Bahia, Ceará, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte, a Casa dos Ventos vem lidando com a realidade dos sertanejos há mais de uma década.

Segundo Araripe, comprar as terras até seria uma possibilidade, mas nem sempre é uma alternativa prática convencer as pessoas que estão instaladas ali há tanto tempo. "Comprar acaba ficando muito complexo, então a gente analisa caso a caso e tenta ir na direção do que os proprietários querem fazer."

Bruno Santos/ Folhapress Bruno Santos/ Folhapress

Renda que movimenta o comércio das cidades

As hélices que geram energia a partir dos ventos estão transformando a paisagem do semiárido brasileiro e a realidade de alguns dos rincões mais carentes do país.

Segundo Lucas Araripe, diretor da empresa Casa dos Ventos, o arrendamento acaba sendo a principal renda para muitas famílias. E não afeta só aqueles que arrendam suas terras.

Essa renda extra dinamiza a economia local. Ela alimenta pequenos negócios como a padaria ou a farmácias local.

Lucas Araripe, diretor de projetos da Casa dos Ventos

A energia eólica está trazendo desenvolvimento econômico em regiões do semiárido que tinham pouca oportunidade econômica.

Elbia Gannoum, presidente da ABEEólica

O dinheiro não é o único benefício. As propriedades precisam estar com a documentação em dia antes de poder fechar os contratos de arrendamento. Por isso, é feito todo um trabalho preliminar de regularização.

Não se pode ignorar também o efeito dos empregos gerados. Na região da Chapada do Araripe, no Piauí, a empresa Casa dos Ventos instalou seis complexos eólicos, o que atraiu novos negócios.

"Na operação temos 20 pessoas, mas também temos fabricantes de peças que se instalaram para fornecer equipamento e serviços. Isso movimenta alimentação, hotelaria, aluguel de equipamentos etc.", diz Araripe.

Tenha sua própria 'usina'

Mudanças na regulação introduzidas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) ajudaram a aproximar o consumidor das energias renováveis. Por exemplo, há dois anos, foi liberado o "autoconsumo remoto".

Você gera sua energia num local, injeta no sistema e pode consumir em outro, desde que ambos estejam dentro da área de uma mesma distribuidora.

Rodrigo Sauaia, da Absolar

Isso libera os projetos solares de uma amarra importante: a limitação de espaço para instalar os painéis. Quem tem uma área grande disponível, por exemplo em um sítio, pode investir em um sistema maior e mandar essa energia para abastecer sua casa principal ou negócio.

Condomínio solar

É possível, por exemplo, fazer parte de "condomínios solares": sistemas de geração compartilhada que atendem vários consumidores de uma vez só.

"[Os clientes] criam uma cooperativa para investir em um sistema de geração onde cada um dos cooperados é dono de uma ou mais cotas", diz Rodrigo Sauaia. "Em vez de um 'sisteminha' pequeno, tenho a vantagem de uma escala maior, o que reduz meu custo de investimento."

Em dezembro, entrou em operação a primeira fazenda solar. Instalada e operada pela Órigo Energia num terreno de 15 hectares (cerca de 21 campos de futebol) em João Pinheiro (MG), a nova planta de 5 MW trabalha com um modelo de assinaturas que permite aos consumidores "alugarem" partes de uma usina solar. A empresa investiu cerca de R$ 5,5 milhões para viabilizar o projeto.

"Para os clientes, a economia [na conta de luz] pode chegar a 10%", diz o CEO da Órigo, Surya Mendonça. O foco da empresa são clientes comerciais de pequeno porte, para quem faria pouco sentido investir em energia solar por conta própria. 

Fazenda solar pronta em três meses

Enquanto usinas de grande porte têm um prazo de desenvolvimento de alguns anos, projetos de menor porte de energia distribuída podem ser completados mais rapidamente. "Consigo implantar uma fazenda solar em apenas 3 meses", diz. "Além disso ter a geração mais pulverizada é bom para a rede de distribuição."

Segundo o executivo, a meta da companhia é chegar a 100 fazendas solares nos próximos três anos, somando 500 MW em potência instalada e atendendo até 50 mil clientes.

Alternativa para períodos de seca

A produção de energia a partir dos ventos tem sido uma alternativa à energia produzida a partir da água. Uma boa pedida em tempos de seca e com os reservatórios das hidrelétricas em níveis alarmantes

No Nordeste, que concentra cerca de dois terços da potência eólica instalada no país, não é raro que a energia dos ventos atenda a maior parte do consumo. O recorde foi registrado em 14 de setembro, quando 64% da energia consumida pelos nordestinos veio dos ventos.

Nacionalmente, o número é bem menor. Segundo os dados mais recentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), de agosto a outubro as usinas eólicas atenderam acima de 10% do mercado. Com exceção das hidrelétricas e das térmicas a gás ?cuja soma representa cerca de 70,5% da oferta?, essa foi a única outra fonte com dois dígitos de participação ao longo desse período, um feito.

A [energia] eólica está salvando o Brasil de um racionamento.

Élbia Gannoum, presidente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica

Venta mais quando chove menos

Há uma relação de sinergia entre as fontes hídricas e eólicas. O período mais seco é precisamente o que tem melhores ventos. "A eólica gera mais no período de seca, que é quando tem o maior risco de abastecimento na matriz elétrica brasileira [dominada por hidrelétricas]", diz Lucas Araripe, da Casa dos Ventos (CDV).

A relação entre a baixa umidade do ar e a qualidade dos ventos também explica porque o Nordeste concentra a maior parte dos projetos na área. "Isso é positivo porque a região não tem vocação para a energia hídrica ou a partir de biomassa", afirma.

Raimundo Paccó/Framephoto/Estadão Conteúdo Raimundo Paccó/Framephoto/Estadão Conteúdo

Anos de investimento

Esse processo não aconteceu da noite para o dia. Foram anos de investimentos e organização de mercados, um esforço que está amadurecendo agora.

O primeiro megawatt de energia eólica entrou em operação em 1994, mas foi só na última década que as coisas realmente engrenaram, com um crescimento acumulado entre 2007 até 2016 beirando os 4.000%.

"Apesar de todo o apelo socioambiental da energia eólica, o que realmente importa é que ela é financeiramente competitiva. Faz todo sentido do mundo investir nela do ponto de vista estritamente econômico", afirma Lucas Araripe, da empresa Casa dos Ventos.

Em leilões de energia feitos pelo governo desde 2009, foram 650 projetos de energia eólica arrematados. O segundo lugar coube às termelétricas com 187 contratações.

Essa é uma história que parece estar se repetindo --com alguns anos de atraso, mas em marcha acelerada-- com a energia solar.

O primeiro leilão que arrematou projetos de energia eólica aconteceu no final de 2009 e as contratações vêm se repetindo de forma mais ou menos regular desde então. Isso permitiu que a cadeia se estruturasse no país.

Segundo Élbia Gannoum, presidente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), o grosso do parque industrial que vem dando suporte à expansão da energia eólica no país se instalou entre os anos de 2013 e 2014. "Cerca de 80% dos equipamentos que usamos é nacional. Não ficamos à mercê do câmbio [dólar]."

Domínio chinês nos painéis solares

Ao contrário da eólica, no caso da energia solar a cadeia ainda não está tão bem estruturada e enfrenta forte competição de fornecedores internacionais. Os chineses praticamente dominam o mercado de painéis.

"A competitividade dos [fabricantes de painéis solares] chineses é praticamente imbatível", diz Carlo Zorzoli, da italiana Enel. Mesmo assim, os painéis representam 30% do custo de uma usina solar, o que significa que os outros 70% ainda estão em aberto, e o Brasil pode ser competitivo nesses elos.

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress

Veio para ficar ou é voo de galinha?

Com tanta coisa favor, chega até a ser difícil ver como as perspectivas possam desandar. Acontece que o risco é bastante real.

Até agora, o setor passou ao largo da crise que fez a economia brasileira sangrar em 2015 e 2016. Isso porque a maior parte dos projetos mais substanciais são contratados com anos de antecedência. Os projetos que serão entregues este ano foram leiloados em 2015.

Porém, a crise fez cair o consumo de energia, e o governo acabou cancelando os leilões que estavam previstos para 2016. A situação só normalizou-se em dezembro, quando houve dois leilões --um com entregas para 2021 e o outro, para 2023-- que arremataram 574 MW de energia solar e 1,4 GW de eólica.

Mesmo um pouco mais aliviado em relação ao futuro, está claro que há um período de vacas magras a caminho.

O impacto deverá ser mais duramente sentido pelo setor solar, que tem menos gordura para queimar. "Teremos um abismo depois de 2019, quando terminam as entregas dos projetos que já estão em desenvolvimento. Deixar a cadeia produtiva parada por um ano inteiro teria um impacto muito ruim e pode até inviabilizar investimentos", diz Rodrigo Sauaia, da Absolar.

Para ele, esse tipo de "voo de galinha" pode desestruturar o segmento em seu nascedouro. "Hoje estamos colhendo frutos do que semeamos entre 2012 e 2015. Para seguir nesse desenvolvimento, temos que continuar semeando."

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