Crise mundial faz 10 anos

Após escapar de 2008, Brasil entra em recessão, sofre para melhorar e tem menos força se houver nova crise

Mariana Bomfim Do UOL, em São Paulo
Reuters

Mauro Miranda se lembra do choque ao acordar com a notícia de que o Lehman Brothers, banco norte-americano onde ele havia trabalhado até três meses antes, havia falido. "Já se sabia que a crise no mercado financeiro era grave, mas ninguém imaginava que a situação chegaria a esse ponto”, afirmou.

Era 15 de setembro de 2008, e o assombro do ex-operador do banco diante da decisão do governo dos Estados Unidos de deixar que o banco quebrasse se reproduziu nos mercados financeiros do mundo todo. Miranda havia saído da instituição junto com metade dos funcionários do seu andar, em uma das últimas levas de demissões antes da falência.

Nos próximos dias, meses e anos, a crise financeira, hoje chamada de Grande Recessão, se alastraria pelo mundo todo, levando países a pedir socorros bilionários para não quebrar. Trabalhadores foram demitidos, aposentados viram sua renda cair, jovens ficaram sem emprego e famílias perderam suas casas.

Nos dez anos da quebra do Lehman Brothers, o UOL relembra o que causou a crise e as ações tomadas pelo Brasil para amenizá-la. Para especialistas, as medidas funcionaram na época, mas decisões tomadas depois originaram a maior recessão da história do país.

Lá (nos EUA), a crise é um tsunami. Aqui, se ela chegar, vai ser uma marolinha

Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente, três semanas após a quebra do Lehman Brothers

Associated Press Associated Press

Brasil reage à crise e aposta nos gastos públicos

Embora a crise tenha prejudicado o Brasil, sobretudo devido a uma queda abrupta nas exportações, a previsão do ex-presidente não passou muito longe da realidade naquele momento (mais tarde, o país enfrentaria sua maior recessão -leia mais abaixo).

O governo rapidamente montou um gabinete de crise e, seguindo uma política de aumento dos gastos públicos, que também foi adotada em outros países, injetou dinheiro na economia. 

Ações contra a turbulência

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Aumento dos empréstimos via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e financiamento para exportações

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Corte de impostos de alguns setores industriais, como carros e eletrodomésticos, para estimular o consumo das famílias

Fátima Meira/Futura Press/Folhapress Fátima Meira/Futura Press/Folhapress

Banco Central oferta crédito para grandes bancos comprarem a carteira de bancos menores. Bancos públicos podem comprar fatia em privados sem licitação

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Em 2009, em sintonia com outros bancos centrais, BC inicia um ciclo de corte na taxa básica de juros, a Selic, que estava em 13,75% ao ano

Lula exagerou quando falou em 'marola', mas é verdade que o país foi pouco afetado pela crise. As políticas fiscais funcionaram e, além disso, somos uma das economias mais fechadas do mundo

Carlos Braga, professor associado na Fundação Dom Cabral e ex-diretor do Banco Mundial

Divulgação Divulgação

Para o ex-operador do Lehman Brothers Mauro Miranda, também ajudou o Brasil a resistir à crise o fato de o sistema bancário do país ter estado menos exposto. “O Brasil não trabalhava tanto com os produtos financeiros que estavam no centro da crise porque nosso setor bancário não tinha necessidade de produtos tão sofisticados”, disse o hoje presidente da filial brasileira da CFA  Society, entidade que credencia profissionais de investimentos.

O fato é que o governo conseguiu amortecer o impacto da crise, e o PIB (Produto Interno Bruto) encolheu apenas 0,13% em 2009, desempenho melhor que o dos EUA (-2,78%) e que a média mundial (-0,15%). Já no ano seguinte, a economia decolaria, crescendo 7,5%.

Celso Junior/Estadão Conteúdo Celso Junior/Estadão Conteúdo

Da alta de 7,5% no PIB à maior recessão da história

Como um país que parecia ter escapado quase ileso da crise mundial acabou entrando em recessão alguns anos depois?

Para alguns analistas, o problema foi o governo não perceber, no fim do governo Lula e sobretudo no mandato de Dilma Rousseff, que era hora de “virar a chave” e mudar a política econômica.

Houve um erro de diagnóstico. O Brasil deveria ter começado a reduzir os gastos públicos já em 2010 para que as contas voltassem ao nível pré-crise
Fernando Botelho, professor da economia na USP (Universidade de São Paulo)

A dívida pública bruta do governo, que era de 56% do PIB no final de 2008, avançou para 59,2% um ano depois e continuou subindo. Em julho de 2018, estava em 77% do PIB.

Com o desequilíbrio das contas públicas, o país chegou à grave recessão de 2015/2016, quando o PIB encolheu mais de 7%, queda muito pior que a registrada no auge da crise financeira mundial.

"Somada a uma estratégia aplicada desde 2003, de expansão dos salários muito acima do crescimento da produtividade, a situação fiscal ficou insustentável", disse Braga. 

O aumento do salário mínimo impacta as contas do governo porque as aposentadorias e pensões pagas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) estão atreladas a ele. 

A “última facada” na economia, na opinião de Botelho, foi iniciar um novo ciclo de corte de juros, no governo Dilma, mesmo com as expectativas indicando aceleração da inflação. 

De modo geral, o BC usa a taxa de juros para controlar a inflação. Quando ela está alta, o banco sobe os juros para reduzir o consumo e forçar os preços a cair. Quando ela está baixa, o BC derruba os juros para estimular o consumo.

Medidas que elevaram o déficit do país nos governos Lula e Dilma

Marcelo Justo/Folhapress Marcelo Justo/Folhapress

Governo intensifica a política de desonerações (isenções de impostos) para diversos setores da indústria

Efe Efe

Bancos públicos despejam dinheiro em algumas empresas escolhidas para serem "campeãs nacionais", como JBS e Oi

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Em 2011, mesmo com a inflação acelerando, BC inicia novo ciclo de redução da taxa de juros, que estava em 12,5% ao ano

Fabio Braga/Folhapress Fabio Braga/Folhapress

Recessão não é culpa do gasto público, diz economista

O economista e professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo disse concordar que o aumento do endividamento público ajudou a colocar o país na trajetória que levaria à recessão de 2015 e 2016.

Mas, segundo ele, a dívida pública não subiu por causa dos gastos do governo, e sim porque o BC começou um novo ciclo de alta dos juros a partir de 2013, culminando com uma taxa de 14,25% em meados de 2015.

Quando você dá um choque de juros na economia, a dívida pública dá um salto. E as empresas, que já estavam faturando menos com a redução da atividade econômica, também ficam mais endividadas
Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Unicamp

Os juros estão relacionados à dívida pública na medida em que o governo, para se financiar, vende títulos. Os ganhos de quem compra parte desses títulos estão atrelados aos juros. Quando a Selic sobe, o governo gasta mais dinheiro para pagar os donos dos títulos.

Além disso, a Selic é uma taxa de referência para a economia como um todo. Bancos costumam subir ou reduzir os juros para financiamentos de empresas ou famílias de acordo com o movimento da taxa básica.

Ajuste fiscal 'fanático'

Para Belluzzo, o aumento dos juros, junto com cortes nos investimentos públicos, explicaria como o Brasil acabou caindo no buraco. 

Foi um erro fatal achar que você podia dar uma pancada na economia. E o ajuste fiscal, proposto de maneira fanática pelos analistas de mercado como se fosse a grande solução, só serviu para piorar o problema
Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Unicamp

O economista se refere ao corte nos gastos públicos promovido pela ex-presidente Dilma no início do seu segundo mandato, conduzido pelo novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Vindo de um banco, Levy era visto como favorável ao mercado. 

A disparada das tarifas, sobretudo a da conta de luz, já em 2015, teria agravado a recessão ao esmagar ainda mais o orçamento das famílias. 

Para se recuperar, disse ele, o Brasil precisa retomar os investimentos públicos. “Há estudos mostrando que cada R$ 1 em investimento público gera quase R$ 2 de renda. Não tem como o país crescer sem esse pilar.”

Se houver nova crise mundial, país está mais vulnerável

Ainda que as explicações sejam divergentes, o fato é que decisões tomadas no rescaldo da crise financeira de 2008 ajudaram a lançar o país em uma recessão profunda, da qual ele ainda tenta se recuperar. Em 2017, o crescimento do PIB foi de apenas 1%.

Além de criar um grande desafio para o próximo presidente, a situação do Brasil faz com que ele esteja, hoje, muito mais vulnerável aos efeitos de novas crises mundiais.

“Nós temos alguns instrumentos para lidar com crises, como as reservas, que podem ser usadas para evitar um problema de dívida externa, e a taxa de juros, que tem espaço para subir”, disse Braga.

Mas as consequências de uma nova crise hoje seriam muito mais graves porque ela adicionaria mais estresse a uma economia que ainda está se recuperando de uma recessão
Carlos Braga, professor associado da Fundação Dom Cabral e ex-diretor do Banco Mundial

O endividamento do país, segundo Botelho, restringe as opções de reação do governo. “Se houver uma nova crise daquele tamanho, não haverá espaço para expansão dos gastos públicos, como a que fizemos em 2008”.

Entenda o que causou a crise financeira de 2008

O crédito fácil e a disseminação de um investimento "podre" pelo mundo todo estão na raiz da crise financeira de 2008.

Por volta de 1998, os bancos dos EUA começaram a emprestar dinheiro a muita gente que não tinha como pagar.

Mesmo quem estava desempregado e não tinha renda nem patrimônio conseguia ser aprovado pelo banco para receber um financiamento. E poderia dar a própria casa como garantia para vários empréstimos.

Esse tipo de crédito era conhecido como “subprime” (de segunda linha). O volume de financiamentos desse tipo era gigantesco.

CDOs e calote

Os bancos passaram, então, a misturar essa dívida de alto risco (com pouca chance de ser paga) com dívidas de baixo risco (de clientes com bom histórico de pagamento) e montar vários pacotes, as chamadas CDO (obrigações de dívida com garantia, na sigla em inglês).

Eles vendiam as CDOs para investidores do mundo todo, sobretudo na Europa. Quando os norte-americanos que tomaram os empréstimos pagassem o valor devido, o dinheiro iria para quem comprou a CDO, com juros.

Os compradores eram levados a acreditar que estavam fazendo um ótimo negócio, porque os juros eram altos.

Eles não sabiam exatamente que tipo de dívida havia dentro da CDO que estavam comprando, mas as agências de classificação de risco (Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s), depois criticadas por seu papel na crise, garantiam que eram investimentos de alta qualidade.

O problema é que os devedores não pagaram suas dívidas. Como essas dívidas estavam nas mãos de bancos e fundos de investimentos do mundo todo, houve um efeito dominó no mercado.

Segunda-feira negra

Em 15 setembro de 2008, marco da crise, um dos bancos de investimentos mais tradicionais dos EUA, o Lehman Brothers, foi à falência, e as Bolsas do mundo todo despencaram. A data ficou conhecida como segunda-feira negra.

Em seguida, outros bancos anunciam perdas bilionárias. Foram meses de muita instabilidade no mercado.

Saiba mais: filmes e documentários contam a história da crise

  • "A Grande Aposta" (2015)

    Ganhador de Oscar, conta a história real de investidores que previram a crise do mercado de hipotecas e faturaram apostando contra o mercado

    Imagem: Divulgação
  • "Trabalho Interno" (2010)

    Também indicado ao Oscar, o documentário explica a crise mostrando o lado obscuro de Wall Street e suas relações com políticos e intelectuais

    Imagem: Divulgação
  • "Grande Demais para Quebrar" (2011)

    Centrado no então secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, o filme mostra os bastidores das negociações que culminaram com a quebra do Lehman Brothers

    Imagem: Reprodução
  • "Os Últimos Dias do Lehman Brothers" (2009)

    Retrata as tentativas dos executivos do Lehman Brothers de vendê-lo ao Bank of America ou ao Barclays para evitar a falência

    Imagem: Reprodução
  • "Margin Call - O Dia Antes do Fim" (2011)

    Em alusão ao Lehman Brothers, o filme mostra um analista de um banco de investimentos que descobre que a instituição está prestes a quebrar

    Imagem: Divulgação
  • "A Grande Virada" (2010)

    Conta a história de profissionais bem sucedidos que são demitidos por causa da crise e, de uma hora para outra, enfrentam diversas dificuldades

    Imagem: Reprodução

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