Quatro anos depois

A Copa de 2014 não acabou para famílias de mortos ou para gente atingida por remoções em obras do Mundial

Bruno Freitas e Karla Torralba Do UOL, em São Paulo

A maioria da população brasileira ficou decepcionada com o desfecho da seleção na Copa de 2014. Mas a passagem do Mundial da Fifa pelo país impactou um grupo menor de cidadãos de forma muito mais contundente. Gente que teve a rotina violentada pelo planejamento do evento.

Sim, teve Copa no Brasil. Mas, quase quatro anos depois da festa do futebol, ainda é possível ver famílias chorando pelos mortos em obras do Mundial. Ainda existem pessoas lamentando a perda de suas casas. E até mesmo gente na incômoda indefinição sobre o local de moradia, vivendo em condições impostas pela organização atrapalhada do evento. Todas essas pessoas são integrantes da turma dos "sem ingresso", aqueles sem convite para a celebração colorida da Fifa.

UOL visitou personagens que ficaram para trás no noticiário de Copa, cujos dilemas pessoais foram praticamente esquecidos – agora presentes apenas no rodapé da história oficial do Mundial de 2014. Veja como está hoje a vida das pessoas impactadas diretamente na preparação para o torneio.

Promessas não cumpridas em Itaquera

Esse argumento de que a Copa traria benefício foi desconstruído muito rápido para o pessoal da Vila da Paz, porque tinha investimento e isenções fiscais muito grandes no estádio, a 800 metros, enquanto as pessoas ali não tinham nem ligação de água e de luz

Talita Gonsales, urbanista e pesquisadora no Observatório de remoções

O retrato de Ronaldo Oliveira dos Santos segue em posição de destaque na sala de Dona Rita, em sua casa na cidade Caucaia, no Ceará. O operário morreu junto com o colega Fábio Luiz Pereira em 27 de novembro de 2013, já na fase final da construção da Arena Corinthians para a Copa do Mundo. Ambos foram esmagados pela queda de um guindaste de 450 toneladas.

Em meio ao luto dos últimos anos, Dona Rita teve que lidar com um quadro de depressão, além da aparição de um tumor na garganta. De resto, a mãe do operário morto em Itaquera ainda amargou a distância das netas. A nora Jamile recebeu uma indenização da construtora Odebrecht e depois se afastou da família do marido.

Em 2015, diante da insistência de um advogado de São Paulo, a família de Dona Rita também tentou receber um valor indenizatório. "Mas não deu em nada e ainda perdemos dinheiro. Fomos a São Paulo para a audiência, bancamos passagens e hotel. O advogado não ajudou em nada. Ele nem apareceu na audiência, mandou uma assistente", reclamou Paulo Renato, um dos irmãos de Ronaldo.

"Minha ficha foi cair depois de um ano. A gente cresceu junto. Eu choro todos os dias", afirmou Paulo Renato, também morador de Caucaia.  

título um

Karoline tinha 17 anos quando recebeu a notícia de que o tio Muhammad'Ali Maciel Afonso, 32, havia morrido após levar uma descarga elétrica na fase final da construção da Arena Pantanal, em junho de 2014. A tragédia não alterou o cronograma da Copa, que começou a receber partidas no estádio dias depois.

A matriarca da família, Eliana, nunca superou a tristeza da perda do filho. Quase quatro anos depois, a Copa da Rússia que está por vir faz resgatar as memórias da tragédia. "A minha avó não superou a morte do filho. É difícil comentar sobre o assunto, mexe muito com ela. Agora, nesse período de Copa, vem lembranças tristes. Minha avó vive mais afastada", relembrou Karoline.

A avó e os dois filhos da vítima foram indenizados. Já o estádio onde o tio ajudou a construir não desperta curiosidade na família, que vive em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá. "É um assunto que morreu. Ninguém da minha família foi na Arena e ninguém tem curiosidade. Foi uma Copa horrível e acabou", comentou a sobrinha. 

título três

Uma trégua na violência e o incremento de infraestrutura foram as promessas ouvidas pelas comunidades próximas ao estádio do Maracanã antes da Copa. A poucos quilômetros do palco da final, moradores do Morro da Mangueira e do Complexo do Jacarezinho viram o Mundial só pela TV. As forças de segurança estiveram presentes até o fim do torneio. Quatro anos depois, a vida piorou.

"Nenhuma dessas comunidades recebeu investimentos. Nem antes, nem durante e nem depois da Copa. Continuaram sendo favelas. Sempre tem promessa de melhoria de saneamento básico, organização. Inclusive, onde temos projetos sociais (Jacarezinho) houve promessa de modificar totalmente, urbanizar a comunidade, tirar o aspecto de favela, arborizando", contou João Luis Francisco da Silva, articulador social da ONG Rio da Paz.

"As crianças das comunidades próximas avistavam a movimentação, viam toda a preparação para a Copa acontecer. Enquanto isso, nas comunidades, elas eram obrigadas a andar sobre o esgoto a céu aberto", acrescenta.

Um corredor de ônibus expresso previsto para a Copa não saiu do papel. Hoje a sensação de insegurança é o que mais perturba as comunidades próximas ao Maracanã. "O quadro é pior que naquela época. Aconteceram as chamadas ocupações das forças do Estado na época e, de alguma forma, diminuiu o crime naqueles locais. Passando os grandes eventos, o Estado abandonou totalmente os policiais à própria sorte e vimos a deterioração das políticas públicas. Acentuou a força do tráfico", descreveu o representante da ONG Rio da Paz.  

Um drama no monotrilho paulistano

É o descaso. Você tira uma população inteira de lugar em que viveu por muitos anos. Do nada chega o governo, a entidade que se acha maior que tudo, sem saber para onde você vai. Hoje eu trabalho bem próximo dali e vejo a porcaria da construção, os prédios parados

Vagner Santos Silva, escriturário, ex-morador de favela próxima à construção do monotrilho em SP

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

título dois

Desde a Copa, as famílias que ainda permanecem nas proximidades da Comunidade dos Trilhos, onde passará o VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos) ligando Parangaba a Mucuripe, em Fortaleza, vivem sob escombros das casas demolidas há cinco anos. A obra ainda não foi entregue em sua totalidade e a ameaça da remoção voltou recentemente, com mais um projeto prometido para a região.

Desta vez, Maria do Rosário de Assis Alcântara e Silva, a Rosinha, não deve ser poupada. O túnel longitudinal nas proximidades do futuro VLT derrubará a casa da cunhada e provocará mudanças na moradia de Rosinha. Há quatro anos ela viu a residência da sogra, Maria Teixeira, ser demolida. A senhora morreu antes, em 2013. "Vários idosos foram adoecendo. Minha sogra não chegou a ver a casa dela ser demolida. Dizia que não ia sair e foi adoecendo. Ela vivia triste quando faleceu. A indenização veio um ano depois, R$ 110 mil", relata.

"Foi por conta da Copa que aconteceram essas coisas. Tinha gente que morava há 70 anos aqui e, de repente, tem de procurar outro lugar para morar. Depois da Copa eles construíram viadutos e tuneis próximos da comunidade. Das 200 famílias que viviam ali, hoje restam cerca de 50". 

A Copa do Mundo não aconteceu aqui. As obras que começaram não terminaram. É um canteiro de obras hoje por conta do túnel. Eles não tiraram entulho de casas demolidas, tem mais insetos. Tiraram uma parte agora por conta da obra do túnel

Maria do Rosário de Assis Alcântara e Silva, moradora da Comunidade dos Trilhos

A ameaça sempre existiu, mas com a Copa ela passou a ser mais forte. Umas das senhoras morreu em 2016. Não foi por causa da Copa, mas depois que tiraram eles de lá, ela ficou pior. Tinha um filho com deficiência e a casa era toda acessível para ele

Danielle Fernandes, autora do livro "Por um trilho: memórias de resistência"

Após quatro anos de atrasos, o nome da obra que ligaria a Arena Pernambuco a Camaragibe ainda tem alusão ao Mundial: Ramal Externo da Copa. Ninguém sabe, porém, se ela vai sair do papel. A promessa era de que seriam construídas pistas ligando o Terminal Integrado de Camaragibe a São Lourenço da Mata, onde fica o estádio usado no torneio da Fifa.

Para isso, foram retiradas mais de 50 famílias do loteamento São Francisco do Timbi, que fica próximo ao terminal. Mas as obras não avançaram e, quatro anos depois, ainda há famílias com ações em andamento na Justiça. Cerca de 1,5 mil pessoas buscam indenizações pelos processos de desapropriação. O "Jornal do Commercio", de Pernambuco, noticiou recentemente que o local desapropriado se transformou em um estacionamento de ônibus.

"Fizeram muitas ações de desapropriação. Dessas, cerca de 50 ações estão em andamento e umas quatro foram executadas. Hoje, ainda tem briga pelo pagamento do valor de mercado do imóvel. Vários imóveis não estavam regularizados, alguns tinham imóveis não registrados no cartório. Ações de usucapião. Existiram outras ações além das de desapropriação", explicou o advogado Henrique Seixas, sub-defensor de causas coletivas e atuante na defensoria de Camaragibe.

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