Não desistimos nunca

Na Rússia, você encara motorista louco, viagem de trem interminável e apartamento decrépito. Tudo pela Copa

Felipe Pereira Do UOL

Choque de Cultura

“Nóis sofre, mas nóis goza”. A frase que fecha as colunas de Zé Simão é a síntese do brasileiro na Copa do Mundo da Rússia. A língua é pior que grego e comprar água é um desafio quase insuperável. Os táxis parecem dirigidos pelos mais imprudentes “pilotos de transporte alternativo” brasileiro, “profissionais” que acham normal fumar ao volante. E, se não respeitam o passageiro, imagine as leis de trânsito...

Quando chega a hora de ir para casa, os apartamentos em que muitos torcedores estão dormindo são dos tempos da União Soviética e parecem mais ocupações do que hotéis. Há pichações, fios expostos e um aspecto geral de decadência.

Não que esteja sendo um problema gigante. Ajuda que o povo russo esteja sendo tão receptivo. O que eles têm de dificuldade para entender o torcedor brasileiro, seja pelo jeito retraído ou a língua ininteligível, eles têm de receptividade, de fazer força para agradar. Às vezes, podem exagerar oferecendo lombo de porco, a carne preferida no país, no café da manhã. Mas Copa não é só futebol. Também é um choque cultural.

Achou que iria ver brasileiro reclamando? Por eles, a Copa acabava só no Natal. De 2021, para emendar com o Mundial de 2022.

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Táxi pode ser uma enorme (e perigosa) aventura

A Rússia tem uma foto famosa de um urso dentro de um táxi. Pode não ser assim no dia a dia, mas se locomover por lá é inusitado. E até perigoso. Luiz Felipe Guimarães, 32 anos, ia com os amigos para o aeroporto de Moscou quando o carro começou a cortar faixas. O motorista estava dormindo.

Dei um tapão e ele acordou freando bruscamente.”

O motorista admitiu que dormira. Eram 4 horas da manhã e ele estava muito cansado, justificou. Luiz Felipe só pedia para a viagem terminar o mais rápido possível. Nem se incomodou com o comportamento do russo ao volante, que começou a fumar como uma chaminé.

“Estava rezando para chegar logo. Se fumar mantinha o cara acordado, que fumasse quantos cigarros quisesse.”

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Candy Crush ao volante

Flávio Moscatelli, 34 anos, tem uma história menos perigosa, mas mais inusitada. “Um dos motoristas de Uber entrava na internet, no WhatsApp e até jogava Candy Crush enquanto dirigia. Outro desviou o caminho e parou numa balada para pegar o telefone de uma moça”.

E eles podem fazer tudo isso dirigindo a 120 km/h. Em Kaliningrado, ainda tem o agravante: os preços exorbitantes quando você é turista. O marroquino Nouman Troussi, 25 anos, só descobriu como as coisas funcionam depois de pagar o triplo (e mais um pouco) por uma corrida de táxi. O preço justo seria 500 rublos (R$ 30,00). Ele desembolsou 1,7 mil rublos (R$ 100,00).

A má fama dos taxistas russos é internacional. Todo torcedor que fez alguma pesquisa antes de chegar ao país sabia que nunca devia confiar em um deles.

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Flagra de imprudência

A reportagem do UOL experimentou o jeito russo de dirigir. Olhe essa foto aí ao lado. É de um taxista de São Petersburgo que não gostava do cinto de segurança apertando o peito, mas odiava ainda mais o barulho que o carro fazia ao dirigir sem o equipamento conectado. Aliás, o que não faltava era russo dirigindo com o cinto atrás das costas. Esta alternativa para acabar com o apito é adotada em várias cidades russas.

Hotel, mas pode chamar de filme de terror

Diego Lopes Diego Lopes

Onde Judas perdeu as botas

Às vezes, o caminho até o hotel já é uma história para contar. Carlos Alberto Coelho, 57 anos, estava preocupado porque o motorista do carro em que ele e um amigo entraram no aeroporto estava dirigindo a mais de meia hora. Eles já passavam por estradas de terra e, na cabeça de Carlos, o alarme tinha disparado.

“O cara passou por lugares feios e fiquei preocupado. Pensei que estava levando a gente a um lugar para roubar. Achava que nunca mais veria as minhas malas. Mas era o caminho certo mesmo. Ficava no meio do nada, só tinha mato ao redor. Daí eu entendi porque se chamava Hotel Safári”.

Na recepção, foi a vez de ter problemas com a língua que nem o Google tradutor resolveu. A dona foi prática. Entregou a lista de reservas e uma caneta para Carlos Alberto. Ele mesmo fez as anotações do check-in.

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O hotel que não existia

Reyner Carvalho não teve problemas em achar o hotel de sua reserva. Ou melhor, mini-hotel. Era esta a descrição no site Booking.com, que ele usou para garantir a estadia. Mas estar no lugar certo foi apenas o começo do problema. “Cheguei no endereço e o lugar não existia. Eram 5 da manhã, eu estava vindo de um voo longo. Um russo me viu com as malas e ofereceu ajuda. Ligou para o número que estava na reserva e a pessoa que atendeu falou que não podia fazer nada”.

Sem alternativa, Reyner precisou se virar. Da calçada, começou a procurar outro lugar para ficar. Depois de três horas de perrengue, conseguiu. Foi esticar o corpo numa cama na metade da manhã. “Se não tiver problemas, não tem vitórias”, afirma.

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Nos tempos soviéticos

Existe outra maneira de perceber que encontrar o lugar da hospedagem não significa que tudo está bem. Os russos alugaram as próprias casas. Por fora, parecem ocupações clandestinas. Corredores pichados, fiação exposta, Ladas em petição de miséria abandonados no estacionamento e anúncios de dedetização colados nas paredes e no elevador são um sinal de que haverá companhia na cozinha.

São apartamentos dos tempos da União Soviética e a impressão é que nunca passaram por manutenção. O elevador faz mais barulho do que um ônibus. Por dentro, tudo é apertado. São 26 metros quadrados. Diego Lopes e seus três familiares passaram por isto em Saransk e sentiram na pele como uma primeira impressão pode ser ruim.

“Eu, meu pai e minha irmã ficamos pensando se fizemos a escolha certa. O prédio era velho, mal conservado. Mas por dentro até que era bonitinho”.

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Só Google salva

Por toda a Rússia há vontade de integração entre torcedores e locais. Mas é mais fácil achar uma nota de R$ 100 na rua do que, por exemplo, um russo que fala inglês em Saransk, a menor cidade-sede da Copa, de 270 mil habitantes.

Os brasileiros aprenderam rápido a falar as frases básicas em russo: “olá” (priviet), “não falo russo” (Ya ne govoryu po-russki) e “uma cerveja, por favor” (pivo pozhaluysta). Para as outras necessidades, vão de Google Tradutor. Como nem o alfabeto é o mesmo, ele se tornou o aplicativo mais usado da Copa.

Até nas entrevistas coletivas. Antes do Mundial, mas já em solo russo, por exemplo, um repórter espanhol perguntou, via celular, em francês, qual seria o destino do atacante Griezmann após o torneio. Também em um treino francês, um jornalista argentino usou o aplicativo para pedir dicas dos franceses para que a Argentina os derrotasse.

O problema acontece quando o celular fica de lado. Em Samara, duas russas tentavam ensinar um palavrão para um mexicano xingar o time que perdera por 2 x 0 para o Brasil. Elas fingiam derrubar o celular no chão e soltavam o palavrão. Fingiam tropeçar e cair e soltavam o palavrão. Com cara de quem captou, o torcedor começou a falar que Neymar era mesmo "psicinero".

Sem bolinhas

Pavel Golovkin/AP Pavel Golovkin/AP

Cidades (quase) homônimas proporcionam aventuras

Essas dificuldades de tradução causaram casos engraçados. O maior deles foi de dois argentinos. Os torcedores viraram celebridade numa cidade que nem sabiam que existia. Munidos de ingresso para o jogo contra a Croácia em Ninji Novgorod, os dois chegaram em Veliky Novgorod às 6h30 do dia partida. Estranharam que era metade da manhã e nada de clima de Copa. Foram atrás de informações e perceberam o tamanho do problema: estavam a quase mil quilômetros do estádio!

O consolo é que viraram atração local. Os russos arranjaram um tradutor e providenciaram um tour pelos pontos turísticos da cidade. Os dois tomaram cuidado de voltar para a frente da TV em tempo de ver a Croácia ganhar por 3 a 0 de sua seleção.

O melhor, porém, estava por vir. Os argentinos foram presenteados com dois ingressos VIPs para a partida seguinte, contra a Nigéria. Desta vez não teve erro. E ainda assistiram a uma vitória de sua seleção.

Confusão com nomes também fez um suíço virar sem teto. O torcedor descobriu em cima da hora que fez reservas de hotel para Rostov Veliki, mas estava em Rostov-on-Don. Precisou dar um jeito.

JUAN BARRETO/AFP JUAN BARRETO/AFP

Sem água no trem

Terra da Transiberiana, a Rússia tem trem para tudo que é canto. No imaginário, uma viagem contemplativa por planícies a perder de vista. Na prática, uma roubada se você optar pela terceira classe, atestam Rafael Pedroso e Diego Romero.

O primeiro choque foi perceber que não existem cabines. Nas duas laterais dos vagões, há camas que vão do chão ao teto. Como mostrou o jogo do Brasil com o México, a Rússia consegue ser muito quente no verão. Imagina estar numa caixa de lata sem ar-condicionado...

Quem sabe como é não recomenda. “Para completar, não vendiam água no trem. Na água da torneira do banheiro você não vai confiar. A gente teve que esperar uma parada para poder beber alguma coisa”, contou Rafael.

Nós estávamos no país da Copa e ficamos sem saber nada dos jogos. De Argentina e Nigéria só soubemos quando chegamos. E à noite eles apagam a luz e você não tem o que fazer

Rafael Pedroso, lembrando que em uma viagem de um dia inteiro em um trem, não existia sinal de celular, WI-FI ou televisão para saber o placar dos jogos que rolavam naquele dia

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Meia hora de folia

A vontade era tentar ir para o próximo destino de qualquer jeito que não o trem, mas como Rafael e Diego já haviam comprado bilhetes, lá foram eles. Agora, porém, era segunda classe e até vagão restaurante havia. Com o trem cheio de brasileiros, logo se formou um pagode. As coisas começavam a esquentar quando o garçom acabou com o rolê: “Acabou a cerveja”, anunciou.

A festa acabou e cada um tomou o rumo de sua cabine. Sim, agora Diego e Rafael tinham uma.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Burocracia

A dupla também ficou impressionada com a burocracia russa. Eles contam que chegavam ao hostel e o atendente pedia o documento de check out do último hostel. “Uma vez, falei que a gente vinha de um AirBnb e não deram nenhum papel. Ele deixou por isso mesmo. Perguntei por que então que eles pediam o documento. O homem pegou o Google Tradutor e escreveu: burocracia”.

No trem era a mesma coisa. Além de apego aos papéis, os funcionários eram sistemáticos. “Um deles pediu passaporte, tíquete e Fan ID. Entreguei tudo e ele balançou a cabeça. Tinha que ser um por vez e na ordem que ele pediu. Chegamos dentro do trem e pediram tudo de novo. E foi o mesmo cara!”

Não é somente nas estações de trem. Os aeroportos fazem a mesma coisa durante o embarque. Sem falar que a Rússia está no grupo de países que exige que o passageiro passe a mala pelo raio-x logo na entrada do aeroporto. “Tinha raio-x na entrada de shopping em Moscou”, espanta-se Rafael.

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Pão, queijo e salame

Na Rússia, nem Burguer King ou McDonald’s têm cardápios em inglês. Luiz Felipe Guimarães fala que, dependendo do lugar, é preciso ir na bola de segurança e pedir apenas o que consegue traduzir. No mercado, o negócio é optar por marcas conhecidas.

Como a gente compra só pão, queijo e salame, fica mais fácil”.

As refeições na Rússia podem variar muito. Kaliningrado fica no Mar Báltico e os croatas saíram de lá com quilos de peixe defumado na bagagem. A loja ficava na área de embarque do aeroporto e eles socavam o máximo que podiam nas bagagens de mão.

Com passado alemão, a cidade servia a melhor cerveja da Rússia, afirmavam os suíços que foram à cidade. Para os brasileiros, a “loira” não era gelada como eles gostariam. Mas ninguém deixa de beber por causa disso.

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Porco e macarrão "no café da manhã dos campeões"

Na Rússia, muita coisa pode acontecer em um simples hotel. O café da manhã de Célio Castro, em Rostov, começou com um sopão de frango com direito a todos os legumes que pareciam caber na geladeira do local. Como acompanhamento, picles e tomate.

Depois, veio o susto. “A mulher do hostel tirou um porco. Tipo esses lombos que a empresa dá na cesta de Natal no final do ano. Mas este eu não comi”.

Em Saransk também tem sopa no café da manhã, mas é gelada como os brasileiros acham que a cerveja deveria ser. Kaliningrado e São Petersburgo têm pepino e salada russa para a primeira refeição do dia. No hotel em que a reportagem do UOL se hospedou ainda havia macarrão, arroz e porco frito.

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Peladão na recepção

Há russos que se sentem em casa nos hotéis de Kaliningrado. Um homem muito à vontade apareceu na recepção às 23 horas. Ressaltando que este é o horário em que começa a escurecer nesta época do ano. O hóspede vestia apenas uma toalha.

Ele conversava despreocupadamente com a atendente da recepção quando seus amigos chegaram. Uma mulher estava com uma toalha enrolada no corpo. Outro homem não fez cerimônia. Colou no balcão somente de cuecas.

Não pense que tiraram as crianças da sala. Tudo continuou normal na rotina do hotel. A mulher da limpeza foi ao local e tomou parte na conversa. Um taxista entrou para saber se o passageiro que esperava foi avisado que o carro aguardava. O papo do povo de pouca roupa durou uns dez minutos antes de todo mundo seguir seu caminho. Um deles saiu bebericando uma cerveja.

Kai Pfaffenbach/Reuters Kai Pfaffenbach/Reuters

O melhor da Rússia é o russo

Os brasileiros têm seus momentos difíceis na Rússia? Sim. Mas a verdade é que estão amando a Copa. Além do futebol, o outro motivo para isso são os russos. A vontade de agradar ganhou corações verde-amarelos.

Ludmila Lopes chegou a Moscou, mas a mala ficou em Lisboa. A torcedora embarcava para Samara em três horas. Não havia como esperar a mala. Todo mundo que falava inglês ajudou. “O voluntário da Copa, a única funcionária do balcão de informações do aeroporto e até a moça que vendia chip de celular se mobilizaram. Para você ter ideia, no horário em que meu voo chegou em Samara eles já estavam ligando para dizer que a minha mala foi encontrada em Portugal e estava a caminho da Rússia”.

Tião da Bandeira, apelido de um torcedor que não perde Copas, participou de um programa da TV russa porque mora na mesma rua que Mário Fernandes, em São Caetano. Reconhecido em Moscou, foi convidado para acompanhar um grupo de russos em um restaurante. Comida e bebida à vontade. E não aceitaram dividir a conta.

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