Das ruínas à Copa do Mundo

75 anos após batalha icônica da 2ª Guerra, Stalingrado vira símbolo do nacionalismo russo e renasce no futebol

Daniel Lisboa Do UOL, em São Paulo

Uma vitória que mudou o destino do mundo

Os torcedores presentes à Arena de Volgogrado no dia 18 de junho testemunharão algo muito maior que a estreia de Tunísia e Inglaterra na Copa do Mundo. É o pontapé inicial do Mundial em uma das cidades mais importantes da história moderna, que vive um renascimento tanto no aspecto político quanto esportivo.

Volte 75 anos. Em 1943, Volgogrado era chamada de Stalingrado. E o mundo como você o conhece provavelmente seria diferente caso os nazistas tivessem vencido a grande batalha que aconteceu por lá, talvez a mais famosa da Segunda Guerra Mundial. Ao impedir que os alemães tomassem a estratégica cidade do sudoeste russo, os soviéticos determinaram o começo do fim do último grande confronto militar do planeta. Foi a partir desta vitória que o até então imbatível exército de Adolf Hitler começou a ser empurrado de volta para Berlim.

No aniversário da batalha, celebrado em fevereiro deste ano, o governo do presidente Vladimir Putin criou uma superprodução para comemorar a data - o intuito era surfar no prestígio da batalha de Stalingrado e ganhar capital político. A Copa do Mundo não está longe disso: mesmo sem um time na elite do futebol local, Volgogrado ganhou uma arena moderna, nos padrões Fifa, para o seu futebol. E olha que seu grande momento futebolístico aconteceu há 23 anos e sequer foi a conquista de um título (apesar de ser lembrado até hoje pelos derrotados).

Nessa matéria, você vai conhecer essas duas histórias.

Nacionalismo de Putin ressuscita Stalingrado

Volgogrado não está na Copa do Mundo de graça. A importância de Stalingrado voltou ao caldeirão de nacionalismo aquecido por Vladimir Putin desde a anexação da Crimeia em 2014.

Em reportagem intitulada “Stalingrado está sendo usada como propaganda mais uma vez?”, o jornal britânico The Guardian discute como o presidente russo vem se valendo da memória da batalha. O primeiro passo neste sentido foi a possibilidade, por enquanto não concretizada, de mudar o nome da cidade para Stalingrado novamente.

Mas foi a celebração dos 75 anos da vitória o maior símbolo dessa apropriação. Realizada em fevereiro deste ano com dinheiro federal, a gigantesca parada teve a participação de 1500 soldados, 75 tanques de guerra (um para cada ano desde a vitória), diversas e modernas peças de artilharia, voos rasantes de caças e encenações da batalha com tropas trajadas como na era soviética.

Putin, claro, lá esteve, posando em frente à estátua da “Mãe-Pátria”, a maior da Europa (85 metros de altura) e erguida no monte Mamayev Kurgan. É um local histórico por ter mudado de mãos várias vezes durante a batalha. Se os nazistas tivessem tomado a colina, dificilmente Stalingrado resistiria. 

Time local também renasce

Se Volgogrado está em um processo de renascimento, com o governo Putin usando a fama da Batalha de Stalingrado como propaganda política, o futebol da cidade vive um processo semelhante.

O time local, o Rotor Volgograd, uma evolução de Traktor Stalingrad, nome original do time fundado 1928 na fábrica de trator da cidade (e que teve um papel importante no cerco de Stalingrado) está nas últimas posições da segunda divisão russa, lutando contra o rebaixamento. Só a disputa do torneio, porém, é um feito.

Em 2015, o time tinha uma dívida acumulada de 130 milhões de rublos (hoje, cerca de 7 milhões de reais) e declarou falência. O time perdeu, então, o status de equipe profissional e precisou ser refundado como uma equipe amadora. Disputou a segunda divisão do sul da Rússia, o que na prática significava terceira divisão.

Logo na temporada seguinte, obteve desempenho suficiente para voltar a uma divisão profissional. Mesmo com questionamentos sobre a legalidade do suposto “jeitinho” que permitiu sua ressurreição, o Rotor Volgograd obteve permissão para voltar a jogar profissionalmente. 

A "Batalha de Stalingrado" do futebol

Mal na tabela da segunda divisão russa, o Rotor Volgogrado está hoje mais próximo da terceira divisão que da elite. A situação, porém, já foi muito melhor. Na década de 90, o time encarou de frente os maiores clubes da liga russa e – acredite – chegou a eliminar o Manchester United da Copa da UEFA em 1995, em sua própria Batalha de Stalingrado.

Depois de empatar por 0 a 0 na Rússia, foi ao Old Trafford e chegou a abrir 2 a 0 contra um time que contava com nomes como David Beckham, Paul Scholes e Roy Keane. O goleiro Peter Schmeichel também estava lá, e – acredite, mais uma vez – empatou o jogo com um gol de cabeça após uma cobrança de escanteio.

Essa derrota do Manchester United foi tão marcante que, quando o Rotor Volgograd declarou falência em 2015, veículos de imprensa locais como o “Daily Mail” fizeram reportagens relembrando o feito daquele pouco conhecido e ousado time russo.

Volvogrado e os Elefantes Brancos da Copa

Volgogrado está para a Rússia como Brasília, Cuiabá, Fortaleza, Manaus e Natal estiveram para o Brasil na Copa 2014. A cidade ganhou um estádio (muito) caro e moderno mesmo sem ter um time na elite do futebol nacional. Mas não é a única nesta situação.

Das onze cidades-sede da Copa 2018, apenas cinco têm times na elite nacional. Em Caliningrado, Níjni Novgorod, Saransk, Samara e Sochi, além da própria Volgogrado, os principais clubes estão, no máximo, na segunda divisão.
O FC Baltika, atualmente na segunda divisão russa, jogará na Arena de Caliningrado. Já o  Nizhny Novgorod, da mesma divisão, terá a arena de Níjni Novgorod como sua casa após a Copa.  Em Saransk, o FC Mordovia Saranski, que herdará a Arena Mordovia, joga na terceira divisão hoje.  O FC Krylia Sovetov, também na “segundona” russa, atuará na Samara Arena.

Em Sochi sequer há um time profissional para jogar no estádio após a competição.

Ou seja, um cenário ainda pior que no Brasil, quando “apenas” cinco das treze cidades-sede não contavam com um representante no topo da maior competição do país. Na época, Manaus e Brasília tinham times na série D: respectivamente, São Raimundo e Brasiliense. Cuiabá, o time de mesmo nome da capital mato-grossense, estava na série C. Em Natal, o ABC disputava então a série B.

Em Fortaleza, que hoje tem o Ceará na Série A, o cenário também era negativo. O próprio Ceará lutava na Série B de 2014, enquanto seu principal rival, o Fortaleza, tentava o acesso na Série C.

O atirador que matou sozinho 242 soldados alemães

Uma das figuras mais famosas e controversas da Batalha de Stalingrado é a do franco-atirador soviético Vasily Zaytsev. Ele teria matado nada menos que 242 militares alemães e foi condecorado como herói nacional. Personagem de vários livros e do filme “Enemy at the Gates” (no Brasil, “Círculo de Fogo”), Zaytsev nasceu em 1915 em uma área rural próxima aos Montes Urais.

Ainda criança, aprendeu com o avô a ser um exímio caçador. Muito já foi contestado sobre a versão oficial de seus feitos: historiadores já disseram que seu número de vítimas é inflado e duvidam da passagem mais famosa de sua vida. O embate com o franco-atirador alemão “major Konings”, tema central de “Círculo de Fogo”, jamais teria acontecido do modo como foi retratado.

Zaytsev, porém, segue em destaque na lista dos homens que mais mataram na maior matança coletiva da história mundial.

"Imprensa brasileira ignorou batalha"

"O Brasil era um país essencialmente anticomunista sob o Estado Novo. Quando a União Soviética venceu em Moscou, nós praticamente não ficamos sabendo. As manchetes saíam escamoteadas. Em vez de Soviéticos vencem em Moscou, saía assim: Exército de Timoshenko (Semyon Timoshenko, comandante ucraniano) detém as forças alemãs. O que isso significava para um brasileiro médio dos anos 40? Nada.

Não usavam União Soviética, a palavra comunismo não aparece nenhuma vez. Não há mapas e diagramas. Foi diferente da cobertura das batalhas na África. Acho que foi o Diário Carioca que publicou uma foto 3x4 do marechal Timoshenko falando da vitória na cidade de Tula e acabou proibido de circular por 24 horas.

Tenho o telegrama do Lourival Fontes (ministro de propaganda de Getúlio Vargas) determinando que os DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social) não permitissem a publicação de nenhuma foto de soldados soviéticos que não estivessem acompanhados dos seus correlatos aliados. Como é que em 41 e 42 você ia achar uma foto de um soviético com um americano, se eles só foram se encontrar em 1945?"

João Claudio Platenik
Historiador da UFRJ e único autor brasileiro de livros sobre o papel da União Soviética e 2ª Guerra Mundial 
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Volvogrado hoje

Rebatizada de Volgogrado em 1961, a cidade de cerca de 1 milhão de habitantes receberá quatro jogos da Copa do Mundo em uma arena que custou 250 milhões de dólares (cerca de 837 milhões de reais).

Os 75 anos desde os sangrentos dias que tornaram a cidade famosa não atenuaram a força de seu passado. Além do ressurgimento simbólico, lembranças bem concretas daqueles dias permanecem. Por exemplo, até hoje restos mortais são encontrados quando terrenos são escavados. A Volgogrado Arena fica próxima ao memorial da batalha e, segundo a agência EFE, mais de 300 bombas, além de corpos de soldados, foram encontrados na área onde o estádio foi erguido.

Autorizada a funcionar recentemente pelas autoridades russas, a arena foi oficialmente inaugurada em 21 de abril com a partida entre Rotor e Luch-Energiya, válida pela segunda divisão do futebol local. No dia 9 de maio, quando se comemora nacionalmente o Dia da Vitória sobre a Alemanha, porém, receberá a final da Copa da Rússia – aí, sim, com a elite do futebol do país.

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