Chegou a vez DELAS

Copa do Mundo é lugar de muitas coisas. Inclusive de ver um jogo ao vivo pela primeira vez

Julio Gomes e Luiza Oliveira Do UOL, em Moscou (Rússia)
ETIENNE LAURENT/EFE/EPA

A primeira vez

Entrar em um estádio de futebol é uma ocasião especial para qualquer pessoa. Abertura de Copa do Mundo, então, mais ainda. Mas se você é um homem ocidental, OK, que legal. Mas não é algo de fora do planeta. Agora, imagine ser mulher em uma sociedade islâmica. O espectro de dificuldades enfrentadas para estar nas arquibancadas, digamos, do estádio Luzhniki na última quinta-feira, para Rússia 5 x 0 Arábia Saudita, são MUITO MAIORES. Em caixa alta mesmo.

O UOL Esporte foi atrás de mulheres que viveram isso. Todas assistiram a uma abertura de Mundial pela primeira vez. A maioria estava no estádio para sua primeira partida de Copa. Algumas, assistiam ao futebol ao vivo pela primeira vez.

O Irã, de onde vem uma de nossas personagens, ainda proíbe mulheres nos estádios. A Arábia Saudita, das outras mulheres ouvidas, só permitiu que frequentassem as arquibancadas em janeiro deste ano. E o futebol se tornou um símbolo das várias transformações que todas elas vêm passando.

Luiza Oliveira/UOL Luiza Oliveira/UOL

Uma pioneira saudita no Luzhniki

A derrota por goleada para a Rússia por 5 a 0 logo na estreia da Copa-2018 é um mero detalhe. Na saída do estádio, Hajer Suliman caminhava calmamente ao lado do pai que resolveu fazer uma surpresa para a filha a levando para a Copa. Ela até reclamou da atuação da seleção saudita, mas sem esconder o sorriso. Sabia exatamente o que representava estar ali.

Há pouco tempo, Hajer estava no estádio no primeiro jogo em que foi permitida a entrada de mulheres: dia 12 de janeiro de 2018 em um Al Ahli x Al Batin, na cidade de Riad.

Eu saí sem voz. Vibramos, gritamos, fizemos muito barulho. Torcemos muito mais que os homens".

Naquele dia, ela pintou o rosto, pegou as bandeiras, se juntou a familiares e amigas e foi para o campo. "Fiz parte de um dia histórico”, conta, emocionada sobre a experiência.

Arte UOL
Luiza Oliveira/UOL Luiza Oliveira/UOL

Uma alegria eterna

E foi essa mesma luta que fez com que Dood Aziz estivesse no Luzhniki. A jovem tímida de inglês arrastado se transformou ao ser perguntada se iria lembrar desse dia por muito tempo. "É lógico. Como eu iria esquecer de um dia desses? Vai ficar para sempre", bradou.

Ela era uma das muitas que via, naquela quinta-feira, um jogo de futebol ao vivo pela primeira vez. Dood, por exemplo, nunca tinha colocado o pé em um estádio em sua vida.

Isso representa liberdade. E de mulheres que foram se tornando cada vez mais fortes".

STRINGER/AFP STRINGER/AFP

Não foi fácil para elas

A luta para ganhar o direito de ver futebol ao vivo foi, obviamente, dura e exaustiva. Os estádios na Arábia Saudita precisaram passar por reformas na adaptação para receber público feminino. Agora, eles são divididos em duas áreas, uma exclusiva para homens solteiros e outra para a família. Nela, mulheres e crianças se juntam aos homens.

“Esse espaço agora fica bem mais cheio que o outro. Quando você procura por ingressos, é sempre o primeiro a ficar esgotado”, explica Hajer Suliman.

A vitória hoje comemorada vem de um longo processo de luta do movimento feminista. As mulheres começaram a se juntar para ter direitos iguais. Foram às escolas, faculdades e se uniram pelas redes sociais. Contaram também com o apoio do novo rei Mohamed bin Salman, mais aberto e considera importante rever o papel da mulher na sociedade saudita.

Saudi Information Ministry via AP Saudi Information Ministry via AP

Não são só estádios. Agora são as ruas

O futebol faz parte de um contexto de conquistas muito maior. A Arábia Saudita está em festa com as mulheres ao volante. O reino saudita já distribuiu as primeiras carteiras de habilitação e a mulherada chegou com o pé no acelerador.

O que é trivial para quem vive no Brasil, nos EUA ou na Europa, para elas é uma conquista. O país foi o último do planeta a autorizar a direção feminina - até hoje, algumas mulheres estão presas por descumprir a regra.

"Essa mudança foi a mais importante. Nas redes sociais, várias estão postando foto com a carteira. Tem várias selfies de carros só com mulheres, de mãe com as filhas, de amigas. Isso é muito legal", comemora Hajer.

Faisal Al Nasser/Reuters Faisal Al Nasser/Reuters

Na direção de suas escolhas

Elas sabem que ainda vão ter que se acostumar com piadas e o olhar torto dos homens, especialmente por serem motoristas iniciantes. Hajer, por exemplo, teme ainda mais porque o trânsito na Arábia Saudita é caótico. "Mas não é por causa das mulheres", diz.

Apesar de ter uma pequena ala receosa, a maioria dos homens também apoia a maior representatividade das mulheres na sociedade. 

"Claro. Nós achamos que elas têm que ter mais espaço na sociedade. Que tem que ser uma sociedade mais igualitária", afirma o estudante Ali Al-Otalbe, que foi a Moscou com amigos.

Hector Vivas/Getty Images Hector Vivas/Getty Images

Ela NÃO pode assistir a um jogo em seu país

Ghazal Ziari conseguiu o que muitos queriam: teve o privilégio de assistir à abertura da Copa do Mundo, no estádio Luzhniki, em Moscou. Mas o privilégio de outros, ou melhor, de outras, de poder assistir a um jogo de futebol quando e como quiser, ela não tem.

No Irã, as mulheres são proibidas de entrar em estádios de futebol.

Apesar do pedido pessoal de Gianni Infantino, presidente da Fifa, a Hassan Rouhani, presidente do Irã. Apesar de mulheres protestarem na frente de estádios e nas redes sociais. Apesar de ser quase inconcebível para nós, elas seguem sem poder ver futebol nas arquibancadas no Irã.

O motivo? Os homens falam palavrões demais e elas precisam ser preservadas.

Mas isso não é motivo para que não haja mulheres trabalhando com o esporte. É o caso de Ghazal, repórter de um jornal esportivo local. “Já fui a estádios antes, em Barcelona, por exemplo. Mas foi minha primeira vez vendo um jogo internacional oficial. Foi uma sensação incrível. Além de ver o jogo, foi demais ver a combinação de diferentes culturas, cores e bandeiras, experimentar o calor de estar em um evento assim”, contou Ghazal ao UOL Esporte.

E, não. Essa foto acima não é de Ghazal, assim como a abaixo, da campanha que está rolando nos estádios da Copa. Ela preferiu não ser mostrada em imagens na reportagem para evitar problemas na terra natal. E também pediu para que o veículo para o qual trabalha não fosse destacado.

Dylan Martinez/Reuters Dylan Martinez/Reuters

Jornalista esportiva desde os oito anos

Ela tinha oito anos quando percebeu que amava o futebol. Nas eliminatórias para a Copa de 98, para a qual o Irã acabou se classificando, tinha um caderno em que anotava tudo. Escalações, cartões, gols. Como qualquer criança fanática.

Quando jovem, decidiu estudar o idioma espanhol na faculdade de Letras. E, quando uma amiga não pôde aceitar um convite para traduzir textos da imprensa espanhola sobre futebol, Ghazal topou na hora. Com o passar dos anos, trocou duas vezes de emprego, sempre como especialista em futebol internacional, ajudando em entrevistas por telefone ou pessoalmente com personagens do futebol mundial que falam espanhol.

Quando a versão persa do site em que trabalhava foi extinta, Ghazal passou a trabalhar em jornal. Dos aproximadamente 60 jornalistas na redação, apenas 4 são mulheres.

“É normal, creio que seja assim em outros lugares do mundo também. Sou muito respeitada por meus colegas, até mais por ser mulher. Eles admiram que uma mulher faça esse trabalho. No Irã, não temos também o problema de desigualdade salarial entre homens e mulheres”, conta Ghazal.

“Estar na Copa do Mundo e viver esse ambiente na Rússia é um sonho sendo realizado”.

Felipe Pereira/UOL Felipe Pereira/UOL

Não é justo

Gazhal não está sozinha. Na sexta-feira, era só andar por São Petersburgo para encontrar mulheres iranianas vestidas como torcedoras. A maioria era de persas que não vivem no país, em que o regime islâmico é radical. Mas algumas vieram de lá. Hoda Ahmadi, de 37 anos, é uma delas.

“Nunca tinha ido a um jogo, foi minha primeira vez. Eu adorei o que vi. É muito triste saber que eu não vou voltar porque moro em Teerã (capital do Irã) e mulheres são proibidas de frequentar estádios em jogos de futebol”, conta.

É por causa disso que, nas arquibancadas do estádio Krestovsky, era possível ver várias faixas sobre o assunto. “Deixe as mulheres iranianas entrarem em seus estádios” e “Ajude as mulheres iranianas a frequentar estádio”.

Queria poder sentir sempre isto. Não é justo não ser possível. Deveria ser um direito que todas as pessoas têm. Não podia ter uma lei impedindo ir ao estádio”.

“Vim somente com ingresso para o primeiro jogo e estou tentando entradas para a segunda partida. Quero ir porque foi incrível. Tudo era legal, mas acho que o melhor era a torcida do Irã. Mesmo com as dificuldades do país, eles vieram torcer e criaram um clima tão bonito”, completa.

Fica a torcida para que ela consiga.

Felipe Dana/AP Felipe Dana/AP

Daquelas memórias para não esquecer nunca mais

Renata Mendonça, Dibradoras

Você pode nunca ter ido a um jogo de futebol. Mas imagine nunca ter ido a um jogo de futebol não porque você não tem vontade ou não tem oportunidade - mas porque você não pode. Imagine ser proibida de entrar em um estádio por lei.

Até dá para dizer que, em alguns casos no Brasil, mulheres são, de certa forma, “proibidas” de torcer ou gostar de futebol. Mas é bem diferente ser proibida na teoria e ser proibida na prática. Na Arábia Saudita, até este ano, mulheres eram PRO-I-BI-DAS de entrarem em um estádio de futebol.

A sensação de ir pela primeira vez ao estádio é inigualável. Mas a sensação de ir pela primeira vez ao estádio após ter passado uma vida inteira achando que esse dia nunca iria chegar deve ser indescritível. E a importância de sentir essa liberdade pulsando na arquibancada é daquelas memórias para não esquecer nunca mais.

O que as sauditas viveram na Rússia mudará a vida delas para sempre. Não interessa (ao menos não tanto, diante de algo tão maior) a goleada - porque a maior vitória já foi conquistada. Independente do resultado, agora as mulheres sauditas podem torcer, podem vibrar e podem ver de perto a seleção sentindo-se finalmente parte dessa nação, e não excluídas como sempre foram.

Para essas torcedoras sauditas, a Copa do Mundo de 2018 representará o início de uma nova era. Uma era em que elas poderiam viver o futebol como ele é, muito mais do que um jogo.

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