Futebol depois do VAR

Copa mostra que árbitro de vídeo pode mudar cultura em campo e minar agressões e "malandragens"

Rodrigo Mattos e Thiago Rocha Do UOL, em Moscou e São Paulo
Gabriel Rossi/Getty Images

Mais pênaltis, menor número de faltas, redução do agarra-agarra na área, mais tempo de bola rolando e menos reclamações em campo. O árbitro de vídeo não só gerou apenas a discussão mais quente da Copa da Rússia como tem impactado diretamente na forma como se joga futebol. É o que se vê na sua estreia no Mundial.

Foram 335 consultas aos árbitros de vídeos na primeira fase, uma média de sete por partida. Na avaliação da Fifa, o índice de acertos saltou de 95%, sem o VAR, para 99,3% com ele. Em 14 oportunidades, as decisões da arbitragem foram modificadas após consultas ao sistema, quase sempre em lances capitais. O impacto no jogo é claro, mas o legado da tecnologia vai muito além disso e não pode ser medido por estatísticas.

Com o recurso do replay, o comportamento inadequado dos jogadores, seja para ludibriar juízes, em reclamações acintosas ou situações de deslealdade, ficará ainda mais em xeque, escancarado ao olhar de quem pune e ao julgamento de quem assiste. Goste-se ou não do VAR, ele promete mudar a cultura do futebol, indo muito além de um ou outro gol anulado. 

VAR força mudanças já na Copa da Rússia

Jan Kruger/Getty Images Jan Kruger/Getty Images

Jogo limpo de CR7 é colocado à prova

Aos 35 minutos do segundo tempo do jogo contra o Irã, Cristiano Ronaldo trava uma disputa de bola mais ríspida com Pouraliganji. O árbitro paraguaio Enrique Cáceres estranhou o movimento de braço feito pelo português, como se tentasse uma agressão, e parou o jogo para revisar o lance à beira do campo. CR7 levou só amarelo, mas o lance deixou claro que não há espaço para arroubos de violência mesmo em disputas que escapem da visão do juiz.

Francois Nel/Getty Images Francois Nel/Getty Images

Pênalti de Mascherano assusta Argentina

Aos cinco minutos do segundo tempo, em cobrança de escanteio, Mascherano segura Balogun na área, e o árbitro turco Cuneyt Cakir marca o pênalti com convicção. Na comunicação via rádio, ele escuta a opinião dos auxiliares de vídeo e sustenta a marcação, que originou o gol dos africanos e quase eliminou os argentinos do Mundial. O volante argumenta que seu movimento passa batido na maior parte do tempo, mas quando ele é revisado fica difícil não ver infração.

Xinhua/Ye Pingfan Xinhua/Ye Pingfan

Tapa intencional de sérvio dentro da área?

Em Sérvia e Costa Rica, aos 51 minutos do segundo tempo, Prijovic acerta um tapa em Bolanos na disputa pela bola. O árbitro senegalês Malang Diedhiou não viu, mas foi alertado para consultar o lance em vídeo. Após a revisão da jogada na tela à beira do campo, ele puniu o jogador sérvio com cartão amarelo. O replay não confirmou a suspeita de agressão, mas a simples possibilidade de uma nova análise complica a vida de quem se arriscar a fazer isso.

Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images

"Se for assim, vão ter sete ou oito pênaltis por jogo"

A frase é de Javier Mascherano, reclamando do pênalti marcado depois de ele ter agarrado o nigeriano Balogun na área. Mais que a indignação pela decisão do VAR, que flagrou uma infração até então "invisível" ao olho nu, a fala do volante argentino revela um certo deslocamento nos novos tempos. Jogadores que cresceram atuando de uma forma agora precisarão se adaptar à realidade de um árbitro de vídeo atento aos detalhes. 

"Temos a impressão de que o VAR é um grande método de prevenção. O jogador sabe que está sendo filmado. Temos observado uma redução de faltas"

A frase é de Massimo Bussaca, chefe da arbitragem da Fifa. Do Brasil à Rússia, de fato, a média de infrações por jogo caiu de 30 para 26,9. Aumentou, em compensação, o número de penalidades. Foram dez nas duas últimas edições contra 24 na Copa do Mundo atual. Em um mundo pré-VAR, o erro mais comum dos juízes era ignorar infrações na grande área. Quando esse ponto é corrigido, há um aumento de mais de 100% nas marcações. De todos os assinalados na Rússia, sete foram por conta do VAR. 

O cenário indica que os jogadores têm um desafio pela frente. A tecnologia permite que faltas que passavam batido ao olhar humano do árbitro sejam captadas pelas câmeras, e com o passar do tempo deve forçar a mudança de comportamento dos jogadores em campo. Quem não se adaptar tende a sofrer, cada vez mais, na marca da cal. 

"Malandragens" históricas que o VAR flagraria

  • 2014 - A mordida de Suárez

    Antes de uma cobrança de escanteio em Uruguai x Itália na Copa de 2014, na Arena das Dunas, em Natal, o atacante Luis Suárez mordeu o ombro do zagueiro Chiellini, que ficou revoltado com a atitude. O árbitro mexicano Marco Rodríguez nada marcou. Posteriormente, baseado em imagens da TV, o uruguaio foi suspenso pela Fifa por quatro meses de praticar qualquer atividade ligada ao futebol, além de ficar fora de nove jogos oficiais pela seleção de seu país.

    Imagem: Tony Gentile/Reuters
  • 1986 - La mano de Dios

    Um dos erros de arbitragem mais escandalosos da história virou também uma imagem icônica das Copas: o gol de mão de Maradona, encobrindo o goleiro Peter Shilton, nas quartas de final da Copa de 1986, no México, em que a Argentina venceu a Inglaterra por 2 a 1. O lance motivou a Fifa a iniciar campanhas por fair play no futebol. O ex-camisa 10 argentino, ao descrever a jogada, disse que tocou na bola "um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus".

    Imagem: Arquivo/Folha Imagem
  • 1962 - O passinho de Nilton Santos

    Na Copa de 1962, no Chile, o Brasil perdia para a Espanha por 1 a 0 e corria risco de eliminação, até que Nilton Santos derrubou Enrique Collar na área. Malandramente, ele deu dois passos para frente e se posicionou fora da área, ludibriando o árbitro Sergio Bustamante, que marcou falta, e não pênalti. Na sequência do jogo, o Brasil virou o placar e avançou às quartas de final na campanha do bicampeonato mundial.

    Imagem: Reprodução
  • 2002 - O fingimento de Rivaldo

    Em uma cena patética, o meia Rivaldo posicionava-se para bater um escanteio na partida contra a Turquia, na Copa de 2002, na Coreia do Sul e no Japão, quando o zagueiro Unsal chutou propositalmente a bola no brasileiro. A bolada pegou na perna, mas Rivaldo se atirou no chão como se tivesse sido golpeado no rosto. O árbitro Yung Joo Kim expulsou o turco por receber o segundo cartão amarelo, mas as câmeras de TV flagraram a encenação de Rivaldo.

    Imagem: Desmond Boylan/Reuters
Doug Pensinger/Getty Images Doug Pensinger/Getty Images

É o fim do jogador malandro ou desleal?

É justamente no vacilo do olhar humano que, ao longo da história do futebol, os jogadores mais desleais se esconderam. A provocação para tirar o rival do sério, a agressão em um momento de fúria, a falta violenta e intimidatória ou até um pequeno teatro que pode induzir o apito ao seu favor. Tudo, sempre, quando o juiz não está vendo. Só que agora nada deve passar despercebido. 

A Copa do Mundo da Rússia ainda não teve um caso gritante do tipo, mas o VAR já sugeriu ao árbitro de campo que alguns lances poderiam ser passíveis de expulsão. Se a novidade tornar mais eficaz a punição de quem descumpre a regra, que efeito isso terá no jogo?

"Na sociedade, quando constrangimentos são criados aos indivíduos a tendência é de que hábitos e opiniões mudem. É inevitável que a utilização de forma mais intensa do VAR gere uma mudança maior de comportamento dos jogadores", analisa Túlio Velho Barreto, cientista político e pesquisador social da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, autor de estudos que relacionam aspetos das ciências sociais com as regras do futebol, como as noções de justiça e injustiça.

"Não tenho dúvidas de que vai mudar o comportamento dos jogadores. Um dos pontos que a Fifa colocou à International Board na hora de implantar o árbitro de vídeo foi a questão da conduta disciplinar, pela mordida do Suárez sobre o Chiellini aqui [na Copa] no Brasil. Dificilmente o Suárez faria isso nessa Copa [da Rússia] sabendo que ele está sendo vigiado pelo árbitro de vídeo. A conduta dos jogadores em agarrões, simulação, em situações de enganar a arbitragem, mudou muito na Alemanha, em Portugal e na Itália, onde foi implantado o árbitro de vídeo na temporada completa."

Sálvio Spinola

Sálvio Spinola, Ex-árbitro e comentarista dos canais ESPN

Darren Staples/Reuters Darren Staples/Reuters

Reclamações perdem força e VAR "protege" o árbitro em campo

Se o jogador vai ter de rever sua conduta em campo por conta das novidades, o juiz pode ser beneficiado. Cena comum no futebol pré-VAR, as rodinhas de reclamação em volta dos homens do apito tendem a ser reduzidas, na visão da Fifa. Com o vídeo à disposição para consulta, o árbitro tem mais embasamento para sustentar sua decisão, o que em tese torna menos eficaz a chiadeira indignada em campo. 

Para o comitê de arbitragem, essa mudança já está em curso. Quando o árbitro decidiu validar um gol difícil e decisivo para a Coreia do Sul porque o vídeo mostrou que o passe saiu de Kroos, o que anularia o impedimento, não restou opção aos alemães, que tiveram de se resignar. Na pior das hipóteses, a reclamação vai mudar de formato. Na estreia da Brasil, Neymar e Miranda pediam justamente que o árbitro referendasse, com o replay, sua decisão de que não houve empurrão no zagueiro no gol da Suíça. 

"Quero agradecer a técnicos e jogadores pelo que fizeram até agora em relação ao vídeo. Não é surpresa que houve boa cooperação entre jogadores e árbitros durante os jogos", analisou o presidente do Comitê de Arbitragem da Fifa, o italiano Pierluigi Colina. A visão ainda é otimista, já que ao longo do Mundial as reclamações acintosas ainda têm aparecido aqui e ali. Com o passar do tempo, porém, o "novo futebol" pode da razão à entidade.

O VAR modifica também o comportamento do árbitro de campo, pois ele deixa de ser o senhor das decisões. Com o vídeo, ele consegue compartilhar os erros e acertos. Do ponto de vista dos jogadores, não acredito que nessa Copa já terá uma grande mudança. Está acontecendo ainda o mesmo tipo de comportamento, de contestar, reclamar. Mas acredito que, com o passar do tempo, a postura seja diferente

Túlio Velho Barreto, Cientista político e pesquisador social

Getty Images Getty Images

Rússia apresenta o VAR a 70% da Copa do Mundo

Oficializado como regra do futebol em março, após aprovação da International Board, o árbitro de vídeo já vinha sendo utilizado de forma regular por dez países, como Alemanha, Estados Unidos, Itália e Holanda. Para a maior parte dos convocados para a Copa do Mundo, porém, a tecnologia só virou uma realidade na Rússia.

Dos 736 jogadores inscritos neste Mundial, 219 disputam torneios com uso regular do VAR (toda a temporada), ou quase 30% do total - para ser exato, 29,7%. Com números arredondados, significa dizer que, de cada dez atletas, sete nunca disputaram uma partida com possibilidade de revisão de jogadas ou tiveram contato mínimo com a tecnologia. Isso equivale a 70% da “mão de obra” da Copa de 2018. Entre os 23 convocados por Tite, por exemplo, apenas quatro atuam nas ligas em que o VAR é realidade: o goleiro Alisson, o zagueiro Miranda, o meia-atacante Douglas Costa (todos na Itália) e o meia Renato Augusto (na China).

Os dois campeonatos que mais cederam jogadores para este Mundial, o Espanhol (81) e Inglês (124), ainda não instituíram o VAR. Na Inglaterra, a revisão por vídeo foi testada no jogo entre Brighton e Crystal Palace, no dia 8 de janeiro, pela terceira fase da Copa da Inglaterra, e a experiência foi repetida no decorrer do torneio, mas de forma pontual, como as semifinais e a final. A França adotou procedimento semelhante, com uso esporádico na Copa da Liga Francesa. Na final da competição, um dos gols do Paris Saint-Germain só foi possível após a revisão por vídeo, em que o árbitro checou o replay para assinalar um pênalti sobre Mbappé, convertido por Cavani na vitória por 3 a 0 sobre o Monaco.

Em 2017, a Fifa também usou alguns de seus torneios, como a Copa das Confederações, o Mundial Sub-20 e o Mundial de Clubes, como laboratórios para o VAR. O mesmo fez a Conmebol, nas semifinais e na final da Libertadores e na Recopa Sul-Americana. No Brasil, os 20 clubes da Série A rejeitaram o árbitro de vídeo no Campeonato Brasileiro deste ano porque a CBF não quis pagar os custos da tecnologia, que será implantada apenas na Copa do Brasil, a partir das quartas de final.

Alex Livesey/Getty Images Alex Livesey/Getty Images

VAR não é o primeiro. Outras inovações já "mudaram" o futebol

As consequências que o árbitro de vídeo podem provocar no futebol, no médio/longo prazo e com prováveis ajustes no protocolo de uso e na aplicação das revisões, podem escrever uma nova história dentro da modalidade, como outros ajustes nas leis que mexeram completamente com a dinâmica e eliminaram alguns vícios que levavam ao antijogo. Abaixo, estão quatro alterações que revolucionaram o futebol.

  • 1891 - A introdução do pênalti

    Sugestão do goleiro irlandês William McCrum, que se inspirou em um incidente ocorrido na Copa da Inglaterra daquele ano para sugerir a cobrança de uma infração, a 12 jardas da meta, em caso de faltas dentro da área. No lance em questão, o zagueiro Henry, do Notts County, usou a mão para evitar um gol do Stoke City. Como não era uma situação prevista em regra, a malandragem do inglês gerou uma confusão em campo, com todos os jogadores do Notts formando uma barreira que cobriu toda a meta para impedir o gol rival em cobrança de falta.

    Imagem: Jan Kruger/Getty Images
  • 1925 - A lei do impedimento

    O jogador passou a ser considerado em posição irregular se tivesse à sua frente dois adversários quando recebia o passe, e não mais três. A alteração gerou uma transformação imediata no ritmo dos jogos, com aumento nas médias de gols.

    Imagem: Reprodução/FIFA TV
  • 1970 - A adoção dos cartões para punição

    A Copa de 1966, na Inglaterra, deixou claro que a arbitragem precisava de um aliado para manter um jogo sob controle. Foi neste ano, por exemplo, que Pelé apanhou demais contra Portugal e deixou o torneio lesionado. O inglês Keen Aston, então, trouxe a ideia de criar cartões para punir jogadores quando necessário. O amarelo advertia, o vermelho expulsaria o atleta. A novidade estreou no Mundial de 1970, no México, e aliviou a pressão sobre os árbitros, que a partir dali poderiam coibir a violência sem prejudicar o espetáculo com uma expulsão.

    Imagem: AP Photo/Hassan Ammar
  • 1992 - Restrições ao recuo aos goleiros

    Até aquele ano, a situação mais comum para um time que queria gastar tempo em campo era recuar a bola para que o goleiro a segurasse o máximo possível, o que impactava diretamente na dinâmica de uma partida. Visto como antijogo, o recuo intencional com os pés passou a ser proibido, e punido com tiro indireto dentro da área caso ocorresse. Toques de cabeça, peito ou ombro, no entanto, podem ser usados como recuo intencional.

    Imagem: Xinhua/Lui Siu Wai

Curtiu? Compartilhe.

Topo