La Copa

As estrelas vieram da Liga dos Campeões, os estádios são padrão Fifa, mas o futebol tem cara de Libertadores

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo (SP)

Futebol raiz?

Foi-se o tempo em que os melhores jogadores de cada continente se encontravam apenas a cada quatro anos na Copa do Mundo. Aproveitando a globalização para criar uma massa de fãs e receitas, os grandes clubes europeus cada vez concentram mais craques em seus elencos. Astros de seleções sul-americanas são colegas de time. O melhor jogador asiático é rival do eleito melhor da África no Campeonato Inglês. Todos eles se encontram, a cada semana, na Liga dos Campeões.

Quem pensava que a Copa do Mundo, com a elite do futebol reunida na Rússia, fosse emular o melhor torneio de futebol da Europa, porém, deve estar se decepcionando com o que vê em campos russos. Em que se pese os estádios de primeiro mundo construídos em padrão Fifa e protocolos adotados em simetria com as competições europeias, o que se vê é uma competição digna dos momentos mais emocionantes da Copa Libertadores  - sem cães entrando de surpresa no gramado, torcida cuspindo nos adversários e outras bizarrices que são, essas sim, exclusividades da competição sul-americana.

As oitavas de final do Mundial começam neste sábado e, diferentemente do que acontece com regularidade na Champions League, tentar adivinhar quem vai passar de fase é quase uma loteria. E como vivemos uma digna Copa Libertadores, vemos retrancas incríveis, resultados inesperados e não há chance de ter o mesmo time ganhando quatro edições seguidas.

Então, se você gosta de futebol raiz, a Copa da Rússia é para você.

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Quem vai ganhar a Copa?

Os grupos ainda não foram sorteados, as grandes transferências ainda estão no nível dos boatos, os elencos seguem indefinidos. Mas os favoritos da Liga dos Campeões já estão apontados nos sites de apostas: Real Madrid, Barcelona, Manchester City, Bayern de Munique, PSG. Pelo histórico dos últimos sete anos, a aposta é segura: juntos, eles foram 17 vezes às semifinais - e o PSG entra nessa conta mesmo sem nunca ter chegado tão longe.

Historicamente, a Copa do Mundo também é assim. Cinco equipes dominam as semifinais: entre Argentina, Alemanha, Brasil Holanda e Itália, pelo menos uma sempre chegou a essa fase do Mundial. Todos eles, desde 1930. Além disso, ficaram com 16 das 28 vagas para a penúltima fase do torneio nas últimas sete edições do torneio. Mais da metade.

Mas nesta edição, Itália e Holanda nem sequer foram à Rússia, a Alemanha já foi embora na fase de grupos e a Argentina precisou passar por cima da crise para se classificar. Entre os figurões, só o Brasil caminha com (alguma) tranquilidade. E, pelo chaveamento formado, brasileiros e argentinos só poderiam se cruzar exatamente na semifinal.

Essa dificuldade para fazer previsões é típica da Libertadores, em que desempenhos dos anos anteriores não servem de parâmetro. Nas últimas sete edições, só três times chegaram duas vezes à semifinal: Boca Juniors, Santos e River Plate.

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A Libertadores invadiu a Rússia!

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Suecos revoltados

A Suécia poderia ter eliminado a Alemanha ainda mais cedo se não tivesse levado uma virada improvável na segunda rodada. O resultado e uma provocação de Oliver Bierhoff, diretor da seleção alemã, fizeram o técnico Jan Andersson partir para a briga. Seguranças e membros da equipe de arbitragem precisaram separar a confusão.

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Provocações croatas

A Croácia deu um baile na Argentina ao vencer por 3 a 0. Durante o jogo, os argentinos começaram a exagerar nas faltas cometidas e passaram a ouvir provocações dos croatas. O lateral-direito Sime Vrsaljko chegou a falar que os rivais não sabiam perder, discutiu com Jorge Sampaoli e também aproveitou para revidar as pancadas recebidas.

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"Hinchadas locas"

Argentinos e brasileiros têm protagonizado momentos bonitos pelas ruas e pelos estádios na Rússia. As torcidas mostram criatividade para criar músicas e mobilizam multidões para entoá-las. Nada de palminhas e comportamento de plateia. A ordem é torcer como nunca para empurrar as seleções. Nada que a Libertadores não mostre sempre.

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Dios das tribunas

Assim como acontece em La Bombonera, onde é o único proprietário de um camarote, Diego Maradona tem tomado as tribunas dos estádios da Copa para si. No dramático jogo contra a Nigéria, deu show com suas reações absurdas e foi assediado o tempo todo por torcedores. Só não peça compostura ao maior ídolo dos argentinos na hora de comemorar.

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Copa das retrancas

De um lado, o PSG, que mandou 12 jogadores à Copa do Mundo. Do outro, o Celtic, da Escócia, que teve quatro convocados. Sem dó nem piedade, o PSG fez 7 a 1 em casa, e 5 a 0 na casa do rival. Resultados que não surpreenderam ninguém. Afinal, ao menos na Europa, quando um time de estrelas joga contra uma equipe modesta, as goleadas são praticamente garantidas. Mas a regra que vale na Champions está cada vez mais ausente na Copa do Mundo.

Após 48 jogos de primeira fase na Rússia, foram registradas apenas nove vitórias por 3 a 0, 3 a 1 ou com mais gols marcados, representando apenas 18% das partidas do torneio. Em 2014, foram 15 jogos recheados de gols na fase de grupos. Seis a mais.

Olhando para a última edição da Liga dos Campeões, 40% dos jogos acabaram com vitória ampla, quase sempre de um time de um grande centro sobre o de um país periférico no futebol. Aqui, mais uma vez, a Copa se assemelha à Libertadores. Ainda que também não se discuta a diferença técnica entre Flamengo e Emelec, por exemplo, as vitórias por placar expressivo na competição sul-americana são bem menos constantes. Na edição deste ano, foram 23 em 96 jogos, ou 23% dos jogos.

Assim, a média de gols também é parecida. A primeira fase do Mundial teve 122 gols, com média de 2,52 por jogo. Mais próxima do número da fase de grupos da Libertadores 2018, com 2,25 gols por jogo (216 no total), do que da Liga dos Campeões 2017/18, com 3,18 gols/jogo (306 no total).

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Europeus e sul-americanos polarizam mata-matas

Historicamente, a Copa do Mundo nos ensina que a fase de mata-matas é protagonizada pelos times da América do Sul e da Europa. Os demais é que se são intrusos. Exatamente como na Libertadores, que tem visto uma concentração cada vez maior de equipes de seus dois principais centros, Brasil e Argentina.

Há décadas é assim, mas desde que a Conmebol ampliou o número de vagas para clubes brasileiros a argentinos na competição, a concentração também cresceu. Em 2017, 11 times dos dois países foram às oitavas, número que subiu para 12 em 2018. As zebras continuam passeando (o Barcelona de Guayaquil foi semifinalista no ano passado, por exemplo), mas perdem espaço para surpresas saídas dos centros já tradicionais.

É exatamente assim na Copa. Pela primeira vez desde 1982, não há nenhum africano nas oitavas, enquanto apenas duas seleções que não europeias ou sul-americanas avançaram: México e Japão. Surpresas que batem à porta junto com Colômbia, Bélgica e Croácia, que derrubaram favoritos para liderarem seus grupos.

Quem leva a melhor?

Nas Copas com 32 times, sul-americanos estão mais acostumados com os mata-matas

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Europeus

Com quase 75% dos jogadores convocados para a Copa atuando em algum clube ligado à Uefa, as seleções europeias aproveitaram o intercâmbio para obterem, até aqui, um desempenho histórico. Das 14 equipes que chegaram ao Mundial, 10 avançaram. Em 2014, foram só cinco. O aproveitamento é de 59%.

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Sul-americanos

Apesar de ter seu pior início de Copa em mais de três décadas, a América do Sul teve sucesso na primeira fase. Das suas cinco equipes classificadas, quatro avançaram às oitavas. Nas últimas seis edições, com 30 participações, só ocorreram sete eliminações na fase de grupos. O aproveitamento é de 76,6%.

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Rolou pancadaria na Copa e o principal culpado é surpreendente

Os uruguaios podem seguir suando a camisa, dando carrinhos para recuperar bolas perdidas e brigando até o fim pela seleção. Mas não pense que a pancadaria é uma arma presente no repertório da Celeste. Em número de faltas cometidas, os uruguaios foram ficaram na 25ª colocação. Em cartões amarelos, ficaram no 31º lugar. 

Quem resolveu ir à Rússia para bater sem piedade foi a Coreia do Sul. Os asiáticos foram os segundos em cartões recebidos - 10, contra 11 do Panamá - e os primeiros em faltas cometidas: 63. O número é mais de duas vezes maior do que o da seleção mais disciplinada da primeira fase. O Japão, que contou com essa lealdade para vencer Senegal nos critérios de desempate, só cometeu 28 faltas.

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Copa tem sua própria Bolívia voando na "altitude"

Um dos maiores perigos da Libertadores é enfrentar os times bolivianos fora de casa. Os rivais sofrem com os efeitos da altitude, cansam mais rápido e são castigados pela velocidade dos donos da casa. Quando seu time parece não ter mais perna, as equipes da Bolívia parecem correr ainda mais. 

Não, a Rússia não tem estádios na Copa do Mundo em zonas de altitude elevada. Mas a seleção anfitriã parece mais turbinada que as demais por jogar na própria casa. Nenhuma dos países classificados para as oitavas de final correu mais do que os russos na primeira fase.

Foram 331 quilômetros em três partidas, quantidade superada só pelas eliminadas Sérvia e Alemanha. Nos dois primeiros jogos, foram 233 quilômetros. Um vigor físico que fez toda diferença contra os frágeis Egito e Arábia Saudita.

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Craques são exclusividade da Liga dos Campeões

Quando a Copa do Mundo tiver acabado, não dá para esperar que a Libertadores recomece parecendo o Mundial em nível técnico. Ao mesmo tempo em que mostrou sua cara "copeira", o torneio na Rússia também deixou claro que os melhores do mundo estão na Europa. E que esse é um caminho sem volta.

Basta ver que os 10 times mais bem cotados para ganhar a Champions têm um total de 95 jogadores ainda vivos na Copa do Mundo. Entre os 116 que eles levaram ao Mundial, já caíram 13 alemães e mais oito atletas espalhados por outras dez seleções já eliminadas.

Enquanto isso, as 16 equipes que seguem na competição têm apenas 14 jogadores oriundos da Libertadores. Boca Juniors (quatro) e Independiente (três), ambos da Argentina, são os times com mais representantes nas oitavas da Copa, centralizando talentos nas seleções argentina e colombiana.

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Brasil é o menos sul-americano entre sul-americanos

Entre as seleções sul-americanas, os brasileiros são os menos sul-americanos na Copa. Tite levou três jogadores que atuam em clubes do continente, e só Fagner, do Corinthians, jogou até agora -- e porque Danilo, do Manchester City inglês e o titular da lateral direita, se machucou.

Argentinos, uruguaios e colombianos são mais fiéis a sua raiz. Cada uma das três seleções, como os brasileiros classificados para as oitavas de final do Mundial, já levaram a campo quatro atletas que jogam na América do Sul - seja começando como titular, seja entrando no decorrer da partida. O Peru, que já voltou para Lima, também teve quatro sul-americanos, mas a campanha decepcionou uma das torcidas mais animadas na Rússia.

Jorge Sampaoli iniciou o Mundial apostando numa dupla que fez sucesso no Independiente, clube argentino campeão da Copa Sul-Americana em 2017. O lateral Tagliafico, é verdade, nem entra na conta de atletas que jogam em casa porque foi vendido ao Ajax da Holanda, e a Fifa já o considera nesse time. Mas Meza, não. Ele foi titular nas duas primeiras partidas, e entrou bem na decisiva contra a Nigéria -- foi dele o cruzamento para o gol salvador de Rojo.

Enzo Pérez, do River Plate, passou a ser aposta no segundo jogo, contra os Croatas, e se manteve ante a Nigéria -- está com uma lesão nos glúteos, mas nada grave e deve ficar na equipe no jogo de sábado contra a França, pelas oitavas. Sampaoli também tem apostado, como opção para o segundo tempo, ao veloz Pavón, do Boca Juniors, e para o gol levou Armani, também do River, à titularidade depois que Caballero falhou feio contra os croatas.

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Arrascaeta, do Cruzeiro, Rodriguez e Varela, do Peñarol, e o bom Nandez, do Boca Juniors, foram os uruguaios de times sul-americanos que entraram em campo nessa Copa. Destes, o zagueiro Varela e o meia Nandez parecem titulares seguros até a campanha uruguaia terminar. No banco ainda tem o vascaíno Martin Silva, mas como suplente de goleiro dificilmente será usado.

A Colômbia teve Barrios (Boca), Quintero (River) e Aguillar, único "colombiano", do Deportivo Cali, e no finalzinho do jogo contra o Senegal, com o time se classificando, entrou em campo o palmeirense Borja, que fez sua estreia em Mundiais.

O eliminado Peru usou dois jogadores do Flamengo, Trauco e Guerrero (que conseguiu jogar a Copa na última hora com um efeito suspensivo de punição por doping), além do são-paulino Cueva e Rodriguez, do Junior Barranquilla.

Nesse cenário, portanto, seis atletas que atuam no Brasil foram a campo, mas a Argentina ganhou essa, com sete. No Uruguai foram dois, contra outros dois da Colômbia.

No Brasil é improvável que Tite aumente o número de atletas de times sul-americanos em campo até o fim da Copa. Cássio, do Corinthians, é o terceiro goleiro, ou seja, foi à Rússia a passeio, enquanto o zagueiro gremista Geromel dificilmente entraria em um cenário que não fosse nos minutos finais de um jogo ganho.

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