2002

Copa Brasileira de Letras: por que uma Copa no Japão, que nem sabe o que é futebol?

Eliane Brum Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 2002 é de Eliane Brum, com a história de um casal e os jogos de madrugada da Copa do Japão e da Coreia.

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Dentes

Ela lembra de ter feito pipoca. E pinhão. Lembra não porque manter a pipoca circulando nos jogos havia se tornado parte do seu destino. Mas porque o barulho dos dentes dele triturando a pipoca e às vezes cuspindo a casca no prato entrava na sua cabeça até o fundo. Tinha sido a primeira observação da mãe quando ele se apresentou na sua casa, quase dez anos atrás, para um namoro sério. Ele é um bom trabalhador, mas mastiga de boca aberta. Ela ignorou. Havia qualquer coisa de erótico nos dentes brancos e grandes dele se cravando na carne assada. Sua calcinha ficava úmida na cadeira que a mãe encapara com paisagens de montanha. Seu desejo manchava o sorriso idiota do garoto tirolês. Era o mais perto de uma menina má que ela podia chegar. Böses Mädchen. Ela sempre dava um jeito de se esfregar um pouco mais na desculpa de passar o pão, pegar mais café, cortar uma fatia do bolo de nata.

“Cerveja!”, ele gritou do sofá.

E ela não correu. Mas tu vai tomar cerveja de madrugada?, arriscou. Não é melhor um mate? Ele a encarou com olhos maus. Fazia tempo que ele tinha olhos maus. “Não tenho culpa se a porra da Fifa escolheu essa porra de país do outro lado do mundo pra fazer a Copa.” Achei que tu gostasse dos japoneses, ela disse. “Eles só são bons para vender verduras, não entendem nada de futebol. Não sabem nem o que é um escanteio.”

Bufou no sofá. “E roubam no preço. Olha o japa ali da esquina, um ladrão.” Ele não é japonês, é coreano. “Tudo olho puxado, não tem como distinguir. E por que uma Copa do Mundo no Japão, que nem sabe o que é futebol? Me diz que porra de campeonato o Japão ganhou pra merecer a porra de uma Copa do Mundo.” Não era uma interrogação. Naquela época ela já não lembrava. Quando o homem de dentes brancos havia abandonado todas as pontuações para se tornar apenas exclamações?

Ela conhecia o roteiro completo da argumentação que viria a seguir, repetida e repetida desde que William Bonner anunciou no Jornal Nacional que o Japão e a Coreia sediariam a Copa do Mundo de 2002. Ele estava puto por ter de acordar de madrugada para assistir aos jogos. Porque não havia como fazer churrasco naquele horário e fazer virar uma festa. Porque depois ele haveria de trabalhar e haveria de trabalhar exausto de sono. Porque os dias do jogo do Brasil já não poderiam parecer feriados. Porque sentia que uma Copa do Mundo no Japão era uma injustiça cósmica com todos aqueles nunca tiveram direito a um jet lag.

E ela, que só havia se interessado por futebol na Copa de 1982 por causa das pernas de Éder? O canhão do Brasil, o chute mais forte do mundo. E ela e as amigas batiam palmas no sofá, tomando minuano e comendo pastelina e sonhando que a bola entrava porque essas eram as imagens que conheciam, as das coisas entrando. Era assim ser menina, as coisas iam entrando. Como a coisa dele nela. Estranho e doído no princípio, mas depois uma violência particular. Como os dentes dele que foram se cravando na carne dela. Grandes e brancos, às vezes vermelhos do sangue que ela lhe dava.

“Cerveja!”

Levou a cerveja. Kaiser. Na opinião dela parecia um xixi de gato, mas era a que ele gostava. Sentou-se no sofá coberto por uma capa de flores grandes. Ela também havia sucumbido às capas constrangedores menos pelo padrão ingênuo, mas porque tão cheias de esperança. Ele pareceu não notar que ela estava ali. Mastigava com fúria.

Ronaldinho Gaúcho ocupava toda a tela. Os dentes projetados para a frente, o rosto esquisito e feliz. Para ele, ofensivamente feliz, ela sabia.

Não é incrível que o melhor Ronaldo seja gaúcho?, ela disse. “Ele nem é o melhor Ronaldo nem é gaúcho”, ele rosnou. Como não é gaúcho? Ele nasceu em Porto Alegre. “Por acaso. Não basta nascer pra ser gaúcho. Gaúcho sou eu, gaúcho é o Bagre Fagundes, gaúcho é até o Borghettinho. Pronto. Gaúcho é o Renato Gaúcho. O Ronaldinho Gaúcho não é gaúcho.” Tu tá dizendo que ele não é branco, por isso não é gaúcho? “Não, isso é tu que tá dizendo. Eu por acaso sou racista?” Sim, tu por acaso é racista. Bem racista. “Mas é teu avô que diz que é melhor ter uma filha puta do que casada com um preto. Não eu. Por acaso não jogo futebol com o Negão da Restinga?”  Ele limpa a quadra em que tu joga com o pessoal da firma, não é o mesmo que ser teu colega de futebol. “Às vezes ele joga, quando falta alguém, e ninguém trata ele diferente.” Tá.

Ela mordeu a pinha, e o pinhão aterrissou aquecendo a sua boca, o quase queimado da língua como um prazer secreto na madrugada de inverno. Os dentes pequenos dela morderam a carne macia bem lentamente.

“Teu avô carcamano ficou bem satisfeito que tu casou com um alemão.” Não. Ele não tinha esquecido. A discussão ainda continuava. Ela despediu-se com pena do pinhão que brincava no playground letal de seus dentes, engolindo-o de uma só vez.

E desde quando tu é alemão? Só porque teus avós vieram da Alemanha mortos de fome quase dois séculos atrás não quer dizer que tu seja alemão. “É claro que sou alemão. Olha pra mim. Alemão.” Se o Brasil jogar a final com a Alemanha, tu vai torcer pra Alemanha? “Isso não vai acontecer, essa porra desse Ronaldinho que não é Gaúcho vai entregar o jogo pra porra dos ingleses. Olha só esse cabelo, esses dentes, essa cara. Ele nem parece um atleta. Se fosse como um daqueles negões da seleção de Camarões, ainda dava pra respeitar. Mas sabe o que ele parece? Uma mistura de Saci Pererê com Curupira.” E ele riu com todos aqueles dentes, encantado com seu senso de humor.

Ela mordeu outro pinhão e gostou do sal entrando pela boca. “Tu tá com aquele sorriso, aquele sorriso que eu odeio.” Eu só tava pensando que Saci Pererê não. Pelo que dizem as inglesas, ele não só tem duas pernas, como três. “Schlampe.” Tu me chamou de puta? “Tu acha que alguém pode dar oito numa noite? Isso é mentira pra vender jornal inglês vagabundo. E cala essa tua boca que eu não consigo me concentrar no jogo. Olha lá. Teu Saci Pererê vai cobrar uma falta. Com aqueles dentes, o melhor que ele pode fazer é comer a bola.”

O guri dos dentes projetados pra frente chutou. A bola parecia viva. Uma extensão do pé de Ronaldinho Gaúcho. Mas não só. A bola tinha cérebro. Cruzou por cima do goleiro Seaman. O inglês ficou olhando, ainda descrente, como se estivesse diante de uma batalha de Trafalgar ao contrário. E não era Napoleão afundando os navios da Real Marinha Britânica. Mas o piá dentuço do futebol alegre. Ronaldinho não era apenas gaúcho, mas a expressão do melhor do Brasil quando o Brasil descobre que sua genialidade mora nos impossíveis e nos exageros, no rosto improvável de Ronaldinho. Para então se esquecer mais uma vez.

Ele não comemorou o gol. Os olhos azuis dos avós alemães estavam injetados de sono e de cerveja. Sua brancura era imensa.

Por um momento ela teve medo dele. Mas o conhecia. E havia se acostumado. Era como não conseguir parar de roer as unhas. Irresistível e banal ao mesmo tempo.

Ele deu uma palmada na sua buceta e apertou seu seio direito com força. Ela segurou a respiração, sempre incerta se gostava ou se deveria protestar.

Estamos fodidos nessa porra de país dominado por essa sub-raça.

Cravou os dentes grandes e brancos no ombro dela. E cuspiu palavras e saliva. Talvez um pouco de sangue.

Pra piorar, só falta o Lula virar presidente!

Dormiu antes da expulsão de Ronaldinho eternamente Gaúcho. E de perceber que tinha brochado.

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Eliane Brum é escritora, jornalista e documentarista. Autora de seis livros, cinco são de não-ficção: "Coluna Prestes: o avesso da lenda" (Prêmio Açorianos de Autora-Revelação), "A Vida Que Ninguém Vê" (Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Reportagem), "O Olho da Rua", "A Menina Quebrada" (Prêmio Açorianos de Melhor Livro do Ano) e "meus desacontecimentos". Publicou também o romance "Uma Duas", finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, Portugal-Telecom e Jornada Nacional de Literatura. Atualmente, dedica-se a projetos de reportagem junto à população ribeirinha da Amazônia e nas periferias da Grande São Paulo. É colunista do site El País Brasil e do jornal impresso El País, de Madri. Também é colaboradora do jornal britânico The Guardian.

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