1994

Copa Brasileira de Letras: um vilarejo nas montanhas do Iraque e o destino de Romário, Ronaldo e Ronaldinho

Edney Silvestre Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1994 é de Edney Silvestre, que recorda como a Copa de 1994 foi a responsável por um momento marcante em uma entrevista nas montanhas do Iraque, seis anos depois.

1994

Antes da derrubada de Saddam Hussein, visitei um remoto povoado no norte do Iraque. Só velhos, mulheres e crianças não envolvidos com a resistência ou guerrilhas viviam ali. Não tinham água encanada, nem rede de esgotos. As noites eram iluminadas por lamparinas à óleo. As noites boas. As menos boas, por clarões de morteiros e bombas.

De vez em quando, eram as tropas de Saddam que os atacava. Em outras, eram bombardeados por aviões de Bill Clinton. Quando não por aviões e tropas da Turquia, que – como os Estados Unidos, o governo iraquiano e o do Curdistão - não reconhecia seus direitos sobre aquele território em que habitavam desde os tempos de Cristo. Ou um tanto antes. Dois mil anos antes, para ser mais acurado.

Os curdos daquela aldeia não viviam muito diferentemente do tempo de seus tetra-alfa-mega-bisa-tataravós, exceto pela troca de tendas por habitações de alvenaria e do surgimento de um interesse brotado menos de uma década antes. Seis anos atrás, se eu novamente quiser ser acurado. Um interesse que, como brasileiro, me constrangeu profundamente. Ah, faltou dizer o óbvio: não tinham televisão e a internet era menos que um conceito incompreensível.

Quem se interessa minimamente por futebol há de se lembrar que o conceito de futebol como big business, criador de patrocínios milionários de bebidas alcoólicas, inventor de mitos by marketing, de astronômicos salários para alguns jogadores e contratos capazes de fazer a fortuna de certos pais, irmãos e empresários, brotou justamente no país dos pernas de pau, os Estados Unidos da América. Justamente, também, e não por coincidência, onde foi realizada a Copa do Mundo de 1994. Uma combinação de sexismo, consumismo e machismo às avessas aguardava para entrar em campo.

O Brasil ganhou aquela Copa e se tornou tetracampeão, o primeiro da história do futebol, ao vencer a Itália por 3 a 2 numa disputa por pênaltis na cidade de Pasadena, na Califórnia. Em tempo: a Pasadena da refinaria comprada pela Petrobrás por U$ 1,2 bilhão e alvo de investigações de propinas pela Lava Jato fica no Texas. De volta às estatísticas tetracampeãs. Antes, a seleção brasileira havia derrotado Suécia (1 a 0), Holanda (3 a 2), Estados Unidos (1 a 0), Camarões (3 a 0), Rússia (2 a 0) e empatado com a Suécia (1 a 1) no terceiro jogo.

O futebol, que no Brasil foi chamado de “o viril esporte bretão”, em gramados norte-americanos era tido pura e simplesmente como esporte de menina. Praticado por garotas – e por meninos mais frágeis - porque não exigia nem a força, nem a brutalidade, nem o choque de corpanzis dos atletas de rúgbi e football, que nós chamamos de futebol americano.

Mas anunciantes e mídia precisavam faturar com o soccer. Convencer que também era coisa de macho. Enfiá-lo goela abaixo, literalmente, no caso das colas e cadeias de fast-food.

Em Nova York, onde eu morava na época, a Copa rolava por outras nove cidades como se acontecesse em galáxias distantes. Os nova-iorquinos reservam um condescendente desprezo pelo restante do país e o que excitava o povo de Dallas, Chicago, Orlando, Washington, Boston, Califórnia, Detroit e até ali do outro lado do rio Hudson, em Nova Jersey, provocava apenas bocejos na ilha de Manhattan. Fora das comunidades brasileira e hispânica no bairro de Queens, a conquista inédita do time brasileiro passou batida pelos Manhattanites.

Como dizia o dramaturgo Edward Albee, Nova York se acha o centro do mundo – e não é.  Não sempre. A prova disso é que a desdenhada World Cup teve o maior público de todas as Copas, assim como o recorde até hoje de espectadores de uma final: três milhões e seiscentos mil. Qual cerveja, refrigerante ou xísburguer com batata frita pode ignorar essa abertura do cofre do Tio Patinhas?

Por todo o país, campinhos de beisebol se adaptaram ao lucrativo esporte bretão. Meninos se uniram a meninas na briga por gols, sob aplausos e torcida de mães (soccer moms virou uma instituição quase tão popular e onipresente quanto a das mammas italianas e jewish moms), pais e professores. Além de catapultar para fama planetária nossos Ronaldo, Ronaldinho e Romário. Muito além do que você e eu jamais poderíamos imaginar. Eu, principalmente.

Para mim, a subsequente expansão da popularidade do soccer nos Estados Unidos pouca diferença fez, pois sou daqueles cinco brasileiros (não conheço os outros quatro) que não ligam para futebol, não sabem a escalação de seu time (torço pelo Flamengo) e, quando criança, era motivo de briga entre donos da bola por se recusarem a ter-me entre seus jogadores. Registrei aquele ano de 1994 por conta das mortes de Ayrton Senna e Kurt Cobain, a guerra na Bósnia, as eleições de Nelson Mandela e Silvio Berlusconi, o caso O.J. Simpson, o atentado em Buenos Aires que matou 85 judeus na AMIA, o início das viagens do trem Eurostar sob o Canal da Mancha, o fim da Guerra Fria.

Mas, então, um dia, eu cheguei àquela remota aldeia curda aos pés das montanhas Zagros. Fui apresentado ao ancião que era uma espécie de guardião da memória e da cultura milenar de seu povo, responsável por transmitir às novas gerações, como a garotada que já rodeara nossa pequena equipe, os ensinamentos da cultura indo-europeia que vinham sendo passados oralmente há quatro mil anos.

Antes que eu começasse a entrevista, mediada por um tradutor, o ancião dirigiu-me uma pergunta. Não compreendo uma palavra da língua curda, mas tive a impressão de ter ouvido o som de palavras vagamente familiares. E eram mesmo. Daí meu constrangimento espantado e minha vergonhosa ignorância de um dos aspectos mais sólidos da nossa cultura popular. Shame on me. O velhinho queria saber onde estavam e o que faziam naquele ano 2000 os brasileiros Romário, Ronaldo e

Ronaldinho.

Rio de Janeiro, 24 nos depois daquela Copa

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Edney Silvestre foi correspondente da Rede Globo em Nova York, tem obras publicadas na França, Alemanha, Estados Unidos, Sérvia, Itália, Holanda, Portugal, Inglaterra e, claro, Brasil. Ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Romance por “Se eu fechar os olhos agora”.

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