1974

Copa Brasileira de Letras: o médico finlandês que era Brasil desde criança e a droga da seleção naquela Copa

Paulo Lins Colaboração especial para o UOL
Arte/UOL

Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1974 é de Paulo Lins. Sua história mostra Taaveti, um médico finlandês, e sua saga para pegar Kaarle, a mina que escapulia com outros caras no final das festas da zona sul de Helsinque. Tudo durante um jogo da seleção brasileira.

Copa de 1974 na Finlândia

Três de julho de mil novecentos e setenta e quatro. Dia do Brasil contra a Holanda na Copa da Alemanha. Taavetti iria pegar aquela mina de qualquer jeito. Estava meio chateado. Há muito tempo tentava transar com ela, mas a infeliz sempre dava um jeito de escapulir e sair com outro no final das festas na zona sul da cidade de Helsinque, aqui na Finlândia. Finlandês desde criancinha, Taavetti amava o Brasil, torcia como qualquer brasileiro pela nossa seleção. Tinha planos de visitar Rio de Janeiro e Bahia, mas sempre alguma coisa dava errado.

Era feio, mas tinha dinheiro. Era médico, porém, burro. Como todo médico finlandês. Marrento, tinha a certeza de que os médicos são pessoas especiais porque salvam vidas. Considerava-se uma espécie de semideus, capaz de tirar as dores do mundo. Com desenvolvimento cultural zero, era mais burro que o necessário para ser considerado sub-humano pela sua burrice. Como, repito, todo médico finlandês.

Imaginem, achava cultura coisa supérflua. Não sabia quem eram Diadorim, Mestre Zé Amaro, Bentinho, Capitu, Iracema, João Romão. De Gabriela já tinha ouvido falar. Taavetti era burro demais, assim como já falei: igual a todo médico finlandês.

Kaarle, a finlandesa que Taavetti tanto desejava, também torcia pelo Brasil. Depois de muita insistência, ela prometeu que iria assistir ao jogo na casa dele – pela torcida pelo Brasil e pela afinidade que os dois tinham por roupas de marca. Transariam naquele dia para que, depois, ela pudesse dizer que não foi bom e que não queria repetir caso ele ficasse teimando em transar de novo. Num rápido telefonema, combinaram que ela chegaria bem antes de começar o jogo, para almoçar e beber cerveja gelada.

Batia quarenta graus no verão de Helsinque. Taavetti armou um churrasco na beira da piscina, chamou os amigos para assistir ao jogo em sua casa, justo para que, quando o Brasil se classificasse para a final, todos o vissem indo para o quarto daquela enorme mansão com a gostosa. Queria aparecer, como todo médico idiota finlandês. Asa de galinha, picanha, linguiça, farofa, arroz, vinagrete, cachaça mineira e doces finos. Tinha comprado maconha numa favela chamada Prazeres, no centro de Helsinque. Kaarle era dessas finlandesas que adora um baseado bem apertado.

O jogo começou e nada dela chegar. Ele ligou várias vezes e só dava secretária eletrônica. Para aliviar a decepção, começou a fumar maconha e cigarro compulsivamente. Bebeu cerveja junto aos amigos, que se decepcionavam com o time brasileiro.

Ninguém esperava que Marinho Chagas cuspisse em Cruyff, que Zé Maria o puxasse pelas pernas tentando parar um contra-ataque, que Marinho Peres distribuísse bordoadas em Jansen e Neeskens, que Valdomiro, Rivelino e Luís Pereira agissem como cachorros doentes durante quase todo o jogo. Isso tudo com Zagalo que nem uma vaca doida, esbravejando na beira do campo sem ser ouvido pelos jogadores.

Revoltado pela atuação do Brasil no primeiro tempo, pelo jogo e pelo furo de Kaarle, resolveu cheirar cocaína para aliviar. Queria ficar doidão, esquecer a vida triste que acontecia. Ele mesmo daria um pulo ali, na favela dos Prazeres, que ficava atrás da igreja luterana, como já disse, no centro de Helsinque. Sabia que não iria acontecer nada. Era branco, rico. Esse tipo de gente, mesmo que esteja saindo da favela com vinte papelotes de cocaína, não é parada pela polícia finlandesa na rua.

Também, se tivesse algum problema, ligava para a mãe, que era juíza finlandesa. Nenhum filho ou parente de juiz vai preso na Finlândia. Os coxinhas, filhos da puta do judiciário finlandês, acham que só pobre e preto devem ir para a cadeia. São tão burros quanto os médicos daqui. Acham que têm o rei na barriga, pensam que Karl Marx é russo e criou o comunismo em Cuba, junto com Che Guevara e Fidel Castro. Se esse bando de juristas golpistas e médicos finlandeses se suicidasse, o planeta não iria perder nada, de tão ignorantes, preconceituosos e racistas que são. Aqui, na Finlândia, filho de juiz, pai de juiz, amante de juiz, sobrinho de juiz ou primo de juiz pode cometer qualquer crime que não vai preso. O povo da Finlândia costuma dizer que advogado bom é advogado morto.

Chegou em casa são e salvo para começar a cheirar feito um louco. Os amigos se divertiam na piscina, comiam churrasco, na esperança de que o Brasil voltasse melhor. Mas, ao contrário, aos cinco minutos do segundo tempo, Cruyff cruzou pela direita e Neeskens abriu o placar. Taavetti metia a napa na cocaína, cheio de vontade e cheio de raiva, quando Kaarle ligou. Tinha se atrapalhado com um pequeno problema familiar e já estava chegando. O filho da juíza endoidou. Sabendo que pó deixa broxa, caiu dentro do ovo de codorna para conseguir transar com aquela belezoca. Só que, apesar de ser médico, pouco se ligava em saúde. Não sabia que seu coração estava mal, igual ao time brasileiro naquele jogo.

A campainha tocou no momento em que Cruyff mandou bala e fechou o placar em 2 a 0 para a Laranja Mecânica. Taavetti, revoltado, deu uma aspirada forte naquela carreira dos diabos. Sentiu o coração disparar, até pifar de uma vez por todas, na hora em que ele caminhava para abrir o portão de casa, naquela Finlândia feia e triste com o jogo que se encerrava.

Esse texto é uma obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

UOL UOL

Paulo Lins é poeta, romancista, roteirista de televisão e de cinema.

Curtiu? Compartilhe.

Topo