Há uma meia dúzia de anos eu não me encontrava com Zé Cabala. Para quem nunca ouviu falar dele, esclareço que trata-se do carteiro de almas, do telex do além, do WhatsApp dos espectros.
Eu havia recorrido ao grande médium muitas vezes. Sempre que precisava falar com algum futebolista que já enxergava a grama pela raiz, o mestre recebia o desencarnado e eu fazia uma bela entrevista.
Alguns incrédulos, no entanto, afirmavam que Zé Cabala era um sujeito que sabia tudo sobre a vida dos grandes craques e apenas fingia as incorporações. Ah, pobres céticos, não veem a beleza do milagre...
Confesso que pensei que encontraria tudo igual: seu jardim estaria tomado por barracas de credores, sua Kombi enferrujando na garagem e Gulliver, seu assistente anão, me receberia com alguma roupa maluca.
Nada disso.
Não havia um só cobrador, vi uma Mercedes estacionada (placa KBL 6969) e Gulliver veio me atender usando um elegante terno branco.
- Em que posso ajudá-lo?
- Não está me reconhecendo? Eu era colunista de futebol. Fiz várias entrevistas com a colaboração de Zé Cabala.
- Ah, lembro vagamente... Mas o mestre não trabalha mais com Esportes. Agora está em Política.
- Sério?
- Tanto quanto possível. Ele está sendo muito procurado por congressistas que querem saber como os antigos escapavam da cadeia.
- Será que ele não poderia fazer uma exceção e me atender?
- Se o senhor pagar nossa nova tabela...
Lá se foi todo meu pagamento por este texto. Mas eu achava que valeria a pena.
Quando entrei na sacrossanta sala de meditação (que os infiéis chamam de quartinho dos fundos), vi que as coisas também tinham mudado por lá. As paredes estavam forradas de veludo, o chão coberto por tapetes persas, luminárias de cristal pendiam do teto e um caríssimo incenso de ágar perfumava o ambiente.
- Meu caro foliculário, há quanto tempo. Pensei que nunca mais nos veríamos – disse o mestre dos mestres abrindo os braços. – Quem você deseja entrevistar?
- Preciso falar com algum espírito que tenha levantado a Copa de 70.
- Conheço o espírito perfeito! – falou Zé Cabala.
Então ele fechou os olhos e começou a marchar ao meu redor, cantando: “Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados. Nas cores da nossa farda, rebrilha a glória, fulge a vitória...”.
Quando o hino acabou, ele bateu continência e disse:
- General Emilio Garrastazu Médici se apresentando.
Eliminando adversários
Fiquei sem saber o que fazer. Estava frente a frente com o espírito do ditador dos Anos de Chumbo. Tinha centenas de perguntas para lhe fazer. Mas, como o assunto era a Copa de 70, me contive.
- Vamos começar por uma coisa que nunca ficou clara: É verdade que o senhor mandou demitir João Saldanha, o técnico da seleção, porque ele não quis convocar o Dario?
- De jeito nenhum.
- É que ele teria dito algo como: “O presidente convoca os ministros, mas eu é que escalo meus jogadores”. E aí o senhor exigiu sua cabeça.
- Nada disso. A resposta do Saldanha foi bem mais educada. Ele falou: “O Brasil tem 80, 90 milhões de torcedores e gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time, então tá vendo que nós nos entendemos muito bem”.
- Se é assim, por que ele foi substituído pelo Zagallo?
- O Saldanha era membro do Partido Comunista Brasileiro. Já pensou se lá no México, no meio de uma entrevista coletiva, ele tira uma lista de presos políticos do bolso e começa a falar que o regime militar matava e torturava?
- Entendo... E o senhor mantinha algum controle sobre a seleção?
- Controle, não. Uma observação atenta, sim. O brigadeiro Jerônimo Bastos era o chefe da delegação e o major Roberto Ypiranga Guaranys era o chefe de segurança.
- Esse major não estava envolvido em casos de tortura?
- Tortura?
- Houve 1206 denúncias de tortura em 1970.
- Lembra da estreia contra a Tchecoslováquia? Que jogo!
- O senhor não quer falar sobre tortura?
- 4 a 1! Assim é que se trata comunista.
- Está bem, fiquemos no futebol... Como foi a segunda partida, aquela contra a Inglaterra?
- Uma batalha dura. O Gérson não jogou e fez muita falta. Só no segundo tempo o time desencantou. Tostão driblou três, passou para Pelé, que deu um toquinho para Jarzinho, que mandou bala. Até escrevi um telegrama bonito para o time: “Mando-lhes meu comovido abraço de torcedor, pela demonstração de técnica, serenidade, amadurecimento, inteligência e bravura”.
- Seu envolvimento com o futebol era uma tentativa de se tornar popular?
- FHC não chamou a seleção pentacampeã para Brasília? Lula não trouxe a Copa para o Brasil?
- Hum... Não tinha pensado nisso. Vamos ao terceiro jogo, contra a Romênia.
- Foi uma batalha mais dura que o esperado. Gérson e Rivellino estavam fora de combate. Mesmo assim, vencemos por 3 a 2.
- O jogo não foi um dia antes do sequestro do embaixador alemão pela Vanguarda Popular Revolucionária?
- Para você ver. Os esquerdistas não respeitam nem a Copa.
- Mas os militares também não. Havia 500 presos políticos em junho de 1970.
- Engano seu. Não havia nenhum político preso. Eram ladrões de bancos, assassinos, terroristas. No meu governo nenhum político foi cassado, quanto mais preso.
- Por conta daquele sequestro vocês tiveram que libertar 40 pessoas e enviá-las para a Argélia, não é?
- Sim. Mas felizmente os jogadores se manifestaram contra o sequestro. Lembro que, dias depois, saiu na Folha de S. Paulo: “Notícias do México dão conta da perturbação que a notícia do sequestro provocou no ambiente do nosso selecionado. Pelé, Rivellino e outros jogadores manifestaram-se, condenando o ato terrorista”.
- Hum... dei um Google aqui e parece que as tais “notícias” eram, na verdade, uma nota oficial do Ministério do Exército. Ela dizia: “Causou profundo impacto na Seleção a notícia chegada ao México sobre o sequestro do embaixador alemão. Pelé, Brito, Rivelino, Clodoaldo e outros craques lamentaram que maus traidores e criminosos venham a quebrar a tranquilidade e o entusiasmo da Seleção.”
- Notícia, nota oficial, notícia oficial... Qual a diferença?
Mata-mata
Voltei ao futebol:
- Depois veio o 4 a 2 contra o Peru, já nas quartas de final.
- Talvez aquela tenha sido a melhor seleção peruana de todos os tempos. O técnico era o Didi. Detesto quando os nossos vão para o outro time. Ah, maldito Lamarca! – disse ele dando um soco na mesa. Por alguns segundos ele ficou me encarando com olhos frios e eu gelei. Aí, respirou fundo e, mais controlado, continuou:
- Depois daquela vitória achei que um telegrama seria pouco e liguei para Guadalajara. Cumprimentei os jogadores, especialmente Brito, Dario e Everaldo, meus prediletos.
- E a semifinal contra o Uruguai?
- Todo mundo lembrou de 50, é claro. E, para piorar, eles começaram vencendo. Mas não pode ser assim. A gente tem que chegar atirando. Por exemplo, certa vez houve um tiroteio na invasão dum aparelho e um major morreu. Então falei com o ministro do Exército, o general Orlando Geisel: “Mas só os nossos morrem? Quando invadirem um aparelho, têm de chegar metralhando. Estamos numa guerra e não podemos sacrificar os nossos”. É a mesma coisa no futebol. Para nossa sorte, ainda no primeiro tempo, o Clodoaldo, que nunca fazia gols, empatou. No segundo, Jairzinho e Rivellino trucidaram o inimigo. 3 a 1.
- Nos jornais daquele dia, na mesma primeira página que mostrava os 40 presos chegando à Argélia, soltos em troca do embaixador alemão, o Félix, goleiro da seleção, dizia que estava “com saudades do Brasil”. A ideia era mostrar que os maus brasileiros estavam indo embora e os bons queriam voltar?
- Isso mesmo. Daí veio a ideia daquele slogan “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Brilhante, não? Hoje usam o “Vai pra Cuba!”. Também tem sua graça.
- E a final contra a Itália?
- Foi nossa melhor exibição em todos os tempos. Começamos ganhando com um gol de cabeça de Pelé. Mas vinte minutos depois eles empataram. Só que no segundo tempo a seleção foi como um tanque passando sobre um roseiral. 4 a 1! Aquele era um país que ia pra frente. Ninguém segurava a juventude do Brasil.
- Como o senhor comemorou?
- Mandei que os torcedores que estavam na praça entrassem no Palácio e fui para o meio do povo, enrolado numa bandeira brasileira. Eles me carregaram nos braços e, quando me puseram no chão, peguei a bola dos meus netos e comecei a fazer embaixadas.
- Quem diria?!
- E depois, quando os jogadores voltaram do México, foram me visitar e tirei várias fotos levantando a Copa.
- Isso foi marketing?
- Não sei falar inglês, mas que aquilo rendeu ótimas fotos, rendeu. Fui capa em tudo quanto era jornal e revista. E o meu sonho era ser popular. Tanto que, no meu discurso de posse, eu disse: “Confesso que gostaria que o meu governo viesse, afinal, a receber o prêmio de popularidade.”
- Acho que não deu certo. Hoje em dia ninguém ia querer outra ditadura militar.
- Não aposte nisso, meu rapaz, não aposte nisso.