1970

Copa Brasileira de Letras: Zé Cabala e a história do tri na visão do general Médici

José Roberto Torero Especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1970 é de Torero, que, com a ajuda de Zé Cabala, conversa com o general Médici sobre o tricampeonato da seleção brasileira.

Copa de 70

Há uma meia dúzia de anos eu não me encontrava com Zé Cabala. Para quem nunca ouviu falar dele, esclareço que trata-se do carteiro de almas, do telex do além, do WhatsApp dos espectros.

Eu havia recorrido ao grande médium muitas vezes. Sempre que precisava falar com algum futebolista que já enxergava a grama pela raiz, o mestre recebia o desencarnado e eu fazia uma bela entrevista. 

Alguns incrédulos, no entanto, afirmavam que Zé Cabala era um sujeito que sabia tudo sobre a vida dos grandes craques e apenas fingia as incorporações. Ah, pobres céticos, não veem a beleza do milagre...

Confesso que pensei que encontraria tudo igual: seu jardim estaria tomado por barracas de credores, sua Kombi enferrujando na garagem e Gulliver, seu assistente anão, me receberia com alguma roupa maluca. 

Nada disso.

Não havia um só cobrador, vi uma Mercedes estacionada (placa KBL 6969) e Gulliver veio me atender usando um elegante terno branco. 

- Em que posso ajudá-lo?

- Não está me reconhecendo? Eu era colunista de futebol. Fiz várias entrevistas com a colaboração de Zé Cabala.

- Ah, lembro vagamente... Mas o mestre não trabalha mais com Esportes. Agora está em Política. 

- Sério? 

- Tanto quanto possível. Ele está sendo muito procurado por congressistas que querem saber como os antigos escapavam da cadeia. 

- Será que ele não poderia fazer uma exceção e me atender? 

- Se o senhor pagar nossa nova tabela...

Lá se foi todo meu pagamento por este texto. Mas eu achava que valeria a pena. 

Quando entrei na sacrossanta sala de meditação (que os infiéis chamam de quartinho dos fundos), vi que as coisas também tinham mudado por lá. As paredes estavam forradas de veludo, o chão coberto por tapetes persas, luminárias de cristal pendiam do teto e um caríssimo incenso de ágar perfumava o ambiente. 

- Meu caro foliculário, há quanto tempo. Pensei que nunca mais nos veríamos – disse o mestre dos mestres abrindo os braços. – Quem você deseja entrevistar?

- Preciso falar com algum espírito que tenha levantado a Copa de 70. 

- Conheço o espírito perfeito! – falou Zé Cabala. 

Então ele fechou os olhos e começou a marchar ao meu redor, cantando: “Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados. Nas cores da nossa farda, rebrilha a glória, fulge a vitória...”. 

Quando o hino acabou, ele bateu continência e disse: 

- General Emilio Garrastazu Médici se apresentando. 

Eliminando adversários

Fiquei sem saber o que fazer. Estava frente a frente com o espírito do ditador dos Anos de Chumbo. Tinha centenas de perguntas para lhe fazer. Mas, como o assunto era a Copa de 70, me contive. 

- Vamos começar por uma coisa que nunca ficou clara: É verdade que o senhor mandou demitir João Saldanha, o técnico da seleção, porque ele não quis convocar o Dario? 

- De jeito nenhum. 

- É que ele teria dito algo como: “O presidente convoca os ministros, mas eu é que escalo meus jogadores”. E aí o senhor exigiu sua cabeça. 

- Nada disso. A resposta do Saldanha foi bem mais educada. Ele falou: “O Brasil tem 80, 90 milhões de torcedores e gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time, então tá vendo que nós nos entendemos muito bem”.

- Se é assim, por que ele foi substituído pelo Zagallo?

- O Saldanha era membro do Partido Comunista Brasileiro. Já pensou se lá no México, no meio de uma entrevista coletiva, ele tira uma lista de presos políticos do bolso e começa a falar que o regime militar matava e torturava?

- Entendo... E o senhor mantinha algum controle sobre a seleção? 

- Controle, não. Uma observação atenta, sim. O brigadeiro Jerônimo Bastos era o chefe da delegação e o major Roberto Ypiranga Guaranys era o chefe de segurança.

- Esse major não estava envolvido em casos de tortura? 

- Tortura?

- Houve 1206 denúncias de tortura em 1970.

- Lembra da estreia contra a Tchecoslováquia? Que jogo! 

- O senhor não quer falar sobre tortura?

- 4 a 1!  Assim é que se trata comunista. 

- Está bem, fiquemos no futebol... Como foi a segunda partida, aquela contra a Inglaterra?

- Uma batalha dura. O Gérson não jogou e fez muita falta. Só no segundo tempo o time desencantou. Tostão driblou três, passou para Pelé, que deu um toquinho para Jarzinho, que mandou bala. Até escrevi um telegrama bonito para o time: “Mando-lhes meu comovido abraço de torcedor, pela demonstração de técnica, serenidade, amadurecimento, inteligência e bravura”.

- Seu envolvimento com o futebol era uma tentativa de se tornar popular?

- FHC não chamou a seleção pentacampeã para Brasília? Lula não trouxe a Copa para o Brasil? 

- Hum... Não tinha pensado nisso. Vamos ao terceiro jogo, contra a Romênia.

- Foi uma batalha mais dura que o esperado. Gérson e Rivellino estavam fora de combate. Mesmo assim, vencemos por 3 a 2. 

- O jogo não foi um dia antes do sequestro do embaixador alemão pela Vanguarda Popular Revolucionária? 

- Para você ver. Os esquerdistas não respeitam nem a Copa.

- Mas os militares também não. Havia 500 presos políticos em junho de 1970.

- Engano seu. Não havia nenhum político preso. Eram ladrões de bancos, assassinos, terroristas. No meu governo nenhum político foi cassado, quanto mais preso.

- Por conta daquele sequestro vocês tiveram que libertar 40 pessoas e enviá-las para a Argélia, não é?

- Sim. Mas felizmente os jogadores se manifestaram contra o sequestro. Lembro que, dias depois, saiu na Folha de S. Paulo: “Notícias do México dão conta da perturbação que a notícia do sequestro provocou no ambiente do nosso selecionado. Pelé, Rivellino e outros jogadores manifestaram-se, condenando o ato terrorista”. 

- Hum... dei um Google aqui e parece que as tais “notícias” eram, na verdade, uma nota oficial do Ministério do Exército. Ela dizia: “Causou profundo impacto na Seleção a notícia chegada ao México sobre o sequestro do embaixador alemão. Pelé, Brito, Rivelino, Clodoaldo e outros craques lamentaram que maus traidores e criminosos venham a quebrar a tranquilidade e o entusiasmo da Seleção.”

- Notícia, nota oficial, notícia oficial... Qual a diferença? 

Mata-mata

Voltei ao futebol:

- Depois veio o 4 a 2 contra o Peru, já nas quartas de final.

- Talvez aquela tenha sido a melhor seleção peruana de todos os tempos. O técnico era o Didi. Detesto quando os nossos vão para o outro time. Ah, maldito Lamarca! – disse ele dando um soco na mesa. Por alguns segundos ele ficou me encarando com olhos frios e eu gelei. Aí, respirou fundo e, mais controlado, continuou: 

- Depois daquela vitória achei que um telegrama seria pouco e liguei para Guadalajara. Cumprimentei os jogadores, especialmente Brito, Dario e Everaldo, meus prediletos.

- E a semifinal contra o Uruguai? 

- Todo mundo lembrou de 50, é claro. E, para piorar, eles começaram vencendo. Mas não pode ser assim. A gente tem que chegar atirando. Por exemplo, certa vez houve um tiroteio na invasão dum aparelho e um major morreu. Então falei com o ministro do Exército, o general Orlando Geisel: “Mas só os nossos morrem? Quando invadirem um aparelho, têm de chegar metralhando. Estamos numa guerra e não podemos sacrificar os nossos”. É a mesma coisa no futebol. Para nossa sorte, ainda no primeiro tempo, o Clodoaldo, que nunca fazia gols, empatou. No segundo, Jairzinho e Rivellino trucidaram o inimigo. 3 a 1. 

- Nos jornais daquele dia, na mesma primeira página que mostrava os 40 presos chegando à Argélia, soltos em troca do embaixador alemão, o Félix, goleiro da seleção, dizia que estava “com saudades do Brasil”. A ideia era mostrar que os maus brasileiros estavam indo embora e os bons queriam voltar?

- Isso mesmo. Daí veio a ideia daquele slogan “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Brilhante, não? Hoje usam o “Vai pra Cuba!”. Também tem sua graça.

- E a final contra a Itália?

- Foi nossa melhor exibição em todos os tempos. Começamos ganhando com um gol de cabeça de Pelé. Mas vinte minutos depois eles empataram. Só que no segundo tempo a seleção foi como um tanque passando sobre um roseiral. 4 a 1! Aquele era um país que ia pra frente. Ninguém segurava a juventude do Brasil. 

- Como o senhor comemorou?

- Mandei que os torcedores que estavam na praça entrassem no Palácio e fui para o meio do povo, enrolado numa bandeira brasileira. Eles me carregaram nos braços e, quando me puseram no chão, peguei a bola dos meus netos e comecei a fazer embaixadas. 

- Quem diria?!

- E depois, quando os jogadores voltaram do México, foram me visitar e tirei várias fotos levantando a Copa.

- Isso foi marketing?

- Não sei falar inglês, mas que aquilo rendeu ótimas fotos, rendeu. Fui capa em tudo quanto era jornal e revista. E o meu sonho era ser popular. Tanto que, no meu discurso de posse, eu disse: “Confesso que gostaria que o meu governo viesse, afinal, a receber o prêmio de popularidade.”

- Acho que não deu certo. Hoje em dia ninguém ia querer outra ditadura militar. 

- Não aposte nisso, meu rapaz, não aposte nisso.

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José Roberto Torero é autor de 37 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti, 1995, romance), Papis et Circenses (Prêmio Paraná de Literatura, contos, 2012), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti, contos, 2002), Futebologia e Zé Cabala e outros filósofos do futebol. Foi colunista na Folha de S.Paulo de 1998 a 2012, e do Jornal da Tarde de 1994 a 1998. Como roteirista, escreveu a série FDP para a HBO, dez roteiros de longas-metragens (entre eles Pelé Eterno) e dez roteiros de curtas-metragens, entre eles Uma história de futebol, que concorreu ao Oscar em 2002.

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