1962

Copa Brasileira de Letras: um cachorro driblou Garrincha no Chile e outro ganhou seu nome no Brasil

Luiz Ruffato Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1962 é de Luiz Ruffato e conta a história de como um cachorro nascido em 1962 ganhou o nome de Sausalito.

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1962: Sausalito

Para Marcelo Corrêa Neto

Sausalito era um vira-lata que encarnava todas as raças de cachorro existentes. Malhado, branco e amarelo, olhos marrons, nem grande nem pequeno. Manso com as crianças, destemido com os estranhos, tinha uma birra incompreensível contra fardas. Ele sempre nos envergonhava quando via um polícia: agitado, gania, rosnava, gemia. Certa feita, chegou a dispersar uma marcha de recrutas do Tiro-de-Guerra que desfilava pela nossa rua. Sem que percebêssemos, Sausalito avançou entre os soldados, tentando morder suas pernas. Ainda que protegidos por coturnos, alguns se assustaram e saíram de formação, causando enorme reboliço. O pai conseguiu atrai-lo de volta para casa e colocou-o de castigo. Isso, no entanto, não impediu que fosse chamado ao quartel, onde levou uma descompostura – dizem que os gritos do tenente podiam ser ouvidos da calçada em frente. Vivíamos sob o tacão da ditadura e o oficial acusava Sausalito de tentar desmoralizar as Forças Armadas. O pai suou para convencê-lo de que nosso cachorro não era um vil subversivo, mas apenas um cidadão inconsciente de seus deveres para com a pátria.

Sausalito ancorou em nossa casa pouco antes do meu nascimento. E morreu velho, caduco, cego e desdentado, quando eu alcançava os quinze anos. Seu desaparecimento, aliás, comoveu a vizinhança. Conhecido no bairro, por onde andava solto com a altivez de proprietário, durante muito tempo ainda as pessoas lembravam dele, evocando sua memória com simpatia. Tão marcante a passagem pela nossa vida que meu pai recusou ter outro cachorro – adotamos gatos, tartarugas, coelhos e até um porquinho-da-índia, mas nunca mais ouvimos latidos no quintal. Às vezes, domingo à tarde, depois de comer um prato de macarronada e beber dois copos de vinho, o pai gostava de rememorar os feitos e contrafeitos de Sausalito, para horror da mãe, que considerava aquilo até pecado. Onde já se viu falar assim de um bicho como se gente fosse...

O pai estimava, particularmente, contar como escolheu o nome do filhotinho, desengonçado e arteiro, que trouxe para morar com a família naquele distante 1962. Na época, já existiam o Zé Carlos, meu irmão mais velho, e a Lurdes, minha irmã do meio. A mãe estava grávida de mim e cismou que os filhos precisavam de um animal de estimação para distraírem-se dela, exausta de cuidar da casa sozinha. Um dia, após bater o cartão de ponto na fábrica de tecidos, o pai encaminhou-se à Vila Minalda, onde lhe disseram que uma cadela havia recém-parido. O pai comprou o cachorrinho malhado – por dois maços de cigarro sem filtro – e trouxe para casa numa caixa de sapatos. Zé Carlos e Lurdes, seis e três anos, encantados, logo se apropriaram dele. Mas faltava batizá-lo e o pai, teimoso, quebrava a cabeça, Um nome é para sempre, explicava para a mãe, um nome define uma pessoa. Mas ele não é uma pessoa, a mãe contra-argumentava, irritada.

O frio de junho rachava os lábios e enregelava as mãos. A bola rolava nos estádios do Chile, e o pai ouvia a transmissão dos jogos da Copa do Mundo na voz de Oduvaldo Cozzi, da Rádio Guanabara. O Brasil vinha de duas vitórias, contra México (dois a zero) e Espanha (dois a um), e um empate sem gols com a Tchecoslováquia. Naquele domingo, enfrentávamos a perigosíssima Inglaterra pelas quartas-de-final. De repente, o juiz francês Pierre Schwinte paralisa a partida - um cachorro invadiu o gramado!  O goleiro Springett tenta pegá-lo, mas o cachorro corre em direção ao meio do campo, onde Garrincha, ao cercá-lo, é humilhado com um drible sensacional. Até que Jimmy Reaves se põe de quatro e com jeito consegue envolvê-lo em seus braços.

Afastando-se do rádio Semp, o pai moveu-se até a cozinha, onde a mãe terminava de lavar as vasilhas do almoço. Luzia, ele disse, vai chamar Sausalito. O quê?, a mãe perguntou, aflita. O cachorrinho, Luzia, vamos chamar ele de Sausalito. E lá isso é nome de cachorro, Mário? O cachorro driblou o Garrincha, Luzia, o Garrincha! Que cachorro, homem? O cachorro, no Chile, no jogo... Mas a mãe já tinha perdido a paciência e não escutava mais o que o pai falava. Ele, no entanto, previa dias gloriosos para o Sausalito, nome do estádio em que o Brasil, vencendo aquele jogo da Inglaterra, arrancaria para se tornar bicampeão mundial, uma semana depois...

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Luiz Ruffato nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Autor de, entre outros, Eles eram muitos cavalos, Estive em Lisboa e lembrei de você, Inferno provisório e A cidade dorme. Seus livros ganharam os prêmios Machado de Assis, APCA, Jabuti e Casa de las Américas e estão publicados em 12 países. Em 2016 recebeu o Prêmio Internacional Hermann Hesse, na Alemanha.

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