1954

Copa Brasileira de Letras: Brasil é campeão no arranca-toco. A "Batalha de Berna" é prova disso

Vanessa Barbara Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1954 é de Vanessa Barbara, com o relato da "Batalha de Berna", o mais violento jogo da história do Brasil em Copas do Mundo, e sua relação com o futebol-arte.

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1954: Brasil é campeão no arranca-toco

Há quem tenha saudades daquele futebol dos velhos tempos, o futebol-arte despretensioso e romântico, sem malícia, praticado por craques plenos de amor ao esporte. Nesse caso, sempre convém mencionar a singela participação do Brasil na Copa de 1954.

Naquele ano, a seleção chegou à Suíça com uma bagagem pesada: tinha a obrigação de reverter a derrota de 1950. Era preciso calar a imprensa mundial, que quatro anos antes proclamara que o Maracanazo fora “a vitória da fibra sobre a covardia, o triunfo da raça sobre a desnutrição”, segundo contou o jornalista David Nasser, de O Cruzeiro. “Muita imprensa da própria América afirmou que a cachaça derrotara o Brasil. Que éramos um povo mal alimentado, que comíamos arroz, feijão, farinha e nossos atletas mal podiam se manter em pé”, escreveu.

O diagnóstico geral, inclusive dos torcedores da seleção, é que a Copa de 1950 estava praticamente ganha, mas foi desperdiçada pela falta de brio dos nossos atletas, a quem teria faltado “macheza”. Dizia-se que, naquela data, o Brasil tombou vergonhosamente perante o “quadro de velhos” dos uruguaios, “jogadores com varizes e erisipelas [que] arrancaram a máscara dos guapos rapazes brasileiros”. Às vésperas da estreia na Suíça, David Nasser conclama: “Chegou o momento de responder a essa gente. De mostrar a esses cavalheiros que não somos os desfibrados, os medrosos e os sifilíticos que dizem”.

Dá para imaginar, portanto, o nervosismo daquele time que viajava de avião pela primeira vez na vida e que em fins de maio desembarcou na Europa, onde se deparou com a falta de feijão preto e com um regulamento bizarro que escapava ao entendimento até dos próprios dirigentes da delegação. A tabela envolvia a escolha de dois cabeças de chave por grupo e partidas adicionais quando as equipes empatavam em pontos. Os embates das fases finais eram definidos por sorteio. As regras eram tão confusas que pouca gente entendia exatamente o que estava havendo.

Um exemplo singelo ocorreu na partida entre Brasil e Iugoslávia, na primeira fase da competição. Os eslavos saíram em vantagem no início do segundo tempo com um gol de Zebec. Aos 24 minutos, Nílton Santos recuperou a bola do ataque adversário e foi quase até a pequena área, onde passou para Didi, que fez o gol. Com o empate, veio a prorrogação. Os brasileiros partiram para cima como se a perpetuação da humanidade dependesse daquela vitória. Espantados, os iugoslavos tentavam se comunicar por sinais, pedindo que os adversários não corressem tanto. De acordo com um relato da revista Placar, o capitão Zlato Cjaicowski mostrava os dedos indicadores e gritava: “It’s good! It’s good!”. Ou seja: 1 a 1 estava bom. Mas ninguém entendia, e muitos inclusive tomaram essas palavras como provocações.

Quando o juiz apitou o fim da partida, os brasileiros ficaram desolados. No vestiário, o capitão da equipe, José Carlos Bauer, caiu no choro: “Perdemos novamente a Copa do Mundo”. O que todos desconheciam ­­– todos, menos os iugoslavos, que bem que tentaram avisar – era que o empate classificava ambas as equipes.

Em todo caso, o alívio não durou muito. Logo os brasileiros receberam o resultado do sorteio que definiu os jogos das quartas de final: enfrentariam justamente os húngaros, os favoritos do torneio. A Hungria era uma seleção que, àquela altura, havia acumulado quatro anos de invencibilidade internacional, tendo goleado a Coreia e a Alemanha Ocidental na fase preliminar da Copa. A imprensa colaborava para perpetuar o mito de time imbatível, repetindo vezes sem conta, a respeito do escrete magiar: “Não erra um chute no gol”, “São velozes de pasmar”, “É uma gente diabólica, afiada até os dentes”, “Nunca se viu coisa igual”.

Não é de se espantar, portanto, que os dias que precederam a partida tenham sido de completo pânico entre os jogadores. Correu o boato de que o chefe da delegação, João Lira Filho, já teria comprado as passagens de volta. Ele desmentiu, na véspera, com um discurso longo e exageradamente patriótico que só fez piorar a situação: “Olhem as cores que vocês terão que defender com galhardia dentro da cancha, honrando a nossa Pátria”. Na mesma ocasião, um jornalista mineiro teria dito: “Temos que ganhar o jogo. Temos que vingar os mortos de Pistoia”. (Nessa cidade italiana foram sepultados 462 soldados da Força Expedicionária Brasileira que morreram na Segunda Guerra Mundial, o que obviamente não tem nada a ver com futebol, Hungria e Copa do Mundo.)

Os relatos da véspera são catastróficos: na madrugada anterior ao jogo, o atacante Humberto Tozzi fumou dois maços de cigarros e praticamente não dormiu; o goleiro Veludo e o zagueiro Pinheiro saíram do hotel à noite e demoraram tanto para voltar que se cogitou a ideia de que tinham fugido. O capitão Bauer, que, assim como o meia Brandãozinho, havia perdido cinco quilos na partida contra a Iugoslávia, estava abatido e recebeu autorização para ir a Zurique telefonar aos familiares. Reza a lenda que alguns jogadores chegaram a ingerir pasta de dente para passar mal e não correr o risco de serem escalados. Dois dos atacantes, Baltazar e Pinga, anunciaram de manhã que estavam contundidos. A verdade é que poucos atletas dormiram bem na véspera do jogo, sendo que muitos tiveram disenteria.

David Nasser relata como entraram em campo: “Bauer estava verde. Castilho estava leitoso. Humberto estava transparente – todos trêmulos. Todos envenenados pelo grande erro: o Brasil não pode perder”.

A partida em si foi um deus nos acuda, e entrou para a história com a alcunha de Batalha de Berna. Aos sete minutos, os húngaros já tinham feito dois gols. Numa dividida no meio do campo, Didi rasgou o calção de József Tóth e ele passou um bom tempo jogando com parte da cueca de fora. Aos dezoito, o juiz marcou um pênalti para o Brasil; segundo Djalma Santos, ninguém queria bater. Ele mesmo se prontificou e diminuiu o placar para 2 a 1.

Logo depois começou a chover, o que complicou ainda mais a situação para os brasileiros, que não calçavam chuteiras apropriadas e passaram a escorregar esplendorosamente, como “bailarinos de patins em pista de gelo”. “Fazia pena ver os nossos”, descreveu o jornalista Everardo Lopes, do Jornal dos Sports. “Cada tentativa de arrancada correspondia a um escorregão. [...] Quanto mais leve cada jogador, mais espetacular a queda. De Didi, eu cheguei a contar quatorze quedas. No número quatorze eu parei. Já no segundo tempo. Afinal de contas, eu não estava com insônia.”

Por fim, o técnico Zezé Moreira mandou substituir as chuteiras e o Brasil continuou pressionando pelo gol. Aos 16 minutos, o juiz inglês Arthur Ellis marcou um pênalti duvidoso contra o Brasil. (Mais tarde, Pinheiro admitiu ao repórter de O Cruzeiro que caiu com a mão na bola.) Veio mais um gol da Hungria, porém este foi quase que imediatamente seguido por um golaço de Julinho Botelho, resultando no placar de 3 a 2 para os húngaros. Mais tarde, József Bozsik e Nílton Santos trocaram sopapos em campo e foram expulsos. “Valorosas e enérgicas escaramuças foram desfechadas, mas os atacantes nossos falhavam nas finalizações”, resumiu Geraldo Romualdo da Silva, no Jornal dos Sports.

No finzinho do jogo, o juiz deixou de marcar um pênalti contra Julinho Botelho, o que provocou a indignação dos brasileiros. Também expulsou Humberto por ter desferido uma voadora no adversário. Aos 43 minutos, com o time inteiro do Brasil na ofensiva, os húngaros aproveitaram o contra-ataque para fechar o jogo em 4 a 2, garantindo a classificação para a fase seguinte e a eliminação do Brasil.

E foi quando toda aquela pressão explodiu. Ao fim do jogo, segundo relato de jornalistas e do juiz de linha da partida, o atacante Maurinho ofereceu a mão ao ponta-esquerda Zoltán Czibor. Quando o húngaro se dispôs a apertá-la, Maurinho o cumprimentou com a mão direita e, com a esquerda, deu-lhe uma bofetada.

O radialista Paulo Planet Buarque largou o microfone, saltou o alambrado e desceu ao gramado para dar um tapa no juiz. Foi impedido por um guarda suíço. Só que Paulo sabia lutar judô e aplicou uma rasteira no pacato policial. O guarda caiu e, ao se levantar, meteu a mão no bolso traseiro. Quando todos achavam que ele iria sacar uma arma, o suíço apenas tirou calmamente um lenço e limpou o rosto.

Enquanto isso, no estreito corredor de acesso aos vestiários, o radialista Geraldo José de Almeida e o atacante húngaro Ferenc Puskás, que naquele dia estava contundido e não entrara em campo, trocaram gentilezas em seus respectivos idiomas. Pinheiro levou uma garrafada na cabeça, supostamente arremessada pelo próprio Puskás. Luís Vinhais, supervisor da seleção, pôs-se a esmurrar o craque da Hungria. Julinho voltou do vestiário com um tubo de oxigênio e o atirou a esmo. Maurinho cuspiu em Mihály Lantos. No ápice da pancadaria, o técnico Zezé Moreira deu uma chuteirada na cara do vice-ministro de Esportes da Hungria, Gusztáv Sébes. (Ele usou a chuteira de traves baixas de Didi, que havia sido substituída após os escorregões.)

Naquele espaço exíguo, baldes, cadeiras e garrafas de leite foram arremessados de ambos os lados. A certa altura, estouraram o globo de iluminação e tudo ficou às escuras.

Segundo o relato dos húngaros, registrado pelo Correio da Manhã, o meia-direita József Tóth subia as escadas quando foi atingido por uma garrafada na têmpora e caiu. Enquanto dois companheiros o socorriam, um burocrata da delegação foi atingido por outro vasilhame e cambaleou, no que foi seguido pelo vice-ministro de Esportes, que também foi alvejado. Na versão deles, foram os brasileiros que quebraram as lâmpadas.

A pancadaria prosseguiu por vários minutos na penumbra, até que a polícia, convocada através dos alto-falantes do estádio, deu fim à cizânia. Dois policiais ficaram feridos. Em reportagem para O Cruzeiro, o repórter Luciano Carneiro diz que não teve acesso ao exato local da briga, mas que de longe viu um Luís Vinhais “completamente transtornado a botar de escadas abaixo o goleiro reserva dos húngaros e vários policiais”.

Resultado: Sébes precisou de quatro pontos no rosto e assistiu ao sorteio para as semifinais coberto por um esparadrapo que ia do nariz até a orelha. Pinheiro foi socorrido quase inconsciente, aos gemidos, tendo sofrido um corte profundo de oito centímetros sobre o olho esquerdo. Um certo burocrata húngaro, de nome Krajovics, também precisou de um curativo na arcada superciliar direita. Tóth ficou com o olho roxo.

Ou seja: da próxima vez que alguém mencionar os bons e velhos tempos em que o espírito esportivo reinava no futebol-arte – o futebol moleque, o futebol maroto –, basta lembrar do dia em que o Brasil foi campeão de arranca-toco na Suíça. Em 1954, as chuteiras dos nossos atletas tiveram uma utilização menos digna. E não restou nenhuma garrafa de leite para contar a história.

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Vanessa Barbara é jornalista e escritora, colunista do time internacional do New York Times desde 2013, tendo publicado mais de quarenta artigos no jornal. Foi escolhida em 2012 pela revista Granta na edição 20 Melhores Jovens Escritores Brasileiros. É autora do livro-reportagem O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, prêmio Jabuti de reportagem) e dos romances Noites de Alface (Alfaguara, 2013, Prix du Premier Roman Étranger - France, traduzido para seis idiomas) e Operação Impensável (Intrínseca, 2015, prêmio Biblioteca do Paraná), entre outros. Como cronista, cobriu os Jogos Olímpicos de 2012 (Londres) e 2016 (Rio), além da Copa do Mundo de 2014, para a Folha de S. Paulo. 

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