Acuadas, agredidas e sem voz

Repressão às mulheres na Rússia chega ao ponto de, para ser comprovada a agressão, é preciso ter osso quebrado

Luiza Oliveira Do UOL, em Moscou (Rússia)

Uma liberdade distante (para elas)

Elas sorriram nos vídeos e, com jeito ingênuo, repetiram palavras ofensivas que rodaram o planeta. Vulneráveis, as russas assediadas na Copa do Mundo ganharam a solidariedade de milhões de brasileiras. Mas essa é a só a ponta do iceberg de uma dura realidade dessas mulheres que ainda não conseguem dar o seu grito de liberdade, mesmo com o movimento feminista invadindo a Copa com o basta ao assédio.

Elas ainda são reféns de uma sociedade conservadora em que bater é sinônimo de amar e não têm proteção. Em 2017, uma lei que descriminalizou a violência doméstica foi aprovada  - pelo congresso russo e aprovada por Vladimir Putin - e agora maridos agressivos só vão para a prisão se deixarem marcas a ponto de quebrarem ossos de suas mulheres.

Os números já alarmantes só vêm crescendo. O país mata 14 mil mulheres por ano por violência doméstica e uma mulher é assassinada a cada 40 minutos.

E é esse mesmo país tão contraditório que vê na figura da mulher uma grande força no trabalho. As russas hoje estão inseridas nas grandes empresas. São executivas, empresárias, empreendedoras, mas quando chegam em casa estão submetidas à possibilidade de sofrerem a violência de homens abusivos.

A Copa permitiu a chance de as russas gritarem contra a opressão e o assédio. Mas essa liberdade ainda pode estar bem distante.  

A lei criada para o agressor

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"Roupa suja lava-se em casa"

Dária Kapitanova estava no quarto de casa em Moscou com uma das pessoas em quem mais deveria confiar. Ela não se lembra muito bem, mas sentiu um soco na cabeça. E depois mais um. E outro. Foram vários em sequência, na cabeça e nas costas. Dária teve uma concussão, um trauma no cérebro que faz a pessoa perder a consciência, mas não deixa marcas.

“Ele bateu na cabeça, nas costas. Simplesmente deu socos, de várias formas. Eu não consegui me defender. Sou pequena, não poderia responder com força. Ele bateu em mim tão forte que eu fui para o hospital com a concussão. Tinha a concussão e roxos. Foi uma coisa bastante séria”.

Ela ainda não entende porque passou por isso. Ela só avisou sobre uma decisão que havia tomado e ele não concordou. A conversa virou discussão, gritaria e briga, até chegar a agressão. “Ele bateu forte por que não gostou de uma coisa que eu falei. Quando a pessoa já não tem os argumentos, ela se aproxima e começa a bater em você”. Dária se nega a dizer quem é o agressor.

O que mais dói é que outras pessoas que ela ama viram tudo, mas não fizeram nada. Inclusive sua mãe. Ela foi para o hospital cuidar do trauma e denunciou para a polícia. No lugar de apoio, sentiu menosprezo.

“Os médicos falaram: ‘você inventou algo, a culpada é você’. Lá eles podem te dar ajuda médica, mas ninguém vai te ajudar psicologicamente. Eles simplesmente te culpam. Você vai para a polícia e eles falam que é um problema da família. É um problema seu. O policial escreve o boletim de acordo com a suas palavras. Mas antes de escrever, ele fala que em dois dias você vai entrar em acordo com seus pais, que é uma coisa da família. Tem uma expressão: ‘roupa suja lava-se em casa’”, disse.

É uma agressão muito grande. Você não quer confiar nessa pessoa, não quer falar com ela, não quer ter nenhum tipo de relação. Eu faço tratamento psicológico há muitos anos. Acho que nunca vai passar, sempre vai permanecer. Este caso afetou muito a minha vida. Tenho problemas para confiar nos homens, mesmo em relação ao meu futuro marido ou namorado. Eu tomo cuidado e penso muito antes de expressar os meus pensamentos e ações. Depois daquele caso, fiquei em depressão por muito tempo

Dária Kapitanova

Dária Kapitanova, agredida por um familiar

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"Lei da palmada" se transformou em liberdade para agressor

As mulheres não têm o amparo do estado na sociedade na Rússia. A lei que descriminaliza a violência doméstica foi aprovada no início de 2017 e vai na contramão do mundo. A norma diz que o agressor não pode ser preso se não causar graves danos à saúde do agredido. No máximo, paga uma pequena multa de 5 mil rublos, menos de R$ 300.

“Hoje em dia, se você bateu na sua esposa, na sua mãe ou em uma criança e não quebrou ossos, apenas deixou roxos ou cortes, você paga apenas 5 mil rublos e volta livremente para a sua família”, explica a jurista especialista no direito da mulher, Alyona Popova.

Diretora de um centro de acolhimento a mulheres, Alyona Sadikova explica que cabe à vítima comprovar o crime. No caso de Dária, por exemplo, ela não conseguiria. “As mulheres não conseguem apresentar as provas de que foi violência mesmo. Se ele bate na cabeça, não dá para ver. Provavelmente, o médico não vai querer fazer o exame, mesmo se tiver alguma coisa inchada”.

A lei foi criada inicialmente para evitar que pais perdessem a guarda do filho após “palmadas corretoras”, mas acabou incentivando a violência entre casais. 

Um dia, os pais deram pancadas em um filho adotivo, alguém falou para o governo e a criança foi retirada da família. Este caso gerou polêmica na sociedade e os conservadores ficaram com medo: 'o governo vai retirar as nossas crianças?'. Mas há uma confusão na relação entre pais-crianças e mulher-homem. Quando votaram, a consequência foi o aumento do número da violência doméstica

Alyona Sadikova

Alyona Sadikova

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Homem bate e paga multa com a poupança da família

O que torna a legislação ainda mais contraditória é que se o homem for condenado a pagar a multa, o dinheiro não sai do bolso dele. O valor é depositado na conta do governo pela poupança da família. Ou seja: ela acaba pagando literalmente pelo crime que sofreu.

“Já se passou um ano e meio e até o Ministro das Relações Interiores da Rússia falou que é um absurdo manter essa lei. Cinco mil rublos não são nada. O mais engraçado é que esses 5 mil rublos saem da poupança da família, composta pelo dinheiro do trabalho do casal. Ele bate nela e depois paga com o dinheiro que os dois ganharam”, diz Popova.

A última alternativa das mulheres é tentar se defender sozinhas. Muitas delas usam frigideiras e outros aparelhos domésticos na luta. Mas, na Rússia, nem a legítima defesa é perdoada. Em cerca de 80% dos casos, mulheres são presas por se defender de agressões.

Isso aconteceu com Alina Katarava. O marido tentou enforcá-la com um cordão de cruz. Ao se defender, ela acabou matando o agressor. No julgamento, foi constatado que ela não tinha outra opção. Mesmo assim, foi ficou três anos na prisão. Há condenações até de vítimas aposentadas de 90 anos que apanharam do filho, consideradas culpadas por provocar a violência.

“Normalmente não tem normas legislativas para a autodefesa. Quando a mulher começa a se defender, pode machucar um homem. Há uma grande chance de você ir presa no lugar do homem que bateu em você”, completa Popova.

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Mulheres votando contra mulher

Nada é mais contraditório que uma lei tão cruel com as mulheres ser “patrocinada” por duas mulheres. Yelena Mizulina e Olga Batalina (foto) foram as responsáveis pela aprovação da legislação ao convencer membros da Duma, o congresso russo, a votar a favor da descriminalização. No Senado, só um político, o deputado Anton Milyukov, alertou as mulheres deputadas sobre o tamanho do problema. Ninguém deu ouvidos.

A norma passou muito rápido pela Duma. Apenas três votos foram contrários. Todos de homens. Em um congresso que tem 16% de representatividade feminina, número maior que no Brasil, é impressionante.

Mizulina representa o setor mais conservador da sociedade e tem o apoio da Igreja Ortodoxa. Ela é a autora do polêmico projeto de lei que proíbe a propaganda gay na Rússia. Anos atrás, ela defendia a igualdade de gênero e aprovava a implementação de cotas para mulheres na participação política, especialmente na Duma.

De uns tempos para cá, adotou um perfil mais conservador. O posicionamento é tendência na Rússia. Diante da intensificação dos conflitos com o Ocidente, especialmente desde a anexação da Crimeia, o país teve um retorno dos valores tradicionais como forma de saudar o nacionalismo e ir contra a sociedade ocidental.

Não queremos que as pessoas sejam presas por dois anos e rotuladas como criminosas para o resto das vidas por uma bofetada”.

Yelena Mizulina, que defende que o Estado não deve intervir em assuntos familiares.

Para defender a lei, ela diz que as estatísticas são deturpadas e que as entidades de defesa da mulher têm interesse em promover números alarmantes para arrecadar fundos.

“Elas também têm um interesse mercantil em promover essa agenda. Os países ocidentais têm programas de subsídios para ONGs que combatem a violência doméstica. Por causa disso, muitos tópicos estão sendo incluídos na agenda política. As ONGs inflacionam a importância deste tema para aumentar os fundos globais destinados a combater o problema”, disse Mizulina em entrevista à RT (emissora russa).

Olga Batalina, a outra deputada defensora da lei, segue o mesmo perfil: “Para nós, é extremamente importante proteger a família como uma instituição”.

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Onde bater é amar

A Rússia caminha na contramão do mundo no que se refere ao direito da mulher. “Nós temos valores conservadores. E todos os conservadores explicam que é a mulher que provoca a violência. Em geral, 90% das vítimas são mulheres. Na Rússia, existem ditados que definem o grau aceitável da violência", conta Alyona Popova

Bate na mulher com o machado e ela vai se tornar ouro. Se ele te bate, significa que ele te ama. 

Yana Lapikova/Sputnik Government Pool Photo/AP Yana Lapikova/Sputnik Government Pool Photo/AP

A religião é uma barreira

A questão da mulher é histórica: desde o século 14, com as reformas do patriarca Nikon, da Igreja Ortodoxa, a sociedade russa se afastou dos valores da cultura ocidental. O atual líder líder da Igreja Ortodoxa, o patriarca Kirill (foto), chegou a dizer que o feminismo pode destruir a Rússia. A Igreja é atualmente uma grande apoiadora do Kremlin.

“Considero este fenômeno chamado feminismo muito perigoso porque as organizações feministas proclamam a pseudoliberdade das mulheres que, em primeiro lugar, devem aparecer fora do casamento e fora da família. A mulher deve estar focada no interior, onde seus filhos estão, onde fica sua casa. Se esta função incrivelmente importante das mulheres for destruída, então tudo será destruído. A família e, se desejar, a pátria", disse o patriarca, segundo a agência de notícias Interfax.

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A cada segundo, uma mulher é assediada na Rússia

A violência doméstica está longe de ser o único problema na Rússia quando se fala de respeito a mulher. As leis para assédio sexual também não são claras e torna-se quase impossível comprovar o crime. Os números assustam. A cada um segundo uma mulher é assediada, segundo números da ONG russa Domestic Violence.

“Para mim, é importante ter leis separadas para assédio. Hoje em dia, não temos este tipo de lei. Existe um artigo pequeno e que não funciona no Código Penal. Se chama coerção para atos sexuais. Depois, tem também uma especificação quando o artigo pode ser aplicado. O artigo funciona só nos casos de chantagem, de quebra de bens ou ameaças de violência. Ou seja, se o homem aperta uma mulher no canto, mas não roubou o celular dela, não a jogou no chão e ou a ameaçou, ele não cometeu assédio sexual”, diz Alyona Popova.

Além disso, os dois crimes costumam estar interligados. A mulher que apanha tem grandes chances de ser vítima de abuso também.

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Mulheres que discordam e protestam são presas

Um caso emblemático de assédio recentemente mexeu com a Rússia. A jornalista da BBC Farida Rustamova afirmou que foi assediada sexualmente pelo deputado conservador Leonid Slutsky. Como prova, ela gravou uma entrevista com o parlamentar em que ele pede que ela seja sua amante. Ele ainda passou a mão “nas partes íntimas” de seu corpo.

Rustamova é a terceira jornalista a acusá-lo de conduta sexual imprópria. O deputado afirma que o caso é uma trama política. Nada foi feito.

As poucas mulheres que se uniram contra a lei sofreram retaliações. O movimento feminista na Rússia é recente e não tem força como no Brasil. As leis só permitem protestos individuais. Grupos podem protestar, mas só podem ser feitos com a autorização do governo. A ativista Alyona Popova foi presa seis vezes

“Eu posso organizar o piquete individualmente em qualquer lugar e não tenho de pedir autorização. Eu tinha 6 cartazes de Slutsky que foram quebrados. De acordo com a decisão da corte, tive de pagar multa de 20.000 rublos (R$ 1,2 mil) por que consideraram meu piquete individual seria um protesto em grupo. Acho que eles contaram também os cartazes como participantes.”

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Como funciona um centro de acolhimento

Com tanta violência, uma das únicas formas de amparo são os centros de acolhimento. O pequeno Kitezh fica no subúrbio de Moscou e funciona junto a um monastério. Em quatro anos, já recebeu 300 mulheres e crianças que sofreram violência. Hoje, tem apoio de empresas privadas e presta auxílio médico, jurídico e psicológico para mulheres. Um trabalho fundamental, apesar da pequena estrutura: são cinco funcionários, enquanto outros centros têm até 20 pessoas.

O lugar fica no fim de uma estradinha tranquila. Uma casinha típica da Rússia. Há uma cozinha integrada à sala de televisão. Os quartos são no andar de cima e, na parte externa, pode-se ver diversos brinquedos de crianças e sapatinhos espalhados. O local traz uma sensação de aconchego e é difícil imaginar que existam riscos reais de segurança. Mas basta conversar com a diretora para entender que o perigo ainda as cerca, mesmo a quilômetros de distância de seus ex-maridos.

O centro não divulga seu endereço e é difícil conseguir contato. Os próprios funcionários precisam se proteger dos maridos agressivos. Em um centro semelhante, na Sibéria, uma funcionária foi assassinada. Neste mesmo Kitezh, uma das freiras do monastério foi agredida por um marido revoltado. Alyona Sadikova já foi seguida de taxi ao sair do local.

“Os maridos dessas mulheres chegam em Moscou e ameaçam as pessoas que trabalham aqui fisicamente. É muito assustador. Frequentemente, recebemos ligações com ameaças de maridos. Às vezes, as mulheres vêm para cá, melhoram e voltam para seus maridos. Eles mexem no celular das esposas, me ligam e ameaçam. Um dia, disseram que iriam cortar a minha cabeça. Teve uma mulher que cometeu suicídio. O marido ligou, começou a me culpar e me ameaçou.”

Por isso, há diversas regras no centro com relação a segurança. As mulheres que chegam precisam assinar um protocolo de que vão obedecer. Uma das regras é desligar o telefone. No centro, ainda existe um botão de emergência que, quando acionado, chama a polícia. A viatura chega em sete minutos. Há ainda câmeras espalhadas e eles estão aguardado o financiamento para a instalação de uma cerca elétrica.

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As sobreviventes de guerra

As mulheres chegam ao centro com traumas ainda latentes. A psicóloga Nadiezhda Zamotaeva explica que elas apresentam os mesmos sintomas de ex-combatentes de guerra e, por isso, é comum que apresentem comportamento agressivo. Elas têm dificuldades para demonstrar afeto e carregam sentimento de culpa por tudo o que passaram.

“Parece que estão na guerra todos os dias. Tiveram que sobreviver, se adaptar e desenvolver habilidades que não precisariam na vida psicologicamente normal. Tudo isso é para sobreviver nessa situação. Normalmente, o agressor planeja a violência, mas a vítima que convive com agressor não planeja nada. A violência é uma explosão. Por isso, o principal problema é o transtorno de estresse pós-traumático, que muda a percepção de uma pessoa da vida. E quanto mais a pessoa vive nessa situação, menos vínculos com a vida real a pessoa tem”, avalia.

O trabalho da psicóloga não é dizer o que a vítima precisa fazer. O lema ali é: “não dê o peixe, ensine a pescar”. Elas tentam recuperar a sensação de segurança e confiança dessa mulher para que ela consiga encarar a vida normalmente. A partir daí, a pessoa precisa criar um plano de vida.

A cada ano, o centro tem cerca de quatro casos de mulheres realmente violentas. Além do suporte psicológico, o local criou regras pela boa convivência. “Tínhamos muitos casos de agressão às próprias crianças e a outras pacientes. Quando a mulher chega, assina um protocolo dizendo que não pode ter atitude agressiva. Se bater na criança, podemos chamar os órgãos públicos que separam a criança dela”.

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Mulheres agredidas são como drogadas. E a droga é o marido

As mulheres voltam a ter amor e afeto em um centro como esse. Algo que já perderam em casa há muito tempo. Ainda assim, é comum que acabem voltando aos maridos. De todos os desafios, esse cenário é o mais duro para a diretora Alyona Sadikova e todas as pessoas que trabalham no centro. Mas por que essas mulheres voltam para seus agressores e retornam ao ciclo de violência?

“O homem tem um tipo de comportamento sociopata. Ele sabe fingir, imitar sentimentos, mostrar que gosta dela. Começa dizendo: ‘não usa esse tipo de vestido’, ‘não vai para rua’, ‘eu amo você tanto que você não precisa ver ouras pessoas’, ‘eu amo você tanto que você não precisa trabalhar, eu te dou dinheiro’. É um processo que leva ao isolamento da pessoa. Fica sem amigos, sem pais. No final, a mulher fica sozinha e ele começa a violência em casa. A mulher fica só, em uma bolha’, explica a psicóloga Zamotaeva.

Elas também são tão frágeis emocionalmente que não têm forças, como no caso de um dependente químico. “Ela tem um sentimento de vida vazia sem o marido. É como se fosse uma drogada e a droga é o marido. Psicologicamente, é normal a pessoa lembrar das coisas boas e esquecer as coisas negativas para sobreviver no mundo. Ela lembra das flores e presentes que ganhou e pensa: ‘não é tão ruim, ele bateu, mas deu presente. Porque eu só tenho ele na minha vida’”.

O caso da menina de 12 anos que se jogou da janela

Uma das maiores preocupações dos centros são as crianças. Elas são sensíveis a tudo o que acontece com os pais. “A gente trabalha com as crianças para que elas desenhem ou falem, mas o que não pode é ficar calada. Se ela não contar o que houve em casa, vai entrar na subconsciente da criança e vai permanecer lá. As crianças se recuperam muito rápido, tem esse alto grau de resiliência”.

Mas nem tudo acaba bem. Uma menina de 12 anos chegou a se jogar da janela. “Era um casal da região do Daguestão e ela era muito tímida. Ele bateu nela durante anos, mas ela nunca iria denunciar. O que aconteceu foi que a menina pulou da janela porque não aguentava mais ver o pai batendo na mãe. Foi um trauma muito grande. Só depois desse caso os órgãos de proteção levaram as crianças”, conta Sadikova. Felizmente, a criança não morreu.

Outras não tiveram a mesma sorte. “Teve uma mulher que estava grávida quando o marido começou a bater. Ela deu à luz e a criança nasceu machucada. A mulher veio para cá e a criança foi levada ao hospital. Depois de dois dias, ligaram do hospital falando que criança tinha morrido. Eu fui para o hospital de carro, peguei a criança morta e enterramos. Essa mulher ficou com problemas na cabeça, foi muito difícil trabalhar com ela”.

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O contraste: Rússia é o país com mais executivas do mundo

A Rússia é mesmo um país cheio de paradoxos. As russas vivem um regime de total submissão em casa. Por outro lado, acumulam conquistas históricas e um importante papel no mercado de trabalho. O país da sede da Copa foi o primeiro a legalizar o aborto em 1920 e liberou o voto para as mulheres ainda em 1917 com a Revolução Russa.

Elas também têm força no mercado corporativo. De acordo com um estudo da Thomson Reuters Foundation, a Rússia ocupa o primeiro lugar entre os países com maior percentual de mulheres em cargos executivos seniores. Do total, 45% dos cargos de gerência sênior no país são ocupados por mulheres. Além disso, cerca de 70% dos pequenos empreendedores na Rússia são mulheres e 89% das russas estão empregadas.

“A maioria das empreendedoras é mulher, muitas mulheres abrem seus próprios negócio, isso é uma área bastante forte. Falando de empresas internacionais, geralmente o diretor é homem, mas perto do diretor os cargos próximos são de mulheres”, diz a empresária Olga Kosets.

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Nascimento do Dia Internacional da Mulher e a impulsão na Revolução

O país também teria sido o berço para a criação do Dia Internacional da Mulher. Existem diferentes versões sobre a origem da data, mas uma das teorias mais aceitas é que as mulheres deram início à grande Revolução Russa no dia 8 de março de 1917.

Naquele dia, as operárias do setor têxtil de São Petersburgo decidiram fazer um grande protesto para levantar a bandeira de oposição ao czar e seus associados. As trabalhadoras, as mães e esposas dos soldados que lutavam na Primeira Guerra Mundial pediam o fim do conflito e o retorno de seus parentes. Elas também lutavam pelo fim da escassez de alimentos porque precisavam alimentar seus filhos e os preços estavam muito altos. Esse conflito culminou na Revolução.

Outro fator que as impulsionou foi o trabalho por causa da Guerra. A avó da ativista Popova foi uma delas. “Na Guerra, 40 milhões de pessoas morreram ou foram feridas, houve uma falta de trabalhadores e recursos financeiros. As mulheres começaram a trabalhar, tinham que substituir homens. A minha avó com 55 anos, já perto da aposentadoria, teve que trabalhar para construir uma estação hidrelétrica no norte da Rússia”.

Outro aspecto positivo da Rússia na conquista de direitos iguais aos homens já nos anos 1920 é que, por quase 100 anos, as mulheres soviéticas foram encorajadas a ter uma boa educação e se tornaram mais integradas à economia russa do que mulheres em muitos países da Europa Ocidental.

Ela é empoderada, empresária e deputada (mas a russa ainda ganha menos)

Olga Kosets representa uma dessas mulheres empoderadas que ocupam uma posição sênior no mercado de trabalho. Ela tem uma empresa com mais de 2 mil clientes e ainda é deputada de um município nos arredores de Moscou. Mãe de dois filhos, ela vive para o trabalho e conquistou respeito no mundo corporativo.

“Aos 40 anos, percebi que as atividades de empreendedorismo estavam mais paradas. Eu abri uma empresa que ajuda as pessoas a terem proteção legislativa. Eu tenho orgulho por ganhar um financiamento do governo”, conta.

“O maior desafio é tempo para ser mãe e atender clientes. Além disso, tenho uma responsabilidade por ser deputada. As pessoas que votam são céticas sobre você. É difícil se convencerem que você vai atuar de acordo com os interesses da sociedade. Eu trabalho numa comissão de planejamento financeiro, decido como o dinheiro vai ser usado para o desenvolvimento da região. É muita responsabilidade”, disse

Ela admite que enfrentou o machismo, mas hoje se vê como igual. “Os homens me veem como outro homem. Na Rússia, existe a prática de que homem tem que segurar porta, tem que ter alguém para trazer a cadeira, mas comigo não acontece. Os homens agem como se eu fosse homem. Existe uma igualdade”, disse.

A Rússia, porém, ainda está distante dos países nórdicos quando o assunto é diferença salarial entre homens e mulheres. O déficit feminino é de cerca de 30%.

James Hill/The New York Times James Hill/The New York Times

"Velhas gordas feias" detonam machismo de empresa aérea

Mesmo com casos de crescimento no mercado de trabalho, o que também afeta as mulheres russas são as normas sociais. Elas são incentivadas a casar e ter filhos cedo e são julgadas se permanecem solteiras após certa idade. No país, há ainda a tradição de que o homem precisa abrir a porta do carro e sempre pagar a conta.

Elas ainda têm necessidades de cumprir padrões estéticos, como ser excessivamente magra e andar com salto alto e maquiagem.  Um caso famoso desse ocorreu com a Aeroflot, a principal companhia aérea russa. A empresa decidiu estabelecer política interna da empresa de acordo com a aparência e com o tamanho do vestuário, idade e beleza. Isso afetou 600 comissárias de bordo, que não poderiam mais fazer voos internacionais.

Duas comissárias, Evgenia Margurina e Irina Ierusalimskaya, foram rebaixadas porque tinham um tamanho acima de 48 e, assim, não passariam no corredor do avião na visão da empresa. Elas encabeçaram o movimento ‘Velhas Gordas Feias’. No fim, ganharam o processo com o lema de que ‘profissão não tem tamanho’.

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