Kombi faz 60 anos de Brasil

História, números e causos do utilitário no país

Eugênio Augusto Brito, Leonardo Felix, Rodrigo Mora, Alessandro Reis, Fernando Miragaya Do UOL, em São Paulo (SP) e no Rio (RJ)
Carla Borges Pinto/UOL sobre Wikimedia

A sessentona Kombi

Velha Senhora foi fabricada de 1957 a 2013

O dia 2 de setembro marca a data inicial de fabricação de um veículo que marcou época no país: em 1957, o "furgão Volkswagen" (o nome Kombi surgiria anos depois) começava a ser montado no país (as vendas já ocorriam por importação desde o começo dos anos 1950), na antiga Brasmotor, em São Paulo (SP), empresa responsável por boa parte do início da fabricação automotiva no Brasil. 

Nosso país comprou, usou, vendeu e colocou na história 1,5 milhão de unidades da Kombi, enquanto no mundo todo foram 10 milhões de unidades. Mas não para por aí: você sabia que, todo mês, 6 mil unidades da Kombi trocam de mão? São 70 mil unidades em um ano cheio. O Brasil também abastece um mercado global frenético por Kombis "clássicas", com unidades que chegam a custar R$ 200 mil. Pois é.

Se no resto do planeta o modelo deixou de ser fabricado no final dos anos 1970, sendo substituído por utilitários atualizados, no Brasil a Kombi virou ícone e seguiu em linha com poucas alterações até dezembro de 2013, quando custava R$ 46 mil e teve de deixar de ser fabricada por conta da lei de segurança (que fez de airbags e ABS itens obrigatórios). Isso ajudou a criar um mercado e formar uma cultura.

Veio a aposentadoria, nenhum substituto chegou e, quase quatro anos depois, ficaram marcos, histórias e saudade de quem viveu algum episódio a bordo da Kombi. UOL Carros mostra algumas dessas histórias, dá números e revela como está agora a Velha Senhora, agora sessentona.

Um modelo carregado de histórias

Clássico "made in Brazil"

Brasil virou exportador de Kombi de até R$ 200 mil

Rodrigo Mora, colaboração para o UOL

Uma rápida busca no Google aponta meia dúzia de empresas que se dizem especializadas em vender Kombi para o exterior. A página na internet do Import Kombi Export tem visual um tanto tosco, mas se comunica em inglês, alemão e espanhol e diz entregar a van em até sete dias.

Sem números oficiais, é difícil fechar dados concretos sobre a exportação de um modelo aposentado como a Kombi. Outra empresa do ramo, a Cool Kombi diz já ter despachado 178 unidades, segundo seu site. Há números, porém, sobre o mercado de Kombi usada: foram quase 73 mil operações em 2016 e mais 43 mil no primeiro semestre deste ano.

Não há timidez quando o assunto é preço. Um dos anúncios, em inglês, é tentador: "Camper 1973 for sale. Cheap! Only US$ 16.500. Ready to go". Traduzindo para o português "PT-BR": Kombi 1973 à venda. Barata! Só R$ 52.150. Pronta para embarcar".

Talvez esteja em conta, mesmo. Segundo outra agência, a Combi Brésil, um modelo similar varia entre 25 mil e 50 mil euros (entre R$ 100 e R$ 200 mil). No Brasil, a mesma Kombi em melhores estados de conservação e originalidade gira em torno de R$ 100 mil. E faz só quatro anos desde que a Kombi deixou de ser produzida.

Mercado em alta, produção inexistente, polêmica no ar: um dia a Kombi brasileira vai sumir do mapa, entrar em extinção? Alguns adoradores do modelo, sobretudo em redes sociais, chamam de "evasão de patrimônio histórico". Mas colecionadores importantes discordam.

"Não vejo com maus olhos a exportação de carros brasileiros. O fato de eles terem sido fabricados aqui, povoado nossas ruas, não quer dizer que eles estão amarrados ao nosso país. Deveríamos, por outro lado, facilitar o ingresso de carros provenientes de fora. Essa troca de diferentes carros acrescentaria muito à nossa cultura geral e à nossa cultura automotiva, pois somos muito centrados nos modelos de fabricação nacional", afirma Eugenio Chiti, que é especialista em Romi-Isetta, o primeiro carro nacional.

Na contramão da tese do patrimônio perdido, um clássico brasileiro em ruas estrangeiras pode fazer bem à imagem da indústria nacional.

Para o comerciante Maurício Marx, trata-se de uma negociação como outra qualquer: "Tem gente que diz que não pode mandar para fora Kombi, mas importa carro dos EUA. Isso é incoerência".

Não é legal ver um Willys Interlagos em um concurso de elegância na França? Ou um encontro de Puma no interior da Alemanha? É sensacional levar a bandeira do Brasil para esses países."

LEIA A REPORTAGEM COMPLETA NO LINK ABAIXO

ler mais

Exportar é bom?

Graças às exportações de modelos para os quais ninguém pagava nada, tem gente lá fora comprando e dando visibilidade ao produto brasileiro.

Roberto Suga

Roberto Suga, presidente da Federação Brasileira de Veículos Antigos

O único senão é que, em muitos casos, nossos carros, e em especial a Kombi, não vão rodar no mundo como 'made in Brazil'. Na maior parte dos casos, vão passar como se fossem 'made in Germany'. Chato, não?

Eugenio Chiti

Eugenio Chiti, Especialista em Romi-Isetta, primeiro carro nacional

Kombi vende bem quatro anos depois

Utilitário também tem manutenção fácil

Alessandro Reis, colaboração para o UOL

Engana-se quem pensa que a Kombi virou apenas item de colecionador, alvo de entusiastas e exportadores. Como foram feitas mais de 1,5 milhão de unidades no país de 1957 a 2013 e nenhum sucessor apareceu, o modelo tem com alta procura, agora no mercado de usados.

Com o apelo de sempre -- preço acessível, boa disponibilidade de peças de manutenção e mecânica simples de lidar -- ainda é um veículo muito usado para o trabalho, desde transporte de mercadorias até funcionar como food truck ou loja móvel.

Em geral, os donos de Kombi usam o veículo não apenas para pegar no pesado, mas também como carro de passeio. Facilita ainda haver boa oferta de peças no chamado aftermarket, de componentes paralelos. A exceção fica por conta de detalhes de acabamento e itens de modelos mais antigos.

"Como foram produzidas muitas unidades e considerando que a Kombi compartilha componentes com outros modelos de grande volume, como Fusca, o mercado independente de itens de reposição está bem abastecido", avalia Antonio Fiola, presidente do Sindirepa (sindicato paulista da Indústria de Reparação de Veículos).

"Me atrai a versatilidade de adaptação para as mais variadas funções, além de ser um carro de fácil manutenção. Anteriormente, recorria a desmanches e peças mais baratas. Atualmente, já não se encontra componentes com tanta facilidade para as mais antigas, de 1975 para trás", relata Ronaldo Poli, empresário, publicitário, fotógrafo e dono de uma Kombi 1974 em janeiro de 2013.

Depois de cuidadosa reforma, presta serviço nos finais de semana transportando noivas em casamentos e também como "Photokombi", um estúdio fotográfico móvel.

Durante a semana, a Kombi velha de guerra assume o papel de pet shop sobre rodas, com itens para cães e gatos de seus clientes em São José dos Campos (SP).

E se, ainda assim, faltar um componente? 

O jeito é recorrer a clubes de entusiastas da Kombi e mecânicos especializados em antigos -- estes têm mais facilidade em encontrar peças.

Técnico em logística, Técio Bruno comprou neste ano uma Kombi 1998 que até tem nome: Geralda. Do modelo envidraçado, a Kombi pega no batente fazendo entrega de mercadorias, enquanto os fins de semana são reservados ao lazer.

"Está difícil achar algumas peças, mas nem todas. O limpador do para-brisa é um componente que não se encontra com tanta facilidade", relata.

O produtor de eventos Elton Bernardo prefere os modelos mais antigos, refrigerados a ar, e tornou-se o proprietário de uma Kombi Furgão 1991 há pouco mais de 40 dias. A "vida mudou", diz ele, que usa o veículo para transportar bebidas em eventos na capital paulista. Ele também comercializa as peças que produz.

Eduardo Henrique Neuhaus, empresário de Três Passos (RS) comprou há cerca de um ano uma Kombi Furgão 1986 para trabalho e uso pessoal. O veículo, inclusive, foi adaptado em quarto, com banco que vira cama e outros apetrechos para cair na estrada com a namorada em dias de folga.

"Temos quatro cachorros e um gato e todos viajam juntos. Quanto à manutenção, é fácil arrumar peças com preço acessível. Ainda existem mecânicos que gostam de lidar com carro velho. O importante é deixar tudo em dia é assim não haverá problemas", afirma Neuhaus, que encontrou a Kombi parada embaixo de uma árvore já há seis meses.

"Não tenho nenhum arrependimento em tê-la comprado. Com o tempo, será cada vez mais valorizada", conclui.

ler mais

A simplicidade que você confia

A manutenção é barata e não podemos esquecer que as mais antigas compartilham peças com o Fusca. Troquei o cabo da embreagem e paguei só R$ 22

Elton Bernardo

Elton Bernardo, Dono de Kombi Furgão 1991

Ainda existem mecânicos que gostam de lidar com carro velho. O importante é deixar tudo em dia é assim não haverá problemas

Eduardo Henrique Neuhaus

Eduardo Henrique Neuhaus, Dono de Kombi Furgão 1986

Os valores ainda não ficaram mais caros, mas isso deve acontecer com o passar dos anos, quando a Kombi de fato virar raridade e ficar restrita aos colecionadores

Antonio Fiola

Antonio Fiola, Sindicato da Indústria de Reparação de Veículos/SP

Reprodução Reprodução

Ter Kombi é se render aos clichês

Mas você pode ter uma sem gastar muito

Fernando Miragaya, colaboração para o UOL

É difícil falar sobre a Kombi sem recorrer a algum clichê. Veículo por mais tempo produzido no Brasil, de 2 de setembro de 1957 a 19 de dezembro de 2013, atrai termos como "Sessentona em boa forma", "Vovozinha" e os eternos apelidos "Corujinha", "Pão de forma" e "Velha Senhora".

Ficar tanto tempo em linha transformou esse Volkswagen em ícone: virou carro de trabalho, veículo militar e, claro, ícone da contra-cultura. E supervalorizou.

Mas não é por isso que você precisa obrigatoriamente gastar uma fábula para ter uma.

Quero uma sem gastar muito

Fuja dos grandes centros para achar aquela Kombi que você quer, em estado aceitável e sem ter de vender um rim para comprá-la.

Foi assim que o produtor de eventos paulista Marcio Marques Vieira encontrou a sua. Nem precisa ser uma cidade pequena: a dele, ano 1975, foi achada em Campinas (SP). Mas foram dois anos em busca do modelo ideal, uma "Corujinha" com bom custo/benefício: "Tem Kombi de R$ 5 mil até mais de R$ 100 mil. Tem que garimpar e sair das grandes metrópoles, pegar indicações, fuçar Facebook e classificados".

Tem muita Kombi boa escondida por aí. Por isso, ficar só em sites de vendas de carros pode te afastar de negócios vantajosos -- ou te custar muito dinheiro. O carioca Ricardo Pedrosa Láo começou suas andanças atrás da Velha Senhora depois do falecimento precoce do pai, um fã de Volkswagen, em 2005.

"Remexendo nas suas gavetas, encontramos uma Kombi feita de lata, produzida pela Metalma (Metalúrgica Matarazzo), que ganhei quando fiz quatro anos de idade e que dávamos como perdida. Aquilo tocou a todos e resolvi comprar uma Kombi e fazê-la o mais fiel possível à Kombi de brinquedo", recorda.

Em 2008, ainda em produção e sem o rótulo de clássica, ainda tinha preços razoáveis. Mesmo assim, foi difícil achar um exemplar que não tivesse em "estado terminal". Achou uma 1970 Luxo em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Essa Kombi ficou famosa em eventos, na TV e até na biografia do grupo Roupa Nova.

Ele tem outra, uma Standard 1969, garimpada nos fundos de uma marcenaria na Pavuna, zona norte carioca, debaixo de muita serragem e poeira, mas com a mecânica perfeita e índice de originalidade invejável. O dono ainda a usava para levar espuma para uma fábrica de estofados e fez o carro pegar na segunda tentativa.

"Depois do espanador deu para ver a pintura impecável e a estrutura íntegra do carro. Nunca vi uma Kombi com tantas peças originais. O valor pedido na época não era barato, mas, para uma naquele estado e que não tinha que fazer nada, era um achado imperdível".

Verifique antecedentes

A funilaria demanda tempo para reparar, mas é preciso checar mais que a cara da Kombi antes de acertar a compra. Feita sobre monobloco e com capacidade de carga de uma tonelada, tem gente que maltrata as Vovozinhas sem dó nem piedade. Por isso, investigar a procedência e examinar minuciosamente a estrutura do veículo.

Confira longarinas e travessas, se as portas estão alinhadas e se abrem e fecham normalmente, e se a distância para o solo é uniforme.

"Estrutura é fundamental e mais importante do que a Kombi estar pegando e andando. Kombi torta não tem quem alinhe. Andar é acessório", brinca Ricardo Láo.

Até porque a mecânica, principalmente dos modelos com motor refrigerado a ar, é conhecida pela simplicidade. Neste caso, porém, não esqueça da lataria, pois são veículos que dão muita ferrugem e cujas peças podem representar um custo extra.

"Tem que ver todos acabamentos. Dependendo da peça, pode custar 10 vezes mais de que a de uma Kombi moderna", avisa Vidal.

Também é preciso ter em mente que achar aquela Kombi dos sonhos provavelmente demandará tempo e dinheiro para recuperação. Os veículos de Ricardo Láo consumiram mais de um ano, cada, de restauração. Mas valeu a pena: aquela Kombi de 1970 agora é famosa.

"Após um ano e dois meses de restauração completa, o carro estava pronto e recebeu no seu interior a miniatura que a inspirou. Viaja junto para onde for. Além de nosso uso, ela participa de eventos promocionais e artísticos". Além do Roupa Nova, entre outros, o "Fantástico", da TV Globo, também já usou o modelo.

O bacana é que poucos deixam a Kombi "na cristaleira". A maioria usa a van no dia a dia, seja pela versatilidade, conveniência ou mesmo pela curtição. E isso explica o sucesso da Velha Senhora seis décadas depois.

ler mais
Sebastião Moreira/EFE Sebastião Moreira/EFE

Por que a Kombi é tão importante?

Eduardo Gedrait, presidente do Sampa Kombi Clube

Entre as décadas de 1950 e 1970, a Kombi era praticamente o único meio de transporte racional para as pessoas. Ela foi importante porque ajudou a construir o Brasil numa época de pleno desenvolvimento, construção de Brasília etc. A Kombi tem essa função gravada na sua história.

Tudo isso sendo um veículo muito simples. Por ser derivada do Fusca, basicamente construída sobre a mesma plataforma, era um carro de manutenção muito barata. O motor a ar não fervia na estrada e a mecânica, qualquer chave de fenda e arame fazia funcionar. Essa característica foi apreciada por bastante tempo.

Aliás, muita gente se surpreende quando você fala que ela é quase do tamanho de um Fusca, né? [Ambos têm o mesmo entre-eixos, de 2,40 m, mas a Kombi é 30 cm mais comprida, chegando a 4,32 m. Claro, é mais larga e alta.]

A grande sacada, que inclusive a Volkswagen explorou bastante, era que a Kombi era um veículo de trabalho que se tornava um carro de passeio só colocando os bancos. Essa versatilidade é uma das marcas registradas dela.

Além disso, a Kombi foi o ganha-pão de muitas famílias: foi táxi, carro funerário, entregadora de pão, de ovo, de água... , carro de passageiro, de polícia, de bombeiro.

A simplicidade também ajudou a fazer as pessoas se apaixonarem. Ela tem aquela carinha simpática dela, aquele jeitão de "quadradinho sobre rodas" que não é nada nada aerodinâmico. Quem já dirigiu sabe que ela não é um veículo comum, tem um comportamento totalmente diferente de suspensões, o motorista vai sentado sobre o eixo [dianteiro].

Com certeza as pessoas têm mais carinho por aquela Kombi split (Corujinha), com vidro dividido, feita até 1975. A Kombi luxo, que tem duas cores, é unanimidade. Todo mundo que quer comprar uma Kombi procura pela split de duas cores. E as que foram produzidas até 1963 tinham um charme especial, porque as janelas de trás eram fechadas, então essas Kombi hoje são cultuadas como objeto de desejo entre colecionadores.

A Kombi também foi um carro que conseguiu atravessar décadas sem passar muitas alterações e preservando suas características, então para mim esse é o seu maior legado. E foi justamente por isso que nós criamos o clube: para preservar sua memória.

Não podemos deixar de falar que, quando falaram que a Kombi ia sair de linha, o mundo se mobilizou. Foi o único veículo do mundo que teve uma campanha de "deslançamento" e foi uma comoção geral.

Eu achei até que o movimento em torno dela ia diminuir, mas não, né? O interesse só cresceu.

ler mais

Curtiu? Compartilhe.

Topo