Vou de... app?

Aplicativos mudaram o jeito como pedimos corridas, mas os táxis não morreram

Gabriel Francisco Ribeiro Do UOL Tecnologia, em São Paulo
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Vou de táxi. Cê sabe? Tava morrendo... de saudade

Se a música imortalizada pela Angélica na década de 80 tivesse sido feita hoje, o refrão seria diferente. A buzina que ela ouve pela janela do seu quarto seria um Uber? Provavelmente.

Nem parece que faz só quatro anos que o primeiro aplicativo com transporte privado chegou e transformou a forma como nos locomovemos nas principais cidades brasileiras. Depois da Uber, logo vieram outras e uma série de apps, como 99 (até então era só para taxistas) e Cabify, ficou disponível para você chamar um carro.

Houve brigas, a lei precisou ser revista, mas hoje a nova categoria de transporte se consolidou. E, quem temia pelo fim do táxi, pode ficar tranquilo: estudos apontam uma recuperação do setor.

Você deve se lembrar bem. Em 2014, quando a Uber chegou ao Brasil, o setor de táxis se sentiu ameaçado. Protestos se espalharam por toda parte e culminaram numa onda de violência. Os taxistas, que já tinham uma fama ruim por uma parte dos profissionais prestar um serviço de baixa qualidade, ficaram com a imagem ainda mais arranhada.

Mas não foi só isso que afastou a população: além de balinha, água e silêncio, os carros do aplicativo ofereciam um preço muito mais atraente.

Os taxistas, claro, sentiram a concorrência na pele e tiveram que reagir --isso é admitido por taxistas, motoristas, sindicatos e empresas do setor.

Em cidades onde a Uber já opera há algum tempo, como São Paulo, não é raro encontrar carros com água e balinha, marca registrada dos "ubers". Eles também aderiram aos mapas de trânsito, pagamentos online, carregadores e até TV no encosto do banco.

O taxista mudou o atendimento por causa dos apps, te digo categoricamente. Só os velhinhos no ponto de táxi, jogando dominó, que não têm jeito, não mudam...

Marcos Bujes

Marcos Bujes, ex-taxista e atualmente em apps como Uber

Taxista perde muito tempo cuidando da vida dos apps. Tivemos momentos ruins, desgastou muito a nossa imagem. Não podemos generalizar, mas o mau atendimento repercute mais que o bom. No mínimo, se fez uma autocritica

Wagner Caetano

Wagner Caetano, diretor operacional do Sinditaxi

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O tempo passou...

Logo após a chegada da Uber veio a crise econômica, e com ela o boom de novos motoristas privados. E ficou claro que nem tudo eram flores.

Além de alguns motoristas despreparados começarem a oferecer o serviço, quem dependia do app para viver sofria na mão das empresas, que abocanham grande parte do valor da corrida.

Um estudo do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) mostrou que 30% dos motoristas privados dos EUA perdem dinheiro quando os gastos com o carro são levados em conta. Eles ganham em média menos que um salário mínimo, deduzidos os impostos e as taxas das companhias.

Levantamentos parecidos apontaram que o problema se repete em outras cidades (e provavelmente é generalizado). Segundo cálculo do economista Jim Stanford, um motorista da Uber na Austrália recebe em média US$ 11,42 por hora. O salário mínimo local equivale a US$ 14,29/hora, e os taxistas recebem US$ 23,54/hora.

Na época, a Uber respondeu dizendo que a pesquisa americana era falha e não oferecia um retrato preciso dos ganhos dos motoristas, defendeu seu modelo de negócio dizendo que os motoristas têm flexibilidade de trabalho e, em média, ganham mais do que o salário mínimo. Mas as reclamações de baixa remuneração são antigas, e ela já perdeu alguns processos judiciais sobre o assunto.

O táxi não morreu

É inegável que o impacto dos apps de transporte privado foi grande nos taxistas. Tinha até quem previa uma extinção da categoria. Mas não foi o que aconteceu.

Estudo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) divulgado neste ano apontou uma recuperação importante dos táxis no mercado.

A pesquisa calculou que, em geral, a chegada da Uber a uma cidade provoca a queda de 56% nas chamadas via app por táxis. Em capitais que receberam o serviço mais recentemente (Norte e Nordeste), a queda foi de 42%. Mas, em mercados consolidados (capitais do Sudeste), a queda fica em 26%. Isso considerando apenas corridas via app - tem ainda quem acabe pegando táxis diretamente no ponto ou no meio da rua.

Guilherme Resende, economista-chefe do Departamento de Estudos Econômicos do Cade, explica que, após a chegada da Uber a uma cidade, taxistas costumam dar descontos e reduzir o valor cobrado em 12%. "No longo prazo, ocorre uma competição de preços e descontos, e o mercado [de táxi] consegue recuperar um pouco esse número perdido."

Segundo a 99, após a entrada da modalidade "pop" em uma cidade, as corridas de táxi em seu app aumentam em média 24%. Já a Easy projeta crescer 40% em 2018.

Agora baixou a poeira, e o setor se concentrou mais no atendimento. E, como caiu o nível do serviço do outro lado, o táxi retomou uma fatia do mercado. Não voltou a ser a mesma coisa, mas houve uma retomada, sim

Wagner Caetano

Wagner Caetano, diretor operacional do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo (Sinditaxi)

Na dúvida, tem para todo gosto

Você não precisa escolher um time: o lado bom é que os usuários passaram a ter mais opções de transporte

Motorista privado

A Uber chegou primeiro e dominou o mercado. Mas novas opções sempre surgem, algumas voltadas para públicos específicos. Existem apps para quem prefere motorista mulher ou para transporte de crianças e pets, por exemplo.

Taxista

Taxistas também passaram a ter seus aplicativos. O principal é a Easy, que chegou a oferecer carros privados também, mas desistiu. A Prefeitura de SP e o SindiTaxi recentemente criaram os seus. Outra opção é a Wappa, que passou a atender chamadas particulares.

Dois em um

A 99 é o principal app "dois em um": tem carros privados e táxis. A Cabify também te dá duas opções, mas só trabalha com táxis pretos, que são mais caros.. Em ambas, você escolhe qual serviço usar.

Vou de carro privado

Mais barato

Na maior parte do dia, o preço dos carros privados é mais baixo. Esse foi o principal diferencial da Uber, além de muitos considerarem o serviço melhor. Mas o valor pode variar nos horários de pico.

Menos espera

Os aplicativos conseguiram aumentar a oferta de carros e diminuir o tempo de espera. Se você estiver com pressa, é provável que o carro privado chegue primeiro.

Mais áreas

Os apps conseguiram atingir regiões onde o táxi não chegava, como a periferia. A Uber dá como exemplo a região metropolitana de Goiânia. Até o SindiTáxi diz que a Uber abriu um novo mercado.

Vou de táxi

Motorista que manja

Este é um argumento muito usado por taxistas. Taxistas costumam ser motoristas profissionais e dedicados a isso, ao contrário dos carros compartilhados. Eles costumam dominar o trânsito e só exercem essa função.

Preço tabelado

O preço dos táxis tem um valor máximo seguido pela bandeira. Nos apps, a tarifa é dinâmica - segue a oferta e demanda. Aplicativos como 99 e Easy costumam dar desconto de 30% nas corridas, o que torna tudo mais atrativo.

Corredor de ônibus

Em São Paulo, por exemplo, taxistas podem andar livremente pelas faixas de ônibus. Se você tem pressa e quer fugir do trânsito, é a melhor pedida. Estudo da Easy diz que a economia de tempo é em média de 30%.

Reprodução Reprodução

"Era taxista e virei Uber por qualidade de vida"

Marcos Bujes era taxista e costumava atuar no aeroporto de Guarulhos (SP). Como não tinha alvará, usava o carro de outra pessoa e tirava só 30% do ganho com as corridas. Ainda tinha de ajudar na manutenção do carro, na taxa da cooperativa e no seguro. Trabalhava 16 horas por dia e folgava apenas uma vez ao mês --a folga é determinada pela cooperativa. 

Tentou dois sorteios de alvará, mas não conseguiu. Então, largou tudo e virou motorista de aplicativos. 

"Foi por qualidade de vida e por ter a ciência de que não ia ter condições de ganhar o alvará da prefeitura. Hoje faço o horário que quiser. Só trabalho com isso, não tenho outro emprego. E com certeza ganho mais agora", diz.

"Taxista reclama muito. Anda na faixa de ônibus, tem isenção de rodízio e IPVA, desconto em compra de carro. Taxista tem que ver que o tempo mudou e a modernidade chegou. Os tempos são outros", opina.

Gabriel Francisco Ribeiro/UOL Gabriel Francisco Ribeiro/UOL

"Sou taxista e perdi 60% do que ganhava"

Para quem vive no ponto, porém, ficou mais difícil.

Antônio Afonso, 63 anos, é taxista há mais de 30. Fundou um ponto na avenida Brigadeiro Faria Lima, uma das mais importantes de São Paulo, e se mantém um feroz crítico dos apps de mobilidade, mesmo agora que grande parte da classe já se acostumou com a concorrência. Sua revolta tem motivo: diz ter perdido 60% do que ganhava antes da chegada da Uber ao país.

"É desleal. Tenho que pagar impostos, fazer vistoria, andar bem arrumado, manter o carro limpo, pagar alvará. E o Uber simplesmente vem aqui na minha porta pegar passageiro que era do ponto. É como se tivesse um estabelecimento e viesse outro cara montar uma barraca vendendo a mesma coisa sem pagar imposto", critica.

O taxista até se cadastrou em aplicativos, mas só aceita corridas quando não há o desconto de 30% dados pelas empresas. Por enquanto, tem sorte que seu ponto fica numa região movimentada da capital e clientes não faltam -- não é o caso de todas os pontos, que viram seus clientes sumirem.

Mesmo com o impacto na renda, Afonso não cogita virar motorista privado e prefere "fazer qualquer coisa menos virar Uber."

Tem espaço para todo mundo?

  • Guilherme Resende, do Cade

    "Sim. Os táxis, por exemplo, têm outras funções. Você pode pedir um táxi na rua, serve para alguém que está sem celular ou não quer usar o app. São três modalidades: o táxi de ponto, táxi de rua e rádio-táxi ou app. A Uber compete com esse último, não entra muito no serviço de rua"

  • Fábio Sabba, diretor da Uber

    "Para resolver a mobilidade urbana, não vai ter um único jeito. Acreditamos que táxi, Uber, BRT, metrô, bike de aluguel vão conviver na cidade. No fim das contas, o grande problema é o carro particular, que é mal utilizado, anda quase vazio e lota as ruas"

  • Ana Guerrini, diretora da 99

    "Existe espaço para os dois. Para todos os modais, na verdade. A gente, de fato, acredita que os dois se complementam, por isso oferecemos pop e táxi. A 99 é a única plataforma que une os dois. Existem dados que mostram que o pop até potencializa o táxi"

  • Bruno Mantecón, da Easy

    "O táxi não vai acabar. Fomos pioneiros ao lançar um app de táxi e continuamos investindo nisso, porque vemos a demanda crescendo e pessoas voltando a usar. A entrada do carro privado forçou o taxista a repensar. Foi até bom pela concorrência, mostrou que era possível fazer mais"

  • Marcos Bujes, motorista da Uber

    "Tem espaço para os dois. Tem aplicativos que abraçam táxi e motorista de app. Peguei um cliente que falou que não deixa de usar táxi, por causa da faixa de ônibus, quando está com pressa. Meu slogan é o seguinte: paz no asfalto"

  • Antônio Afonso, taxista há mais de 30 anos

    "Se continuar essa política do governo, se não regulamentar a Uber e outros aplicativos, o táxi vai acabar. Vai ser assim ao 'Deus dará', cada um faz o que quer. Pra mim está virando uma bagunça"

  • Wagner Caetano, do Sinditaxi

    "Cada um vai encontrar seu nicho. A guerra se deu muito em cima de preço, mas hoje nenhum dos lados está aguentando. Uma hora o preço vai se igualar, porque o custo operacional é praticamente o mesmo. Vai ter uma fatia de mercado pra cada um"

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O futuro das regulamentações

Em termos legais, as mudanças trazidas pela Uber ao transporte nas grandes cidades ainda não cessaram. A lei aprovada pela Câmara e sancionada por Michel Temer (MDB) neste ano diz que cabe aos municípios regulamentarem a atividade dos aplicativos, o que tem acontecido ainda lentamente.

Por outro lado, empresas como 99 e Easy são favoráveis a uma flexibilização dos táxis. O que está por trás disso é a tentativa de fazer taxistas terem o chamado "preço dinâmico" como os carros privados - atualmente, só é possível oferecer descontos nos táxis, nunca cobrar acima do taxímetro. Mas táxis também contam com benefícios que os apps não têm, como isenção de IPVA, desconto na compra de carro, entre outros.

"O mercado do táxi é muito regulado e pouco flexível. Até uma briga nossa em relação a órgãos municipais é mostrar que temos que discutir o quanto podemos flexibilizar a tarifa. Têm muitos pontos do dia que o concorrente está com tarifa dinâmica e o táxi poderia cobrar um valor maior por oferta e demanda, mas não conseguimos", argumenta Bruno Mantecón, presidente da Easy.

Isso pode afetar um dos momentos com a maior demanda por taxistas: a hora do rush, quando aplicativos como Uber ficam com a tarifa dinâmica bem cara. A ideia, por essa e outras razões, não agrada a todos. O sindicato diz que isso deve ser discutido com a categoria, enquanto o taxista Antônio Afonso vê como negativo e pede para o Uber ser regulamentado. 

Várias iniciativas fizeram o táxi ser competitivo: usar corredor de ônibus em São Paulo, em Belo Horizonte pode usar o corredor que vai ao aeroporto, tem desconto de 30%. Precisamos discutir a flexibilização da legislação do táxi. Uma questão são os alvarás e outra é que já temos o taxímetro digital, então por que não um preço dinâmico?

Ana Guerrini

Ana Guerrini, diretora da 99

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Temos um vencedor

No fim, quem ganhou foram os passageiros. Os preços no setor diminuíram, a oferta aumentou e a qualidade do serviço melhorou.

"Isso faz com que você comece a olhar todos os serviços de forma diferente. Tem diversas opções, em diversas plataformas e pode escolher o que você quer no momento que você quer", opina Fabio Sabba, diretor de comunicação da Uber.

A expectativa é que os mercados convivam em paz e com seus respectivos clientes, mas as ameaças ainda pairam no ar, com cidades que tentam inviabilizar a Uber e outros aplicativos ao criar uma regulamentação exagerada.

"Espero que não haja uma regulamentação em demasia dos aplicativos, que pode ter impacto no número de carros na rua. Menos carros diminui a oferta, e você tende a aumentar o preço", diz Guilherme Rezende, do Cade.

De qualquer forma, seja táxi ou de carro privado, há um novo novo normal: vou de app, cê sabe? 

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