O cara que fala com máquinas

Brasileiro ajudou computadores a entender sua voz, seus gestos e seu olhar; próximo passo: seus pensamentos

Helton Simões Gomes Do UOL, de São Paulo
Simon Plestenjak/UOL

Se hoje você assiste a vídeos online em celulares ou ouve músicas sem precisar carregar um trambolho na cintura, agradeça a esse engenheiro brasileiro.Cientista por trás de invenções como o formato de áudio WMA e de chips de processamento de vídeo, Henrique "Rico" Malvar, 61 anos, é o líder de um dos maiores celeiros de novidades tecnológicas do mundo, o Microsoft Research -- principal iniciativa da empresa para gerar inovação, área em que investe US$ 13 bilhões ao ano.

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A busca por "inventar trecos novos" começou, porém, antes das verbas bilionárias: na garagem da família, em Brasília, ele bolava modelos de ignição para a Brasília do pai, que morria de medo de o carro explodir. Ele ainda deu uma forcinha na criação do Kinect e criou um jeito de controlar computadores só com o olhar.

Dito assim, soa a passe de mágica. Não é assim nem de longe.

Parece que você é aquele gênio maluquinho, tem uma ideia de jerico e aí, pum!, resolve. Não é assim de jeito nenhum. Você tem a ideia, escreve um monte de código, roda, não funciona, pega os dados e analisa. Esse processo às vezes leva anos

Para os próximos anos, Rico trabalha em algo que soa a ficção científica ou ideia de jerico, mas não é nem uma nem outra: fazer pessoas darem ordens a máquinas só com a força do pensamento.

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Contratado por email

A chegada à Microsoft aconteceu de um jeito incomum. Em um domingo de 1997, Rico enviou um email para o diretor de tecnologia da empresa com uma proposta: contratá-lo para gerenciar uma equipe responsável por diminuir arquivos digitais o máximo possível.

Eu tava percebendo, naquela época, que um dia a gente iria ver vídeo na internet, escutar música só no computador, então o computador teria que digitalizar isso tudo. Eu disse, 'Olha, vocês deviam fazer isso e, se quiserem, eu crio e gerencio esse time para vocês'

Sua mulher viu aquilo e gargalhou. "Ela disse, 'Você tá doido. Mandou email direto para o chefão da Microsoft. Não vai dar nada'. Mas eu não tinha nada a perder. O pior que poderia acontecer era não receber resposta nenhuma. O curioso é que deu certo muito rápido: enviei a mensagem num domingo e no dia seguinte me chamaram para fazer entrevista." 

Como morava em Boston, cruzou os Estados Unidos rumo a Seattle, onde mora até hoje.

A especialidade de Rico é compressão de mídia, algo que ficou famoso na série "Silicon Valley", que conta como a startup fictícia Pied Pier criou um algoritmo craque em miniaturizar arquivos. Hoje, Rico vê a mulher dar boas risadas com o programa, que mostra algo que ele penava para explicar quando estudava no renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos anos 1980.

Ele faz graça. "Eu digo, 'Tá vendo, amor, o pessoal que faz compressão hoje é artista'. Olha o tanto que o mundo mudou."

Invenções de 'gênio maluquinho'

Reprodução/Thinkstock Reprodução/Thinkstock

.WMA

O formato de música do Windows Media Player foi um forte concorrente do MP3 na época em que decolaram os downloads de música na internet

Reprodução Reprodução

Roundtable

Aparelho feito para videoconferências, com vários microfones na base e uma câmera 360º no topo, gravava imagem e voz de todos numa reunião

Divulgação Divulgação

JPEG XR

Provavelmente você já usou e não sabe; esse é o formato padrão para toda imagem incluída em algum programa do Office, do Word ao Power Point

Reprodução Reprodução

Controle de olhos

Você sabia que, em vez do mouse ou de teclas, dá para controlar o Windows com o olhar? Mais um trabalho de Rico

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Os trecos no carro do pai

A curiosidade pela engenharia começou aos 8 anos, quando ganhou um kit de eletrônica.

"Eu montava aquilo e pensava: 'Poxa, alguém inventou essas pecinhas, que fazem alguma coisa. Taí um tipo de brinquedo diferente, com que eu posso inventar brinquedos novos'."

Conforme a brincadeira foi ficando séria, Rico passou a montar e desmontar máquinas domésticas, do rádio à Brasília da família.

Meu pai reclamava de mim, porque eu pegava o carro dele, inventava um circuito novo de ignição eletrônica e colocava lá. Ele perguntava: 'Dá para usar o carro hoje? Você botou seus trecos lá. Não vai explodir comigo não'

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Computadores que ouviam homens

Ainda na faculdade, na Universidade de Brasília, Rico se comunicava com computadores por meio de cartões furadinhos. Depois, aprendeu uma imensidão de linguagens de programação, tudo para bater um papo com as máquinas.

De lá para cá, muita coisa mudou. E uma das tarefas, diz Rico, é inverter essa lógica: fazer computadores entenderem os humanos; não o contrário.

Hoje, máquinas já entendem o que as pessoas dizem melhor do que alguém de carne e osso -- a cada 100 palavras, não entendem cinco, enquanto a nossa média de incompreensão é de seis. "Hoje em dia, tradução em tempo real é fichinha", diz, lembrando que o recurso que faz isso no Skype foi feito por sua equipe.

Com o Kinect, foi a vez de nossos gestos serem compreendidos por sistemas eletrônicos. O sensor de movimentos foi abandonado, mas muita da tecnologia dele agora está no Hololens, os óculos de realidade mista em que a Microsoft aposta suas fichas para combinar o mundo virtual aos ambientes reais de escritórios e indústrias.

A última criação de Rico nessa linha foi o controle com os olhos.

Daqui alguns anos, você vai usar o controle com olhos todo dia. Por exemplo: na hora do seu lanche, enquanto estiver comendo, você vai querer mexer na internet, mas não poderá falar, porque estará mastigando o sanduíche nem usar as mãos por estarem sujas maionese. O que fazer? Você usará o controle de olhos

Rico Malvar

Rico Malvar

Conexão entre chips e neurônios

Depois de o Controle com Olhos virar item básico do Windows, ele já foi usado até para controlar cadeira de rodas. A tecnologia foi pensada para auxiliar pessoas com doenças que paralisam o corpo. Mas e se até os olhos deixarem de se mover? Já está no forno uma solução para isso.

Não estamos muito longe disso: eu vou pensar em alguma coisa, e o computador vai me ajudar

Rico já trabalha em um acessório que fará pensamentos virarem comandos para máquinas. Ele não revela muito, mas diz que o gadget consegue ler padrões elétricos do cérebro, aplicar inteligência artificial sobre esses dados e descobrir algumas coisas.

Antes de você precisar apertar qualquer coisa, bastará pensar para isso acontecer

Por exemplo: você pensa em ligar para seu irmão, e pipoca na tela do computador ou do celular uma caixa de texto: "Deseja falar com José pelo Skype?"

O funcionamento do cérebro ainda é um mistério para o mundo da ciência, mas, segundo diz Rico, isso pouco importa. "A gente não precisa entender tudo sobre o cérebro para poder chegar a esse ponto. Basta que entenda o suficiente para permitir um pequeno fluxo de informação para a pessoa conseguir se comunicar."

Ricas previsões

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Ordem mental

"Você não vai precisar teclar e dar comandos para o computador. Sinceramente, a gente não está muito longe disso: eu vou pensar em alguma coisa, e o computador vai me ajudar"

Divulgação/Microsoft Divulgação/Microsoft

Solução quântica

"A inteligência artificial criou uma revolução tão importante quanto a eletricidade, já que todo software tem que ser inteligente, e a computação quântica vai permitir que a capacidade computacional aumente."

Reprodução/UVMBored Reprodução/UVMBored

Leis, por favor

"Nós que estamos na ponta da evolução da tecnologia temos que informar a sociedade da melhor forma possível. Não é: "eu faço a tecnologia e regulem vocês". O governo não sabe como a tecnologia vai funcionar."

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RIP lei de Moore

"A lei de Moore praticamente acabou. Temos chips de 14 nanômetros, mas não chegaremos a 5, porque o custo é proibitivo. Isso freia a lei de Moore. Em vez de ter mais transistores, a gente cria arquiteturas diferentes."

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(Novo) fim da privacidade?

É, eu sei. Você já deve estar pensando que essa tecnologia pode reeditar o fim da privacidade: dessa vez, o dos pensamentos. Rico conta que, no futuro, contratos de privacidade de empresas de tecnologia passarão a colocar pensamentos sob a mesma proteção de dados mais simples, como nome, número de telefone, RG, CPF ou a forma como você costuma escrever textos.

Um leitor de pensamentos vai ter restrições e tratar pensamento como informação privada

Esse tipo de salvaguarda já existe para o movimento dos olhos, por exemplo. "Isso vai existir e não vai demorar muito."

Estamos preparados?

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