O drible tec na eleição

Na era do WhatsApp, campanhas digitais deram olé na Justiça Eleitoral, craque nos meios analógicos

Gabriel Francisco Ribeiro, Helton Simões Gomes, Márcio Padrão e Rodrigo Trindade Do UOL, em São Paulo
Dário Oliveira/Folhapress

Fenômeno sem precedentes

Em maio deste ano, às vésperas da eleição, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma importante decisão em relação à propaganda eleitoral: não poderiam ser feitas via telemarketing.

Propaganda por telefone é infinitamente mais incômoda e invasiva do que e-mails e mensagens

Luiz Fux, ministro do STF em seu voto

Muito antes de surgirem na TV candidatos desconhecidos pedindo seu voto, a novidade para a eleição era a liberação de campanhas via redes sociais, que passaram a ser vigiadas de perto pelo TSE. Havia o temor de que o Brasil reeditasse a campanha de desinformação no Facebook que levou Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

O Brasil, porém, não só zerou esse jogo, como o elevou para outro patamar, a ponto de a OEA (Organização dos Estados Americanos) classificar a disseminação de notícias falsas que rolou por aqui como "fenômeno sem precedentes" porque foi feita exatamente pelo WhatsApp, uma rede privada.

O UOL Tecnologia ouviu especialistas para levantar quais foram os desafios trazidos pela tecnologia durante as eleições.

O fenômeno que estamos vendo no Brasil não tem precedentes, fundamentalmente por uma razão. No caso do Brasil, está se utilizando a rede privada, que é o WhatsApp, que apresenta muitas complexidades para que as autoridades possam acessar e investigar

Laura Chinchilla, chefe da missão da OEA

Laura Chinchilla, chefe da missão da OEA

Missão dada é missão (não) cumprida

Pedro Ladeira/Folhapress Pedro Ladeira/Folhapress

Expectativa...

Quando disse em agosto que o Código Eleitoral previa a anulação de candidaturas impulsionadas por fake news, o ministro Luiz Fux, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), gerou grande expectativa de que a eleição seria totalmente livre de desinformação.

Roberto Jayme/UOL Roberto Jayme/UOL

... Realidade

A eleição veio, e a realidade soterrou a expectativa. A tragédia anunciada aconteceu: a desinformação correu desenfreada e os meios digitais ditaram o ritmo da (falta de) discussão. O tribunal, ainda que célere em suas decisões, teve a seu dispor instrumentos jurídicos insuficientes para o desafio que topou debelar.

Mudança na regra

Para especialistas, a lei eleitoral foi atualizada para tentar impedir a proliferação de novos escândalos de financiamento ilícito, mas deixou de acompanhar para que lado foi a sociedade.

A lei eleitoral trouxe mudanças importantes para o pleito deste ano. Você não poderia receber ligações de partidos ou candidatos, mas, sim, ser inundado de mensagens deles no WhatsApp ou ver inúmeras postagens impulsionadas por eles no Facebook.

Para Ricardo Penteado, advogado especialista em Direito Eleitoral do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE), liberar campanha eleitoral em um meio e não permitir em outro não resolve o problema eleitoral.

Proibir meios de comunicação é uma coisa ridícula a essa altura do campeonato. A lei eleitoral devia estar preocupada com transparência e mais nada

Quando a Justiça tem de intervir? No caso de ofensa ou de fake news. Isso vale tanto para TV, Twitter ou para o Facebook. A preocupação da Justiça deveria ser quanto ao custeio e, quando provocada, a respeito do conteúdo. Algumas regras da lei eleitoral denotam uma intervenção do Estado onde não deveria interferir

Ricardo Penteado, advogado especialista em Direito Eleitoral do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE)

Caneladas da lei

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Post pago

Só diretórios de campanha podem pagar para impulsionar anúncio eleitorais nas redes, mas teve influenciador que fez isso e até partidos que pagou famosinho para falar bem de candidato

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Rede social x app de chat

O impulsionamento de posts em redes sociais pode ser feito pelas ferramentas dos próprios sites, mas teve partido que usou 'máquinas de disparo' terceirizadas no WhatsApp

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Esse dado é meu?

A lei eleitoral não permite usar contatos que não tenham sido cedidos espontaneamente pelos eleitores, mas os dados são facilmente obtidos por empresas de envio em massa

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Ligação x mensagem

STF proibiu propaganda via telemarketing a pedido do TSE, mas, se partidos quisessem mandar mensagem via app, podia

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Campanha digital, lei nem tanto

"A Justiça Eleitoral tem boa compreensão da propaganda na TV e na rua. Tudo é regradinho", diz Francisco Brito Cruz, diretor do Internetlab. Nesta eleição, porém, um componente mudou tudo: a internet. Ela descentralizou a atuação de uma campanha em diversos núcleos que não precisavam seguir uma diretriz central.

A estrutura de determinadas campanhas tem formato muito mais de rede do que antes. Isso faz com que seja difícil enquadrá-las e responsabilizá-las do jeito que era feito anteriormente, porque essas partes da rede podem agir de maneira semi-independente, trabalhando para a candidatura, mas sem vínculo.

Para Ricardo Penteado, do IDPE, o meio digital foi favorecido, porque a eleição foi movida mais base de trocas de acusações do que do debate de propostas. E a formação de bolhas, seja via algoritmo do Facebook ou pela criação de grupos no Whatsapp, favorece isso.

A internet ganhou uma força especial aqui no Brasil nessa campanha eleitoral, não só porque é um excelente meio de comunicação, mas, porque nessa eleição, a gente não teve uma discussão política e, sim, acusações e o espalhamento de fatos, verdadeiros ou não

Você vê movimentos como MBL [Movimento Brasil Livre] que surgiram da internet. Quando a eleição chega, eles já têm um aparato formado, e a política eleitoral passa a não existir apenas em época eleitoral. A mobilização eleitoral ocorre em doses diárias

Ricardo Penteado, do IDPE

Esse formato em rede necessita de uma reformulação dos instrumentos de responsabilização

Francisco Brito Cruz, diretor do Internetlab

E as redes sociais?

Se foi desafio para uns, as eleições de 2018 foram uma baita oportunidade para outros. Facebook e Twitter tiveram que mexer alguns pauzinhos para evitar comportamentos suspeitos que tentassem manipular seus algoritmos.

O Twitter até tentou detectar condutas anormais ou automatizadas, que pudessem indicar a existência de um robô por trás de uma conta. A plataforma do passarinho azul criou uma equipe dedicada a monitorar tentativas de manipulações de conversas para reagir em caso de irregularidades.

O esforço, no entanto, não impediu que tópicos muito falados no Brasil fossem parar nos Assuntos do Momento de países como Ucrânia, Vietnã, Belarus e Bahrein. Isso não quer dizer que a política brasileira passou a interessar lugares tão distantes. Quer dizer que robôs criados por lá eram usados para tumultuar as conversas por aqui.

Veterano em polêmicas eleitorais, o Facebook parece ter sido menos afetado por agentes automatizados. Depois da eleição dos Estados Unidos em 2016 e o escândalo do Cambridge Analytica, a rede social criou uma "sala de guerra" para detectar e deletar conteúdos que tentassem interferir nas eleições. Boa parte do trabalho era feito por ferramentas de inteligência artificial que identificam publicações suspeitas. Apesar do esforço de guerra, a empresa só excluiu páginas, grupos e perfis usados para distribuir fake news após denúncias veiculadas na imprensa.

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Checar fato para quem?

Um dilema fundamental das eleições deste ano ainda permanece sem uma resposta convincente: como trazer informações corretas com a mesma velocidade e alcance das notícias falsas, antes que estas causem grandes estragos?

Para Alexios Mantzarlis, diretor da rede internacional de checagem de fatos do Poynter, o Brasil enfrenta uma combinação tóxica dos desafios enfrentados por diversos países.

Ele admite que as agências de checagem, por mais que tenham crescido neste ano, ainda estão um passo atrás na corrida contra as mentiras.

Seu ecossistema de informações online inclui grandes páginas de notícias hiperpartidárias que exacerbam a polarização política, como nos EUA. Atores com motivação política parecem dispostos a quebrar regras e financiar campanhas obscuras através de mídias sociais como no México. E o WhatsApp está no centro da questão, como na Índia

Alexios Mantzarlis, diretor da rede internacional de checagem de fatos do Poynter

Divulgação/Poynter Divulgação/Poynter

Fact Checking: vida dura

As agências de checagem sofreram com a escala de notícias falsas e a polarização da discussão política.

Para o diretor da Poynter, o problema da escala até é contornável. Basta automatizar partes do processo de verificação de fatos. Já a polarização é um obstáculo bem mais complicado de transpor.

A ajuda de plataformas usadas para disseminar desinformação seria importante. O WhatsApp, por exemplo, poderia fazer parcerias com agências de fact checking e implantar algum mecanismo de checagem de fatos. Isso não quer dizer quebrar a criptografia do app.

Já o poder público, diz Mantzarlis, poderia criar equipes para responder desinformação viral, ainda mais nos processos de votação para não haver a quebra de confiança no processo.

O monitoramento para o bem de todos pode facilmente se transformar em vigilância para o benefício daqueles que estão no poder. Não devemos jogar a água suja do banho fora junto com o bebê

Alexios Mantzarlis, diretor da rede internacional de checagem de fatos do Poynter

O fator WhatsApp

Se Facebook e outros sites contavam com regras específicas e tiveram seu papel amenizado nas eleições, o mesmo não se pode dizer do WhatsApp. Terra sem lei, o app com 120 milhões de usuários no país virou o grande vilão das eleições de 2018. Notícias falsas espalhadas por ele desmontaram a imagem de adversários e tiveram, em algum nível, influência no resultado final.

Evidências não faltam. Um estudo apontou que, das 50 imagens sobre a eleição que mais circularam em grupos, apenas quatro eram verdadeiras. Outra pesquisa mostra que uma notícia falsa tem 70% mais chance de viralizar do que uma real. Por isso, boatos e desinformação sequestraram o debate, e propostas ficaram em segundo plano.

O caso do WhatsApp é agravado pela criptografia do aplicativo. Diferentemente de Facebook e outras redes sociais, o WhatsApp tem características que dificultar saber de onde partiu um boato e qual o alcance da notícia falsa. Seu caráter social, por outro lado, incentiva o compartilhamento da desinformação.

A ação de campanhas no WhatsApp

Foto: MAURO PIMENTEL / AFP Foto: MAURO PIMENTEL / AFP

Jair Bolsonaro (PSL)

Denúncia da Folha de S.Paulo apontou que empresários ligados a Jair Bolsonaro (PSL) contrataram empresas de marketing digital para espalhar em massa boatos e ataques contra o PT pelo WhatsApp. A ação é proibida pela lei eleitoral, já que se trataria de doação ilegal de campanha. A campanha nega irregularidades.

Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem

Fernando Haddad (PT)

A campanha de Fernando Haddad (PT) usou sistemas parecidos com o do seu opositor. A agência de marketing contratada pela campanha do petista teria usado serviços da Yacows, que atua com disparo de mensagens em massa pelo WhatsApp. A campanha nega irregularidades e aponta que usou apenas a base de contatos do PT.

Reprodução/TV Globo Reprodução/TV Globo

João Dória (PSDB)

A mesma Yacows disparou mensagens de WhatsApp favoráveis ao candidato ao governo de São Paulo, João Doria (PSDB), que acabou se elegendo no segundo turno. As mensagens envolviam ataques a Paulo Skaf (PMDB), que dividiu a liderança com Doria nas pesquisas até o fim do primeiro turno. Doria nega ter utilizado a ferramenta.

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Sinais de alerta foram ignorados

Se o WhatsApp saiu do controle durante as eleições, não foi por falta de aviso. Muitos sinais indicavam que isso poderia acontecer. Um dos alertas foi dado ao UOL Tecnologia por Aviv Ovadya, chefe de tecnologia do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Para ele, corríamos o risco de um "infocalipse":

Eu sei que o WhatsApp é um meio dominante de comunicação no Brasil. Estou preocupado com países onde a comunicação dominante é por grupos criptografados, como os do WhatsApp. Gosto da criptografia, mas ela torna bem difícil ver o quão penetrante a desinformação é

Ele cita como exemplo a desinformação causada no WhatsApp sobre a febre amarela: boatos atrapalharam a vacinação no país. Também inclui os golpes com promoções falsas que fizeram milhões de vítimas brasileiras no aplicativo. Se o sujeito não tinha senso crítico para duvidar de uma oferta irreal, por que duvidaria de notícias falsas?

Quando o problema estava só no Facebook, já haviam sinais claros de que esse barril de pólvora estava a uma faísca de explodir: em 2016, na semana do impeachment de Dilma Rousseff (PT), eram falsas três das cinco notícias mais compartilhadas no Facebook. No Facebook, porém, flagrar um conteúdo falso é facilmente identificável. O mesmo não ocorre no submundo do WhatsApp.

Reprodução Reprodução

Há solução para o WhatsApp?

Diante de tudo isso, surge a questão: como fazer o WhatsApp ser um ambiente mais saudável e sem desinformação?

As autoridades públicas poderiam criar penalidades para quem criasse algo falso, da mesma forma que ocorre com obras de arte, sugere Ovadya. Mas... quem definiria o que é real ou falso nessa história?

Outra solução apontada pelo especialista é forçar empresas de tecnologia a assumirem maior responsabilidade sobre seus produtos. Não adianta liberar geral e pedir desculpas mais tarde. Ovadya sugere que as Big Tech deveriam fazer o mesmo que as farmacêuticas: destinar ao menos 5% dos investimentos para ações de combate a problemas causados por seus serviços.

O máximo que o WhatsApp fez foi limitar o encaminhamento de mensagens para 20 contatos (o que Bolsonaro disse querer revogar) e colocar um aviso de mensagens encaminhadas para as pessoas notarem que o conteúdo foi compartilhado. Isso, contudo, não barra as notícias falsas.

As propostas de brasileiros

Entre pesquisadores, especialistas e o próprio TSE, diversas propostas já foram feitas ao WhatsApp para diminuir o alcance das notícias falsas. Não existe uma "bala de prata" contra os malefícios do app e as sugestões visam apenas minimizar o problema. Até aqui, o WhatsApp não seguiu nenhuma delas. Confira:

  • 1 - Limitar...

    ... o encaminhamento de mensagens para até cinco contatos, como é atualmente na Índia

  • 2 - Reduzir...

    ...a quantidade de membros em grupos e o volume de mensagens dos usuários

  • 3 - Diminuir...

    ...o número de grupos que cada usuário pode criar de 9.999 para 499

  • 4 - Restringir...

    ...o número de grupos em que cada usuário possa se inscrever

  • 5 - Criar...

    ... uma ferramenta que avise a veracidade do conteúdo por meio do 'identificador' da mídia

O dilema da punição

Com uma campanha feita em rede, qualquer pessoa com conexão virou um potencial cabo eleitoral. Com isso, a quantidade de incidentes pipocou mais ou menos na velocidade da internet. Isso colocou tribunais eleitorais diante do impasse de punir com pouco ou muito rigor condutas inadequadas, dizem os especialistas.

A legislação eleitoral fala que basta um voto comprado para cassar a eleição. Nós vimos uma série de situações que, ao fim e ao cabo, poderiam gerar cassação

Renato de Almeida Ribeiro, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e professor da Escola Paulista de Direito

A lista das "situações" é grande: envio em massa de mensagens pelo WhatsApp, pagamento de influenciadores digitais, campanhas pagas em redes sociais não feitas pelos partidos ou não registradas pelas campanhas... e, por fim, a onda de fake news vinda das próprias agremiações. ???????Fux disse que, nesse caso, seria possível a cassação.

 Mas o TSE foi lento ao combater as fake news. O candidato do PT, Fernando Haddad, afirmou que o órgão atuava como "Justiça analógica para um crime digital".

No momento, tanto o TSE como a PGR e a Polícia Federal seguem investigando supostas ações criminosas das candidaturas no WhatsApp e os possíveis efeitos disso no pleito.

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