História de Hollywood

Ciclista que se livrou da morte no genocídio em Ruanda vem à Olimpíada amparado por companheiros de equipe

Daniel Lisboa, Felipe Vita e Flávio Florido Em Kigali e Musanze, em Ruanda

O passado macabro

O breu e a neblina tomam Musanze assim que a noite cai. É assim em Ruanda. O país parece imerso numa penumbra enevoada e silenciosa boa parte do tempo. A falta de luminosidade é a regra mesmo em ambientes fechados. Como o Africana Bar, onde estamos em uma noite. O grandalhão com quem compartilhamos a mesa é amedrontador. 

Somos os únicos estrangeiros, e a maioria das pessoas ali parece se divertir. A exceção é esse homem corpulento de camisa vermelha. Ele nos observa por trás das lentes de seus óculos com um olhar entre o desconfiado e o ameaçador.

Ele bebe com outros dois rapazes. Recusou nossas ofertas de cerveja. Não se sensibilizou ao ser informado que éramos brasileiros, algo que em regra desperta a simpatia alheia. Diz ser advogado, mantém a postura taciturna. Até descobrir que fala com jornalistas. E nos fazer uma pergunta:

Vocês conhecem a história de Ruanda? Nós fizemos muitas coisas ruins aqui.

O grandalhão, um raro fumante em terras ruandesas, sai para acender seu cigarro na noite fria e úmida de Musanze. É o primeiro local a falar espontaneamente sobre as tais “coisas ruins” feitas naquele país: o último genocídio do século 20.

A Ruanda em tempos de massacre

Nathan Byukusenge talvez estivesse no vídeo acima. Apareceria sofrendo, chorando, morto. 

Ao invés disso, porém, você poderá ver Nathan em Deodoro, na zona oeste do Rio de Janeiro, em agosto deste ano. Ele será um dos 50 competidores da prova de Mountain Bike das Olimpíadas 2016. Sobrevivente do genocídio, aos 35 anos Nathan conseguiu chegar ao topo do esporte mundial ao se classificar em um torneio regional disputado ano passado em Musanze. 

Ele não será o primeiro ruandês a pedalar nas Olimpíadas: em 2012, Adrien Niyonshuti também representou o pequeno país na categoria Mountain Bike em Londres. Foi um marco para a história do esporte em Ruanda e para o ciclismo africano. Uma conquista que vai além dos resultados, e que agora terá Nathan como seu símbolo. O símbolo de um país desejoso de mostrar ao mundo que sim, “muitas coisas ruins” aconteceram lá. Mas ficaram no passado. 

Mas, afinal, o que motivou o genocídio?

Flávio Florido

Escapou do genocídio e driblou a desconfiança

“É impossível”. Foi o que Nathan escutou quando perguntou como fazia para se tornar um ciclista. Doeu: ele queria ser um daqueles homens que passavam por ele nas estradas. Homens velozes montando bicicletas muito melhores que a dele.

Nathan trabalhava então como “taxi biker”. Tinha 21 anos e transportava pessoas para lá e para cá em Kigali em uma bicicleta rudimentar. Em um bom dia, tirava algo em torno de dois mil francos ruandeses, ou US$ 2,5 (R$ 10). Quis saber de um conhecido como fazia para entrar para um time de ciclistas. Ganhou a resposta acima. Partiu então para a única solução que tinha à mão, adaptar sua bicicleta-táxi para acompanhá-lo no treino.

A iniciativa e a dedicação tocaram o técnico do time e Nathan ganhou de presente uma bicicleta adequada para corridas. Seguiu treinando e logo estava disputando a mais importante competição do país, o Tour de Ruanda.

Flávio Florido Flávio Florido

A realidade, entretanto, ainda estava longe da esperada para um atleta profissional. Só começou a mudar quando um técnico americano chegou a Ruanda em 2007 para observar ciclistas e montar um time. Nathan sequer tinha luvas para participar do teste. O americano emprestou as dele.

Foi esse técnico quem montou o Team Rwanda, time pelo qual Nathan se tornou de fato um profissional e chegou às Olimpíadas. Com os colegas de equipe, ele compartilha não só as dificuldades de se dedicar a um esporte em Ruanda. O passado de sangue também os une.

Em 1994, Nathan procurava por água para a família quando viu os assassinos hutus chegando. Conseguiu se esconder, mas assistiu ao pai ser morto a golpes de machetes e porretes. Adrien perdeu seis irmãos no genocídio. Já Obed Ruvogera teve três deles assassinados, além de dois tios. Rafiki Uwimana se perdeu dos pais e passou cinco anos sem saber se eles estavam vivos.

Fugir da morte foi só o começo

Flávio Florido

"Os assassinos estavam procurando em todos os lugares"

Durante o genocídio, eu tinha sete anos de idade. Eu perdi meus irmãos e foi uma época difícil. Os assassinos estavam procurando gente em todos os lugares. Então, você não podia correr de jeito nenhum. Eu tive que me esconder com minha família no mato por alguns dias. Se Deus achava que era sua hora, você morria. Se Deus achava que não era sua hora, ele te protegia. Então, eu acredito que Deus quis proteger a mim e alguns da minha família

Adrien

Adrien

Eu tinha perdido o meu pai e a minha mãe fazia cinco anos. Eu não sabia o que estava acontecendo com eles e eles não sabiam que estava acontecendo conosco [eu e minha vó]. Então, eu passei cinco anos sem saber se minha família estava viva. Eu não podia fazer nada porque eu era criança e minha vó era muito idosa. Muita coisa de ruim passava pela minha cabeça

Rafik

Rafik

Flávio Florido

E a história vai virar mesmo um filme de Holywood

Todas as histórias que você conheceu até agora começaram num estalo. Um estalo do americano Jonathan “Jock” Boyer. Ex-ciclista profissional, ele desembarcou em Ruanda em 2006 apenas para ajudar um amigo a organizar uma corrida de bicicletas de madeira. Mas viu os ruandeses perambularem pelas colinas do país em bicicletas rudimentares, transportando enormes sacos de batata e café, e percebeu que haveria de existir talento ali.

O americano voltou ao país no ano seguinte. Testou e aprovou alguns ciclistas, entre os quais Adrien, Nathan, Obed e Rafik. De novo, Jock pensou que seria algo pontual. Mas recursos vindos de patrocínios e doadores começaram a chegar, e o time foi conseguindo se manter. Surgia o Team Rwanda.

Vieram as primeiras corridas fora do país. Até que, em 2011, o Team Rwanda conseguiu a façanha de classificar o primeiro ciclista local para uma Olimpíada. Com Adrien em Londres, aqueles sobreviventes do genocídio chamaram definitivamente a atenção. Um documentário sobre seus feitos, “Rising from Ashes” (ressurgindo das cinzas), foi lançado em 2012.  E não deve parar aí.

Flávio Florido Flávio Florido

Hollywood também achou que essa história dava um filme, e uma grande produção sobre o Team Rwanda está em andamento. Terá roteiro de David Seidler, o mesmo de “O Discurso do Rei”, e especula-se que ninguém menos que o galã Leonardo de Caprio fará o papel de Jock.

Hoje, o Team Rwanda tem cerca de 15 atletas fixos e mais alguns juniores que eventualmente treinam com o time. O alojamento da equipe em Musanze tem dormitórios, cozinha, restaurante, mecânica e uma ampla área verde. O local foi doado pessoalmente pelo presidente Paul Kagame.

Apesar do sucesso, o Team Rwanda ainda depende quase totalmente de doações. A federação de ciclismo local até paga alguns dos custos dos atletas em competições.  Mas em torno de 95% dos cerca de 500 mil dólares anuais necessários para manter o time funcionando vem de doadores dos EUA, Europa e África do Sul.

E quem é Jock, o técnico-pai?

Flávio Florido Flávio Florido

Como vivem estes heróis locais

A casa de Nathan

Nathan começou a construir sua casa, onde vive com a mulher e o filho, em 2010. Agora está quase pronta. Fica em um bairro residencial no norte de Kigali e tem sala, cozinha, banheiro e quatro quartos. Fora o quintal e uma espécie de "puxadinho" onde vive a família de um amigo. Nathan gastou em torno de 1 milhão de francos ruandeses para construí-la. Apenas cerca de 1,5 mil dólares, ou R$ 6 mil. O modelo de bicicleta usado pelo Team Rwanda custa pelo menos US$ 5 mil (quase R$ 20 mil). Mas, quando viram a casa sendo construída, os vizinhos de Nathan diziam que ele estava rico. Hoje, como acontece em vários bairros da Kigali pós-genocídio, a região enfrenta especulação imobiliária. Um terreno como o de Nathan já custa 5 milhões de francos (US$ 7,5 mil ou quase R$ 30 mil). Mas só 10% de seus moradores têm água encanada, e 85%, eletricidade. 

Flávio Florido Flávio Florido

A casa dos vizinhos

Bem perto da sede do Team Rwanda vive Dative Mukarubayiza. Ela mora com o marido e os quatro filhos em uma casa de alvenaria, sem acabamento e cinco cômodos. Há luz elétrica, mas, como é comum em Ruanda, ilumina menos do que uma vela. O teto é de madeira, e o chão de cimento batido está molhado da água da chuva que acabou de cair e entrar pela porta. Dois sofás com almofadas, uma mesa de centro e uma cristaleira decoram o ambiente. Dativa e o marido construíram a casa em 2004, quando os tempos eram melhores. Hoje, ela planta seus alimentos e eventualmente os troca por outros na feira. O marido, pedreiro, desde maio não é chamado para nenhum serviço. Dative pede licença para mudar de roupa quando fica sabendo que será fotografada. 

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A Ruanda de hoje é diferente

Flávio Florido

A geração que não tem o genocídio na memória

Jeanne d'Arc Girubuntu nasceu em meio ao caos. Em 1995, um ano após o genocídio, Ruanda era talvez o pior lugar do planeta. Milhares seguiam refugiados em países vizinhos. Quase nada da infraestrutura funcionava. Milícias hutus ainda praticavam ataques esporádicos.

Mas não cabia a Jeanne decidir, como não cabe a ninguém. E lá veio ela ao mundo. Para honrar a mítica figura francesa de quem leva o nome. E entrar para a história.

A ruandesa de 20 anos foi a primeira negra africana a competir em uma importante prova do ciclismo mundial, o World Championship Individual Time Trial. A garota tímida é a única atleta mulher entre os vários marmanjos que andam pela sede do Team Rwanda. Diferente de quase todos eles, ela é de uma geração que não viu parentes sendo assassinados ou teve que se esconder no mato para não morrer.

Flávio Florido Flávio Florido

Tentamos lidar com isso (o genocídio) com o que aprendemos sobre o passado. Às vezes não é fácil, mas tentamos.

Seus feitos sobre a bicicleta, entretanto, poderão torná-la símbolo de uma Ruanda pacífica e integrada. Com apenas 18 anos, Jeanne foi campeã nacional batendo sua oponente pela absurda diferença de 10 minutos. Ela começou no ciclismo com a ajuda da mulher de Nathan, que lhe deu uma bicicleta. Treinou com um técnico de sua cidade natal, no leste de Ruanda, até ser convidada por Jock para integrar o Team Rwanda e disputar o World Championship Individual Time Trial.

A prova, realizada em Richmond, nos EUA, tem um percurso de quase 40 quilômetros. Vence quem fizer o melhor tempo. Jeanne ficou em último. Mas cumpriu com sua missão. "Quando cheguei e percebi que era a única negra ali, decidi que tinha que aguentar até o final".

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