Uma década sem luz

Família de agricultores luta na Justiça para conseguir posse de terra e energia elétrica no Grande Recife

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em São Lourenço da Mata (PE)
Beto Macário/UOL

Para chegar ao sítio Bananeira, na zona rural de São Lourenço da Mata (PE), é preciso passar por uma cancela controlada por um segurança da usina Petribu. A estrada de terra é estreita, repleta de buracos e com cana-de-açúcar por todos os lados.

Em pleno Grande Recife, é lá que vive uma família há mais de meio século lutando pela posse legal da terra. Além da incerteza e da ameaça de despejo, agora enfrentam outro desafio: ter energia elétrica em casa --benefício que foi barrado pela usina.

No sítio, existem apenas duas pequenas casas interligadas. Uma é feita em alvenaria e onde vive o casal Maria Francisca, 52, e Severino José de Lima, 60. Na outra, mora o irmão de Francisca, Severino José Francisco Pereira, 61. "Até hoje não sei o que é ter energia elétrica. Nasci e me criei aqui. Acredito que um dia, antes de morrer, vou ter", diz Pereira.

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Luta pela posse da terra

A luta pela permanência dos agricultores no local é saga antiga. Maria Francisca é autora de uma ação de usucapião para oficializar a posse da área. A ação foi ajuizada em março de 1999.

A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido, em fevereiro de 2008. A usina recorreu e um acórdão do TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco) reformou a sentença, negando o direito à posse a ela em janeiro de 2013. O caso foi transitado em julgado (ou seja, não cabe mais recurso) em 27 de junho de 2014.

A advogada de Maria Francisca, Mariana Vidal, tenta agora o último remédio jurídico: uma ação rescisória, ingressada em junho de 2016. Ela defende a anulação completa do acórdão alegando um entendimento equivocado do TJ-PE.

"A tese formulada pela usina foi a de que a família estava na terra em função de um contrato de comodato [de empréstimo], que teria se dado em decorrência de três vínculos empregatícios esparsos que o marido Severino teve com a antiga usina Tiúma, entre 1983 a 1992. Só que esse comodato alegado nunca ocorreu", afirma a advogada, que é da CPT (Comissão Pastoral da Terra)  --entidade ligada à Igreja Católica e que presta assistência à família há quase 20 anos.

Segundo ela, a família não foi morar no local por conta dos vínculos empregatícios. "A relação é na verdade inversa: ele trabalhou por curtos períodos para a usina justamente porque já residia no local", afirma.

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Para entender o imbróglio, é preciso voltar no tempo. Maria Francisca conta que os problemas com a posse começaram em 1998, quando a Tiúma foi vendida à usina Petribu. "Os antigos donos eram homens bons, nunca mexeram com a gente, nunca houve problemas; mas esses novos vivem para querer nos tirar [da terra]", relata.

Maria Francisca diz que sua família mora no sítio desde a época dos avós. Mostra fotos dela criança no local. Já seu marido Severino vive lá desde os cinco anos de idade.

"Eu nunca trabalhei para usina nenhuma. Quero que provem essa história que eu trabalhei para dizer que eu vim para cá por causa de um emprego. Meu marido trabalhou, mas foi um tempinho só, e não foi pra esses donos", diz.

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Luz para (quase) Todos

Em 2014, teve início um outro processo na Justiça para garantir a instalação de energia elétrica no sítio, por meio do programa Luz para Todos.

Em março, após uma audiência na Justiça, a ação de Maria Francisca teve um primeiro ganho de causa. A juíza Alideleide Paes Miranda determinou que a Celpe (Companhia Energética de Pernambuco) fizesse todo o levantamento necessário para instalar a energia, "inclusive autorizando adentrar a área da Usina Petribu quando da vistoria caso se faça necessário".

Depois da posição favorável, e para receber a energia, o casal gastou em torno de R$ 1.500 com instalação de fiação, tomadas e a caixa do medidor. Para isso, Severino usou seu 13° salário. "Até empréstimo fizemos para adiantar tudo", lembra ele.

Severino é aposentado desde 1997, quando exames apontaram um problema irreversível na coluna. Recebe um salário mínimo. Já Francisca espera dar entrada no pedido do benefício daqui a três anos.

A fé da família aumentou após a Celpe entregar a eles a planta de toda a instalação, da rodovia até o sítio. No dia 9 de setembro, a equipe começou a colocar postes, mas acabou sendo expulsa da área por funcionários da usina.

"No dia em que o pessoal da Celpe veio e disse que ia começar a instalar foi uma gritaria aqui em casa. Estava com minha filha e minhas netas, que disseram: 'Que bom, vovó, agora a gente vai poder tomar suquinho gelado'; meu marido disse que ia poder ver um jogo", lembra Maria Francisca.

Sobre o fornecimento de energia, a Celpe confirmou ao UOL que houve um "impedimento de acesso à propriedade para realizar a ligação" e informou que "aguarda autorização judicial para ligar a unidade consumidora".

O episódio não só frustrou o antigo sonho da família, como deixou sequela. Três dias após a expulsão da equipe, Severino teve um pequeno AVC (Acidente Vascular Cerebral).

Desde então passou a tomar remédio controlado e tem dificuldade de locomoção. "Foi a raiva que eu tive, não tenho dúvida, porque nunca tive isso na vida", afirma.

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Rotina pacata

No sítio, a família planta para subsistência várias frutas e raízes. Também cria três cachorros.

A vida sem luz traz problemas inimagináveis para quem sempre viveu com eletricidade. "Até frango, quando vamos comprar, tem de ser pequeno, não tem onde guardar. Ontem mesmo joguei várias verduras fora porque logo ficam ruins. Nem um suco posso fazer", diz.

Para ouvir um jogo, atividade de que tanto gosta, Severino usa o rádio de pilha. É também o único meio para ouvir notícias.

Segundo a CPT, quando a usina Petribu assumiu a área, existiam cerca de 1.600 moradores na região, mas eles foram deixando o local após sofrerem intimidações. Alguns deles foram indenizados e vivem em áreas urbanas. Hoje, só os dois Severinos e Maria Francisca resistem a deixar o local.

"A CPT está com eles desde 1998. Muitos dos que estavam aqui hoje estão em presídios, foram para prostíbulos", conta o padre Tiago Thorlby, agente pastoral da CPT em Pernambuco.

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Não existe chance de eles ficarem, diz usina

Segundo o gerente jurídico da usina Petribu, Luiz Guerra, a proibição para a instalação de energia ocorreu porque a ação de usucapião foi perdida e a família estaria lá sem direito à permanência.

Há dez meses, a empresa entrou com uma ação pedindo a reintegração de posse da área.

"A usina já adquiriu a sucessão de problemas do proprietário anterior. Nós ganhamos a ação de usucapião, que transitou em julgado. E ela perdeu o direito de ficar na terra. Esse foi o grande impasse. Até porque [para a instalação de energia] precisaria passar por nossa área e haveria um custo muito grande, que seria suportado pela usina, e não pelo morador", afirma.

Apesar da ação, Guerra diz que a direção da usina não quer promover a saída da família antes de um diálogo.

"Existe uma preocupação para que a coisa não seja feita de forma abrupta, pelo contrário. A empresa tem um lado social muito grande. Apesar de ter ganhado a ação, ter entrado com a ação de reintegração, a direção está disposta a dialogar para tentar um lugar para ela, talvez arcar com parte do custo dessa mudança", diz.

O gerente ainda afirma que encontrou dificuldades em conversar com Maria Francisca e com a CPT, que a apoia na causa. "Eu tentei, o escritório que nos representa na ação também procurou por diversas vezes a CPT. Até o momento, não recebi nenhum retorno. Eles não querem diálogo."

Guerra ainda ressalta que o local onde está o sítio é uma área de canavial, com extensa plantação, e que a direção é irredutível quanto à saída da família. "Não há essa possibilidade [de eles ficarem], infelizmente. Até porque é área de plantio, é uma situação bem delicada. Mas, como disse, estamos dispostos a buscar uma nova área junto com ela", finaliza.

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