Dor, trauma... E recomeço

Acidentados têm de conviver com dores e buscar uma rotina adaptada a novas condições físicas

Lucas Borges Teixeira Colaboração para o UOL, em São Paulo
Arte/UOL

Uma batida de carro, um acidente doméstico, um sequestro relâmpago que acabou em tragédia. Em questão de segundos, eles viram suas vidas mudarem de rumo e tiveram de aprender a conviver com dores nunca imaginadas.

Depois de um assalto e de uma batida de carro, Jefferson Maia, 53, teve de reorganizar sua vida sobre uma cadeira de rodas, com o movimento parcial de apenas um braço. Já Eusuclemia Vieira, 64, viu tarefas simples do cotidiano ficarem extremamente mais difíceis quando perdeu os dois braços.

As primeiras preocupações de Evanilda Leite foram amorosas e financeiras, enquanto para Ricardo Shimosakai uma paixão na vida acabou virando um trabalho.

O corpo deles mudou quando ainda eram jovens e isso trouxe limitações e novas condições físicas. Quatro pessoas contam como deixaram em segundo plano a tristeza dessas perdas e mergulharam de cabeça no inesperado para encontrar um novo sentido para a vida.

Mesmo penoso e cansativo, eles mostram que o caminho pode ser recompensador.

Lucas Landau/UOL Lucas Landau/UOL

"É como se eu tivesse nascido assim"

"Eu já nem lembro como eu era antes do acidente", afirma Eusuclemia Vieira. "Hoje, vejo umas fotos antigas minhas com os dois braços e penso que é uma prima." Com o tempo, a artista plástica de 64 anos aprendeu a viver sem os braços, debilitados em decorrência de um acidente no Rio de Janeiro há 43 anos.

Tudo aconteceu em 1974, quando Zuzu, como gosta de ser chamada, tinha 21 anos. "Era um dia de sol, eu estava lavando o cabelo na laje de casa quando uma prima me chamou. Eu me debrucei sobre o muro e o cabelo molhado enroscou em um fio desencapado." A jovem tomou uma descarga de 6.000 volts.

"Eu fiquei inconsciente, mas, como reflexo, segurei no cano de ferro do varal, o que intensificou o choque."

A descarga elétrica foi tão grande que um dos postes da rua explodiu. "Só assim a tensão parou... eu poderia ter morrido."

A rua inteira ficou sem luz. "Os vizinhos foram me acudir para evitar que eu morresse com a língua enrolada e me levaram ao hospital."

Um deles chegou a pegar os dedos de Zuzu, separados da mão esquerda durante o acidente. "Mas os médicos falaram que não teria como colocá-los de volta, já havia perdido."

A carioca passou oito meses internada em três hospitais diferentes. Por três meses, ficou em coma. "Os médicos achavam que eu não ia sobreviver, mas, no fim, saí sem sequelas na cabeça. Só o braço que não teve jeito." Ela teve os dois antebraços amputados.

O processo de recuperação psicológico, contudo, foi rápido. "Eu não queria ficar triste porque não queria deixar os meus pais mais tristes. Eles me ajudaram muito... me davam comida na boca, faziam as coisas mais básicas."

Zuzu conta que perdeu muitas amigas no período. "Algumas foram me visitar, mas logo pararam." Ela diz não ter se abalado nem ter guardado ressentimentos. "Eu até as entendo. Se a gente fosse comer uma pizza, quem ia me dar de comer? Quem ia me levar no banheiro? Era mais fácil simplesmente não me chamar."

Mas este não era o principal problema para a jovem. "Minha maior dificuldade, para ser sincera, era no período de menstruação", conta, um pouco encabulada. "De resto, eu aprendi a fazer tudo: pegava ônibus, ia estudar, saía para passear... Mas nesse período eu não gostava nem de sair de casa para não depender dos outros."

Atualmente a artista faz tudo sozinha. Em 1979, foi aos Estados Unidos colocar braços mecânicos, acessório que usa até hoje. "Quando eu preciso, peço ajuda. Num mercado, por exemplo, mesmo quem tem os braços pede ajuda para alguém do lado se não alcançar o produto, né? Eu faço o mesmo!"

Cidadã americana desde os anos 1980, Zuzu passa os dias entre Brasil e Estados Unidos, onde tem uma casa, e se dedica à pintura. Envia anualmente obras à Associação de Pintores com os Pés e a Boca, com quem tem contrato.

"Parece que nem aconteceu nada, não sei se até hoje não caiu a ficha, mas é como se eu tivesse nascido assim", afirma a carioca. "Faço o que eu quero e levo a vida muito bem. Graças ao bom Deus, sou feliz."

Sergio Dutti/UOL Sergio Dutti/UOL

"Não tem de esperar por uma cura"

Evanilda Leite tinha uma vida agitada. Aos 20 anos e com dois filhos, a brasiliense  fazia planos: queria cursar uma boa faculdade e, quem sabe, firmar um futuro com o namorado. 

Em 1987, um acidente fez com que ela tivesse de readaptar suas expectativas. Eva, como é conhecida, ia de carro com uma amiga de Brasília para o Rio de Janeiro. "Ela estava dirigindo, perguntei se estava bem. Como disse que sim, abaixei meu banco e cochilei", conta a escritora. "Mas ela dormiu."

O carro perdeu o controle e saiu da estrada. Capotou oito vezes. Por volta da quinta, Eva foi jogada para fora do veículo. "Quando acordei, já estava no chão e não me mexia mais." O impacto atingiu as vértebras C4 e C5 da coluna cervical, que resultou em tetraplegia.

"Foi um processo muito longo. Eu era jovem, tinha muitos sonhos e tive de readaptar tudo." Além disso, a brasiliense conta que não havia muita informação sobre a sua condição na época. "No hospital, me deram o [livro] 'Feliz Ano Velho', de Marcelo Rubens Paiva, mas eu estava traumatizada, não quis ler. Já li mais de 20 títulos sobre o assunto, mas esse nunca li."

Eva conta que acreditava que poderia haver uma cura para a sua condição. "Falavam muito disso no hospital", lembra. "E no final foi ruim, porque eu ficava esperando me recuperar."

De acordo com a psicóloga Luana, esta é uma reação normal. "Há os estágios da negação, da raiva, da depressão, da barganha e, por fim, da aceitação. Eles podem se misturar, mas, a partir daí, a pessoa só tem a ganhar", explica.

Aos poucos e com muito esforço, Eva começou a aceitar a nova vida. O primeiro passo foi voltar a morar com os pais.

"Eu tinha um namorado na época e fiquei morrendo de medo que ele me deixasse."

Isso não aconteceu. Eva ficou mais quatro anos com o rapaz, com quem ainda teve uma filha, no início dos anos 1990.
 
Ela conseguia estabelecer uma rotina cada vez mais estável, inclusive no namoro. Segundo ela, o fim do relacionamento dos dois nada teve a ver com o acidente, mas com uma traição por parte dele.

"Assim que entendi [que a lesão seria permanente], meu primeiro pensamento foi: o que vou fazer para me virar?" Ela queria parar de depender dos pais e se tornar financeiramente independente.

No final dos anos 1990, começou a escrever um livro de memórias, "Minha Vida Tem Rodas, Meus Sonhos Têm Asas", publicado em 2004 e já na segunda edição. De lá para cá, escreveu mais duas obras. Eva também pinta com a boca.

A única coisa que a brasiliense diz ainda não ter se acostumado é com as dores, em especial nas costas e nos ombros. "Até hoje estou tentando aprender a conviver. Na vida do tetra, cada dia é diferente: às vezes tá tudo bem, mas aí desanda."

Aos 51 anos, a artista vive bem com os três filhos na capital federal. Arrependimentos, diz quase não ter. "Só perdi muito tempo achando que ia me recuperar rápido. Mas, com o tempo, você vê que há muito mais o que recuperar. Tem de dar continuidade à vida, não esperar por uma cura."

Animada, ela brinca sobre o seu plano para o futuro: "Pode falar pro Marcelo (Rubens Paiva) que um dia eu ainda vou ler livro o dele?".

Marco Antônio Teixeira/UOL Marco Antônio Teixeira/UOL

"Me aprimorei como ser humano"

Aos 23 anos, Jefferson Maia era o estereótipo do carioca jovem: bem-humorado, ativo e adepto de uma boa festa. Apaixonado pelo mar, trabalhava como mergulhador de prospecção de petróleo no Rio de Janeiro.

Um dia, foi abordado por assaltantes quando voltava do curso de especialização na capital fluminense. "Eu era muito novo, tentei fugir", conta o pedagogo. "O sujeito atirou e a bala pegou na região cervical do pescoço."

No hospital, o diagnóstico: havia ficado tetraplégico (paralisação total de todos os membros). "Entrei em um conflito existencial muito grande, passei mais de um ano inerte na cama", lembra Maia.

"Cada pessoa tem o seu tempo para assimilar a notícia, é uma quebra de planos, de sonhos, de expectativas", explica a psicóloga clínica e hospitalar Luana Inácio de Oliveira.

Com a ajuda de amigos e parentes, Maia começou a reabilitação. Para a sua surpresa, os resultados foram animadores: aos poucos, ele recuperava alguns dos movimentos do braço e, com esforço, conseguia ficar em pé.

Em uma viagem, conheceu um jovem com a mesma condição que ele. O rapaz dirigia. Jefferson ficou impressionado porque, até então, não sabia que alguém com sua limitação física conseguisse dirigir um automóvel normalmente.

O problema é que, parado desde o acidente, ele não tinha dinheiro para comprar um carro. "Não deu outra: fui falar com meu pai para ter um carro adaptado para mim. Estava conseguindo minha liberdade de novo.”

O carioca, no entanto, abusou dessa autonomia. Quase dois anos depois da frustrada tentativa de assalto, Maia sofreu um acidente de carro ao voltar para casa. Ele havia bebido. "Por insanidade e inconveniência, bati em um poste."

O acidente fez com que a lesão na cervical fosse intensificada. Maia estava com o quadro permanente de tetraparesia (paralisação parcial dos membros), sem movimento da cintura para baixo ou na mão direita, só tinha certa mobilidade no braço esquerdo. "Foi muito difícil quando eu vi que a lesão era definitiva."

No hospital, conheceu um paciente com uma condição similar a sua que nadava. "Eu achava que tetraplégico não podia fazer nada, mas aí entrei na natação."

O carioca foi a fundo no mundo dos esportes. Mesmo com dores, treinou diversas modalidades. Além do nado, praticou pesca paraesportiva e retomou o mergulho adaptado. "Quem naquela época imaginaria que alguém na minha condição dava para mergulhar?"

Até que conheceu o rúgbi em cadeira de rodas. "A gente achava que só havia essa modalidade no basquete, ninguém falava disso nos anos 1990." Maia se juntou a alguns colegas e montou um time. Quando a modalidade foi reconhecida pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), o carioca se tornou o primeiro capitão da seleção brasileira. "As pessoas acham que tetraplégico é bibelô, elas se assustam quando veem um monte de cadeirante se derrubando. É desmistificador." Em 2016, ele carregou a tocha para a Paralimpíada do Rio.

Maia conta que sua maior dificuldade foi a falta de informação. "Isso me comeu por cinco, oito anos, porque achava que não podia fazer nada. Hoje, temos muito mais visibilidade."

Nos anos 2000, o carioca fez pedagogia para começar a dar palestras e ajudar a passar conhecimento sobre a sua condição. No início da Lei Seca, foi contratado para participar do setor educativo do projeto, cargo que ocupou até o ano passado.

Hoje, aos 63 anos, Maia se dedica à pintura e procura fazer o maior número de atividades possível, como ir ao Rock in Rio. Sua condição, claro, traz algumas reações colaterais. "A coluna dói o tempo todo, a posição sentada é ingrata, né? Às vezes, quando vou deitar à noite, (a coluna) chega a gemer."

Bem-humorado, o artista plástico afirma que é preciso enfrentar cada dia como se fosse um novo. "Antes de passar a cura física, a gente precisa enfrentar a cura emocional."

Ele não se lamenta. "Meu universo social se expandiu muito. Hoje, muita gente me conhece e me agradece quando dou minhas palestras", conta, com a voz embargada. "No fim, eu ganhei mais porque me aprimorei como ser humano."

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"O problema é a sua cabeça"

Em 2001, Ricardo Shimosakai, 49, saía do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, onde foi encontrar amigos, quando foi abordado por dois homens em um carro no meio do caminho. Como morava perto dali, havia decidido voltar a pé para casa.

"Eles devem ter me visto dentro do aeroporto e ficaram de olho. Quando eu já estava fora, um carro me abordou e eles me colocaram para dentro", conta o empresário.

Era um sequestro relâmpago. Como Shimosakai havia acabado de passar uma temporada no Japão, tinha pouco dinheiro no banco. "Fomos até o caixa eletrônico, mas eu tinha acabado de reabrir a conta." Isso irritou os criminosos, conta.

Enquanto os sequestradores decidiam o que fazer, o empresário aproveitou o momento em que o carro parou para tentar fugir. "Abri a porta e saí correndo, mas um deles atirou." Shimosakai acordou no hospital sem o movimento das pernas. Ele tinha 32 anos.

O paulista conta que não passou por depressão durante o período de readaptação. "Eu entendo quem passa. É um processo difícil: você tem de se reacostumar com o seu corpo." Muito ativo, o paulista decidiu investir seu tempo em passeios e viagens, suas grandes paixões.

"Mas eu tinha de fazer os roteiros por mim mesmo porque nenhuma agência de viagem oferecia opções com acessibilidade." Os amigos, em especial os que tinham a mesma condição física, ficavam curiosos e pediam dicas para ele. "Até que começaram a me incentivar a ganhar dinheiro com isso."

À época, Shimosakai trabalhava em uma multinacional, que "pagava bem, mas era chato". Ele decidiu fazer um curso de turismo e trabalhar em uma agência para ganhar know-how. Até que, em 2010, fundou a Turismo Adaptado, uma operadora de viagens voltada a pessoas com necessidades especiais.

"Há muitas dificuldades na hora de viajar. Não é só saber se o hotel é acessível, e os passeios?", argumenta o empresário. Além de agenciamento de viagens, a Turismo Adaptado oferece palestras e consultorias para empresas, redes de turismo e hotéis interessados em aprimorar seu atendimento ao público com necessidades especiais. Em outubro, ele irá ao Panamá dar uma palestra sobre o assunto.

Shimosakai conta que a maior dificuldade foi, de fato, aprender a se virar com as novas limitações do corpo. "Você tem de aprender a lidar. Durante uma fase, vai ficar dependendo das pessoas e depois vai ficar sentado o dia inteiro, o que pode criar feridas. Mas você se acostuma. O problema é a sua cabeça, não é não andar ou não ouvir."

O empresário também começou a praticar esportes adaptados. "Muita coisa veio depois do acidente, uma vida nova. Sem dúvida, sou mais feliz hoje do que era antes."

"Há muitas situações na vida em que a gente não tem escolha, mas somos os únicos responsáveis por como lidamos com estes acontecimentos", afirma a psicóloga Luana de Oliveira. "Cada um é capaz de encontrar seu caminho. O ser humano pode encontrar um sentido na vida diante do caos, do inesperado."

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