Rocinha pede paz

Violência e medo alteram vida escolar e hábitos de moradores de comunidade na zona sul carioca

Marcela Lemos Colaboração para o UOL, no Rio
Lucas Landau/UOL

Uma família quase prisioneira dentro de casa. É assim que Maria, 38, João, 16, e Guilherme, 8, se sentem na Rocinha.

Os episódios frequentes de violência na favela localizada no bairro de São Conrado, na zona sul do Rio, virarm rotina.

Não foi diferente neste sábado (9), quando forças policiais fizeram uma operação na comunidade. Os helicópteros e blindados foram recebidas a tiros.

Os moradores têm que se adaptar. Maria deixou o emprego de carteira assinada no centro da cidade para voltar a trabalhar como manicure na própria comunidade. A decisão foi tomada para tentar garantir a segurança dos filhos.

"São R$ 1.000 a menos que entram em casa. Mas agora não preciso mais deixar o mais velho ir sozinho para a escola e o pequeno também não fica mais na casa de vizinhos até eu chegar. Agora também temos hora para chegar: antes das 20h, todos têm de estar em casa", disse a moradora, que vive na Rocinha há 13 anos.

Em visita à comunidade, inúmeros moradores falaram sobre um sofrimento diário, nos pequenos e grandes hábitos. Entre eles, o de dar o próprio nome durante as entrevistas --como os dos integrantes da família que abre essa reportagem. A pedido, alguns nomes foram alterados ou simplesmente suprimidos. Veja abaixo alguns relatos.

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Temos hora para chegar: antes das 20h, todos têm de estar em casa

Mãe moradora da Rocinha, que não quis se identificar por medo

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Mudança de hábitos

O comércio da região passou a fechar mais cedo. Por medo, moradores evitam ficar fora de casa por muito tempo. Famílias também passaram a colocar os filhos em transporte escolar para trajetos de apenas 25 minutos a pé. Alunos faltam às aulas com frequência.

Uma mãe, que pediu para não ser identificada, conta que o filho falta na escola pelo menos duas vezes na semana. 

"Os fogos funcionam como alerta, avisam que a polícia está subindo. Mas às vezes soltam fogos por causa de jogo de futebol. Na indecisão, é melhor ficar em casa", relata ela.

"Meu filho tem oito anos e sabe diferenciar os barulhos de tiros e fogos. Sabe quando é perto e quando é mais longe. Quando é perto, já se esconde debaixo da cama. Em algumas ocasiões, ele está pronto de uniforme e desistimos de ir à aula. Como garantir um futuro assim?", questiona a mãe do pequeno Arthur.

Reprodução/Facebook Reprodução/Facebook

Antônio Barbosa também teve de encarar mudanças por causa da violência.

Ele e a ex-mulher se separaram no final do ano passado. A mãe e o filho ficaram na região conhecida como Cachopa, no alto da favela, e o pai mora na rua do Valão, na parte baixa. Antônio conta que não consegue visitar e buscar o filho nos dias combinados.

"Às vezes o tiroteio é aqui embaixo e eu não posso sair. Quando saio, descubro que não posso subir, pois o confronto está lá em cima. E assim eu vou deixando de ver meu filho", diz.

José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo

Os fogos funcionam como alerta, avisam que a polícia está subindo. Mas às vezes soltam fogos por causa de jogo de futebol. Na indecisão, é melhor ficar em casa

Mãe de garoto de oito anos, moradora da Rocinha

Wilton Junior/Estadão Conteúdo Wilton Junior/Estadão Conteúdo

Curso para situações de guerra

Além de ruas e becos, o pânico invadiu também os projetos sociais na favela. Locais antes considerados seguros vivem hoje um esvaziamento de atividades.

O Garagem das Letras --única biblioteca em funcionamento na Rocinha-- fez parte, há dois meses, do curso "Metodologia de Emergência", que tenta oferecer segurança emocional aos frequentadores.

O coordenador Fernando Ermiro da Silva conta que lidar com o desespero das crianças no dia a dia fez com que a equipe da "Garagem" buscasse ajuda. 

A proposta do grupo Pedagogia de Emergência é minimizar traumas ou, em fase mais críticas, propor pedagogias orientadas ao abalo emocional por meio de espaços que funcionem como locais seguros.

"É uma metodologia para situações de guerra e tem muito a ver com a Rocinha. Aqui só não temos bombardeios. O resto tem tudo: tiroteio, granada, criança chorando, mãe chorando, gente morrendo. Aqui é tudo automático. Os fogos começam e as crianças correm para o canto da sala. Como falar para elas que está tudo bem e acalmá-las se não está tudo bem?", diz Fernando Ermiro, ressaltando que os usuários escassearam.

"Não temos mais crianças nas sessões de cinema infantil na sexta-feira. O número de frequentadores da biblioteca também caiu", compara o coordenador.

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Como falar para as crianças que está tudo bem e acalmá-las se não está tudo bem?

Fernando Ermiro da Silva, coordenador da "Garagem das Letras"

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Som da música deu lugar ao medo

Prestes a completar 24 anos, a Escola de Música da Rocinha teve pela primeira vez o esvaziamento de suas salas de aula. O som da música deu lugar ao medo.

De acordo com a escola, dos 35 alunos que integram a orquestra, apenas 15 têm conseguido frequentar os ensaios. 

A coordenadora Simone Ferreira da Silva lamenta as ausências e aponta impactos na iniciativa. "Acabamos obrigados a cancelar as aulas. A segurança dos alunos está em primeiro lugar, mas isso tudo é muito triste. Não podemos deixar a peteca cair. Temos apresentações fora do Rio, temos um compromisso em formar cidadãos. Qualquer ausência compromete o trabalho de toda a orquestra. Se falta um timbre, acaba sendo um desfalque, compromete muito a apresentação e o trabalho que é feito", diz ela, que é ex-aluna da escola e relata nunca ter visto a situação tão "complicada".

Tentando diminuir a evasão, a escola criou um grupo de troca de mensagens com pais. "Quando começam os fogos, todo mundo fica em pânico. Perde-se a concentração. Fica todo mundo agitado. Os pais começam a ligar querendo saber se os filhos chegaram, se já saíram. Criamos um grupo de WhatsApp para trocar informações sobre segurança. A violência atrapalha muito nosso trabalho."

Simone diz que, em dias de confronto, a unidade já chegou a funcionar como abrigo para os estudantes que não tinham como voltar para casa.

"Tem gente que sai da escola e se refugia aqui. O prédio cancela as atividades e a gente continua para receber esses alunos que não têm como voltar para casa. Uma das alunas precisou dormir na casa da professora certa vez. Fizemos contato com os pais. Eles não tinham condições de buscá-la e autorizaram que a aluna fosse para a casa da professora em outro bairro."

Hoje, a Escola de Música atende 250 alunos entre 5 e 17 anos que vivem nas comunidades de Vidigal, Parque da Cidade, Vila Canoas e Rocinha.

Dos 24 professores engajados no projeto, 16 são ex-alunos da escola. Os demais são de projetos sociais de outras comunidades do Rio. Através da escola, os alunos se apresentam em outros estados. Uma apresentação está marcada para julho em Arapongas, no Paraná.

"A música serve de estímulo. Muitos andaram de avião pela primeira vez por causa da escola e se tornaram alunos melhores por conta da música", afirma Simone.

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Reprodução/Facebook/Parceiros da Rocinha Reprodução/Facebook/Parceiros da Rocinha

A equipe NockDown Brasil, que oferece treinamento de muay thai na Rocinha, também teve seu trabalho social prejudicado. Segundo o coordenador do projeto, Diego da Silva, no ano passado cinco atletas deixaram de participar do Mundial na Tailândia por falta de patrocínio.

"Em 2016, eu levei três atletas para o Mundial. Consegui patrocínio levando lutadores famosos para Rocinha para gravar vídeos pedindo ajuda aos atletas. No ano passado poderia ter levado cinco. Não consegui levar ninguém. Não consegui apresentar o projeto. As pessoas estão com medo de entrar na Rocinha", conta.

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"Como se vive assim?"

Muitos moradores criticam as operações nos morros. Fernando Ermiro, que também é professor de história, diz que a atuação policial não possui resultado efetivo.

"Acho que chegou a hora de a gente conversar. Qual o objetivo da operação? Qual resultado prático efetivo? O impacto na vida a gente viu! Economicamente estamos quase ruindo, tudo parado, crianças perdendo aula. O discurso é segurança. Segurança para quem? Eu me sinto muito inseguro quando a polícia entra. Dia sim, dia não tem tiroteio. Como se vive assim?"

Segundo informações do aplicativo Fogo Cruzado, que monitora dados de violência no Rio de Janeiro, a região da Rocinha contabilizou, entre setembro do ano passado e maio deste ano, 176 casos de confrontos --cerca de 22 por mês. A presença da polícia foi identificada em apenas 52 episódios de troca de tiros.

Já um levantamento da Polícia Militar mostra que 54 pessoas morreram em confrontos até o começo deste mês. Entre elas, três policiais, dois moradores e uma turista espanhola que visitava a favela. Os outros 49 são considerados traficantes e/ou suspeitos. Outras 23 pessoas também ficaram feridas em tiroteios: dez policiais e 13 moradores. De acordo ainda com balanço da PM, 118 pessoas foram presas e 22 menores foram apreendidos no mesmo período.

José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo

A guerra na Rocinha começou em setembro do ano passado quando traficantes da ADA (Amigos dos Amigos) --ligados a "Nem da Rocinha"-- invadiram a comunidade para retomar o controle do tráfico de drogas.

Na ocasião, Rogério 157 e "Nem" romperam relações e o tráfico passou a ser comandado na favela pelo CV (Comando Vermelho), principal facção do Rio de Janeiro.

Antonio Bonfim Lopes, o "Nem", foi preso em 2011 quando tentava fugir no porta-malas de um carro. Ele cumpre pena em um presídio federal de segurança máxima em Porto Velho (Rondônia). Já Rogério 157 (foto) era o segurança pessoal de "Nem" e foi detido em dezembro do ano passado na Favela do Arará, em Benfica, na zona norte do Rio.

Lucas Landau/UOL Lucas Landau/UOL

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