Rio olímpico pra quem

Promessas de melhorias que moradoras de favelas não viram na zona norte do Rio

Gustavo Maia, Hanrrikson de Andrade e Paula Bianchi Do UOL, no Rio

Eles se negam a reconhecer o Rio de Janeiro como uma cidade olímpica. As melhorias provocadas pelo evento passam longe de suas casas. Anfitriões, sentem-se excluídos dos Jogos.

“Olimpíadas, que Olimpíadas? Nunca teve nada disso por aqui, não”, diz Turia Matos, 62, da favela de Manguinhos. “A única coisa que mudou foi a fachada das vias expressas que eles tamparam para que as pessoas de fora não possam ver”, diz Liliane de França, 35, do Complexo da Maré. “Existem duas áreas que são de concentração olímpica. E essas áreas não são o Rio de Janeiro”, reflete Mariluce de Souza, 34, do Complexo do Alemão.

O Rio foi eleito para sediar os Jogos em 2009, com a promessa de que entregaria uma cidade “nova e melhor” para a população. Sete anos depois, a zona oeste ganhou faixas exclusivas de ônibus, no centro o VLT chama a atenção de turistas e moradores e até setembro o metrô deve abrir um prolongamento ligando a região à zona sul. Também foi erguido um Parque Olímpico, que deve ser entregue à iniciativa privada, e a zona portuária teve parte de sua estrutura remodelada.

No início de julho, o prefeito da capital fluminense, Eduardo Paes, declarou ser “loucura dizer que não foram feitos investimentos nas áreas mais pobres da cidade”.

No entanto, dentre os 161 bairros em que se dividem os mais de 6 milhões de moradores, são poucos os que podem ostentar mudanças dignas do título de legado. E é justo nas áreas mais pobres, especialmente na zona norte da cidade, que a palavra tem menos eco.

Foi pensando no Rio que passa longe da televisão e dos roteiros tanto dos Jogos quanto dos turistas que devem lotar a capital fluminense a partir da próxima semana que o UOL visitou três das áreas com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do município a fim de entender até que ponto a cidade merece o adjetivo "olímpica".

Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Complexo do Alemão

Yasuyoshi Chiba/AFP Yasuyoshi Chiba/AFP

O Complexo do Alemão ganhou destaque em todo o mundo ao ser palco de uma megaoperação policial, que representou o auge da política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). A ação, realizada no fim de 2010, contou com tanques das Forças Armadas e incursões do Bope (Batalhão de Operações Especiais). Uma delas terminou com a fuga cinematográfica de criminosos pela Serra da Misericórdia. Após a tomada, a região passou a ser patrulhada pelo Exército e recebeu obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) --inclusive o Teleférico do Alemão.

O governo do Estado pretendia inserir o conjunto de favelas da zona norte carioca, com 69 mil habitantes, na rota turística da cidade. Porém, passada a euforia dos primeiros anos após a ocupação, moradores do Complexo do Alemão voltaram a sofrer com velhos problemas. Traficantes foram retomando o controle das bocas de fumo, tiroteios voltaram a ocorrer praticamente todos os dias, e o teleférico, antes tido como símbolo de transformação, foi abandonado pela empresa que ganhou a concessão, a SuperVia. Desde o ano passado, as catracas estão liberadas e não é cobrada tarifa pelo serviço.

A major da PM Pricilla Azevedo afirmou ao UOL que os tiroteios no Complexo do Alemão ocorrem com regularidade em razão da própria presença da corporação no interior das comunidades. "Não vejo um momento de crise, e sim o tráfico tentando retomar territórios que eles perderam", disse. Já a SuperVia informou que encerrou o contrato com o Executivo em março deste ano e que o processo de desmobilização da equipe "não inviabilizou a qualidade e segurança operacional do teleférico".

Mariluce, 34: "Estamos do outro lado do cartão-postal"

Bruno Gonzalez/Agência O Globo

Complexo de Manguinhos

André Lobo/UOL André Lobo/UOL

Conhecido como faixa de Gaza devido ao seu longo histórico de violência, o Complexo de Manguinhos ganhou as manchetes nacionais e internacionais ao receber a visita do papa Francisco em sua vinda ao Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013.

À beira da avenida Brasil e de algumas das mais importantes avenidas da zona norte da capital fluminense, o local é lar da Fiocruz, uma das principais instituições de pesquisa do país, e reúne 16 favelas e cerca de 44 mil pessoas, de acordo com dados do IPP (Instituto Pereira Passos), em uma área com pouco mais da metade do tamanho do bairro de Copacabana.

Antes dominada pelo Comando Vermelho, Manguinhos possui, desde 2013, duas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). A violência, no entanto, segue como um dos principais problemas da região. Moradores relatam tiroteios frequentes e as próprias sedes das UPPs já foram atacadas por criminosos com morteiros e bombas. Segundo a Polícia Militar, os confrontos entre policiais e criminosos têm sido constantes e têm relação com a presença do tráfico na região, que busca retomar o controle da área.

Desde 2007, os moradores se organizam através do Fórum de Manguinhos, criado a fim de monitorar e cobrar a execução das obras do PAC realizadas no complexo, além de garantir os direitos da comunidade e a execução de políticas públicas.

Turia, 62: "É triste ser tachado de faixa de Gaza"

Fábio Teixeira/UOL

Complexo da Maré

Fernando Frazão/Agência Brasil Fernando Frazão/Agência Brasil

O Complexo da Maré é o maior e um dos mais pobres conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. Às margens da Linha Vermelha, principal rota de acesso ao Aeroporto Internacional do Galeão, seria um dos primeiros cenários encontrados por quem vem à cidade para os Jogos Olímpicos. Ao passar pela via expressa, no entanto, os visitantes pouco verão das 16 comunidades que integram o complexo, cercado desde 2010 por uma "barreira acústica" de acrílico de três metros de altura instalada pela prefeitura. Nas últimas semanas, a Secretaria de Turismo do município adesivou parte do painel "para decorar e botar a cidade no clima olímpico".

Mas o clima festivo dos Jogos ficou apenas do lado de fora. Pouco mais de um ano depois de ser ocupada pelas Forças Armadas, que ficaram 15 meses na região, o conjunto de favelas é alvo de frequentes operações policiais e tiroteios quase diários. No ano passado, o governo do Rio prometeu instalar no local quatro UPPs. O projeto foi adiado indefinidamente por conta da crise econômica que atingiu o Estado. Apesar de anunciar a ocupação em 2015, a Polícia Militar se limita a patrulhar os acessos ao complexo.

A corporação diz os PMs realizam um "cinturão com baseamento em pontos estratégicos", além de blindados que reforçam, quando necessário, incursões planejadas. Nos últimos meses, segundo a polícia, as operações resultaram na apreensão de quase duas toneladas de drogas na Maré.

Com 4,26 milhões de metros quadrados, a Maré tem área maior que a de todo o bairro de Copacabana. Dentro do conjunto de favelas, caberiam praticamente quatro Parques Olímpicos. É também o mais populoso da cidade, com 130 mil moradores, número maior que o do Complexo do Alemão e de Manguinhos somados e quase o dobro do da Rocinha. Quem vive na Maré tem que conviver com esgotos a céu aberto, falta de transporte público e rede de saúde pública sobrecarregada.

Liliane, 35: "Só mudaram a fachada"

O que diz a prefeitura

A prefeitura diz que o projeto olímpico do Rio foi distribuído em quatro regiões da cidade –Deodoro, na zona norte, Maracanã, no centro, Copacabana, na zona sul, e Barra da Tijuca, na zona oeste--, justamente pensando em beneficiar o maior número de moradores. “Para cada uma, foi feito um planejamento distinto, de acordo com o perfil da área”, afirma, em nota.

O município cita a remodelação das estações de trem e a construção da Transcarioca, além do Parque Radical e da Transolímpica, como principais investimentos na zona norte. Ainda segundo a prefeitura, a região portuária, no centro, passa por uma ampla revitalização, tornando-a "um novo polo de trabalho e lazer".

O município ressalta também os avanços em mobilidade urbana, em especial a implantação do sistema BRT na zona oeste, a construção da Transoeste e da Transolímpica e o Veículo Leve sobre Trilhos, como parte do legado deixado pelos Jogos à cidade. O controle de enchentes na Grande Tijuca e o fechamento do lixão de Gramacho também estariam diretamente relacionados à Olimpíada.

Além disso, diz a prefeitura, o Parque Olímpico e o Parque Radical de Deodoro serão transformados em áreas de lazer, com foco no uso educacional e de formação de atletas de alto rendimento. "Os projetos concretizam o compromisso da Prefeitura do Rio de gerar um legado social e esportivo significativo a partir dos Jogos e evitar o surgimento dos temidos 'elefantes brancos'", afirma.

Ainda segundo o município, as regiões dos complexos do Alemão, da Maré e de Manguinhos "estão entre as que mais receberam investimentos" na cidade. Segundo a prefeitura, nessas três áreas foi investido um um total de R$ 776,65 milhões em sete anos, sendo R$ 386,12 milhões para educação; R$ 274,53 milhões para urbanização e habitação; R$ 20,86 milhões para saúde; R$ 29,53 milhões em obras de mitigação de riscos; e R$ 14,29 milhões em serviços.

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