Ameaça ao mundo

'É necessário considerar o passado ao lidar com a Coreia do Norte', diz ex-embaixadora dos EUA na ONU

Madeleine Albright
KCNA via AP

Este artigo faz parte do especial "Ano em transformação", do "The New York Times News Service & Syndicate", que o UOL publica exclusivamente no Brasil. 

Testes de mísseis da Coreia do Norte são desafio para Trump

Quando Barack Obama e Donald Trump se encontraram no Salão Oval, logo após as eleições de 2016, o então presidente teria dito ao futuro líder que a República Popular Democrática da Coreia, ou DPRK, seria o maior desafio para a segurança nacional que Trump enfrentaria no cargo. Após um ano de testes de mísseis provocadores, retórica inflamada e atitudes temerárias e perigosas, o alerta provou ser profético.

Em 2017, o nervosismo chegou muito perto de se tornar pânico com os progressos feitos pelos programas balístico e de armas nucleares dos norte-coreanos, muito maiores e mais rápidos que os especialistas tinham antecipado. Provando-se inovadora, Pyongyang testou um míssil balístico intercontinental capaz não só de atingir Guam e o Havaí, mas a porção continental dos EUA. Além disso, detonou também seu dispositivo nuclear mais poderoso até agora, que o regime alega poder ser acoplado a um de seus ICBMs.

Jack Gruber/Reuters Jack Gruber/Reuters

Em vez de oferecer uma estratégia clara, Trump pula de uma abordagem a outra, mal parando entre uma e outra para permitir que os observadores, incluindo aliados como a Coreia do Sul e o Japão, tenham tempo de respirar. Voltou-se para a China na esperança que ela refreasse os norte-coreanos, em uma iniciativa desgastada que, como já era de se esperar, não deu certo.

Expressou interesse em negociar diretamente com o líder Kim Jong-un, afirmando que seria “uma honra” conhecê-lo; depois, decidiu que o diálogo "não era a solução”, ainda que seus principais assessores reafirmassem a disposição de manter a iniciativa diplomática. E, no meio disso tudo, ainda acusou os líderes sul-coreanos de praticarem o apaziguamento e levantou a hipótese de se retirar do acordo de livre comércio que os EUA mantêm com aquele país.

Não há praticamente nenhuma consistência na abordagem de Trump em relação à Coreia do Norte, a não ser pelo fato de ele culpar repetidamente seus antecessores pelo problema que tem nas mãos. E embora critique George W. Bush e Obama por não terem se esforçado mais, grande parte de sua ira é dirigida aos esforços diplomáticos do governo Clinton, do qual participei como embaixadora na ONU e Secretária de Estado.

Como Trump, Bill Clinton enfrentou a beligerância norte-coreana logo de início: em 1993, o país ameaçou se retirar do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e retirou as varetas de combustível de seu reator nuclear, extraindo o plutônio contido ali, suficiente para alimentar meia dúzia de ogivas.

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Isso gerou uma crise entre Washington e Pyongyang. Nosso objetivo era impedir que os norte-coreanos continuassem a desenvolver armas nucleares e, por isso, fizemos pressão na ONU enquanto considerávamos as outras opções – que incluíam até ataques aéreos aos reatores nucleares daquela nação.

Felizmente, graças à diplomacia, conseguimos evitar um confronto militar. Trabalhando lado a lado com nossos aliados, engajamos vigorosamente a Coreia do Norte na conclusão de implementação foi deficiente de ambos os lados, mas acabou com a crise premente e impediu que o Norte desenvolvesse seu potencial para criar dezenas de bombas nucleares. Se não tivesse sido implementado, o país teria entre 50 e 100 armas nucleares quando Bush assumiu o governo, de acordo com os especialistas; no entanto, segundo se tem conhecimento, não possuía nenhuma.

Até hoje continuo sendo a autoridade norte-americana mais alta a visitar oficialmente a Coreia do Norte. Kim Jong-il, o pai do líder atual, e eu mantivemos um diálogo intenso durante dois dias, durante os quais ele pareceu disposto a aceitar limitações mais significativas aos programas de mísseis do que esperávamos.

AFP/Getty Images via NYT AFP/Getty Images via NYT

Veio então o governo Bush, que se recusou a prosseguir com as negociações, preferindo uma estratégia mais confrontadora. Em 2003, o Agreed Framework fracassou. Em 2006, a Coreia do Norte testou seu primeiro dispositivo nuclear.

Ao deixar o cargo, eu achava que os eventos da Península Coreana poderiam se desenrolar de inúmeras formas; infelizmente, depois de muitas reviravoltas, eles completaram um ciclo. Trump hoje enfrenta exatamente a mesma ameaça que Clinton tanto temia, ou seja, uma Coreia do Norte armada com bombas nucleares, ameaçando os vizinhos – e os EUA – e, ao mesmo tempo, impedindo ataques a seu território.

 

Brian Stauffer/NYT Brian Stauffer/NYT

É óbvio que se esse dilema fosse de fácil solução, teria sido resolvido há tempos. O ponto crucial é que a liderança norte-coreana acha que precisa de armas nucleares para garantir sua sobrevivência. Para confirmar o fato, basta lembrar o que fizeram o iraquiano Saddam Hussein e o líbio Muammar Gaddafi. Porém, a opção mais promissora de estabilização da situação não é muito diferente daquela aplicada pelo governo Clinton.

A política norte-americana em relação à Coreia do Norte deve incluir pressão diplomática, dissuasão militar reforçada, coordenação rigorosa com a Coreia do Sul e o Japão e a disposição de engajamento nas negociações diretas, não como recompensa a Pyongyang, mas como meio de fazer o que for necessário para proteger nossa própria segurança.

Há muito tempo a política norte-americana busca, em vão, uma solução simples e ágil para as ambições nucleares norte-coreanas, esperando que o regime em Pyongyang mude ou que a China o force à renúncia. O resultado foi um retrocesso, anulando as vantagens conquistadas sem substituí-las por nada novo. É hora de implantar uma abordagem mais realista e séria, que exaura as possibilidades da diplomacia, proteja nossos cidadãos e não afunde o mundo em uma guerra desnecessária.

  • Madeleine Albright

    Foi embaixadora dos Estados Unidos na ONU entre 1993 e 1997 e Secretária de Estado entre 1997 e 2001

    Imagem: Timothy Greenfield-Sanders

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