O preço da resistência

Comunidades na Bahia denunciam megaempreendimento por violência, restrição de liberdade e instalação de cercas

Thais Lazzeri Da Repórter Brasil, em Formosa do Rio Preto (BA)
Fernando Martinho/Repórter Brasil

O agricultor Ednaldo Lopes Leite, 32, conta que quase perdeu a vida quando desafiou o megaempreendimento que se expande sobre as terras da sua família, em Formosa do Rio Preto, no interior da Bahia.

Naquela terça-feira de novembro de 2017, foi alvejado. Segundo ele, os artiradores eram funcionários do Agronegócio Estrondo, empresa composta por 22 companhias que trabalham com monoculturas de milho, soja e algodão, dentre outros ramos.

Procurada diversas vezes por telefone e por e-mail, a Estrondo não respondeu aos pedidos de entrevistas da reportagem. Na última sexta-feira, um funcionário que se identificou como Daniel --e se recusou a informar o sobrenome-- disse que a empresa "não tem nada a declarar".

Lopes Leite pastoreava gado por uma estrada pública cujo acesso havia sido fechado pela Estrondo sem ordem judicial. Do alto do cavalo, escutou o motor de um carro se aproximando.

Então, diz o lavrador, "Nei", um dos gerentes da empresa, deu a ordem para abandonar o gado e sair --do contrário, atirariam.

Como não era a primeira tentativa de intimidá-lo, avançou. Vieram os disparos. "Eles não quiseram acertar, senão tinham conseguido." 

Lopes Leite diz que foi com uma advogada para a delegacia de Formosa para registrar um boletim de ocorrência, mas não conseguiu porque o sistema estava fora do ar.

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Ele conta que esta não foi a primeira vez que funcionários de Estrondo tentaram intimidar sua família.

Há dois anos, ele e um irmão denunciaram à polícia uma sessão de violência física, quando foram algemados e colocados em uma caminhonete.

"Apanhamos e rasgaram a camisa do meu irmão. Rodaram com a gente horas fazendo ameaças. Só liberaram a gente de noite", disse. O depoimento está registrado em boletim de ocorrência.

Na ocasião, eles tentaram impedir a construção de uma cerca em Cachoeira, uma das comunidades em Formosa do Rio Preto, a quinta maior produtora de soja do país e a primeira do Estado. Eles dizem que nunca tiveram retorno sobre a investigação.

Procurada várias vezes por meio da Secretaria de Segurança do Estado e da Secretaria de Comunicação, por e-mail e por telefone, a Polícia Civil da Bahia não se manifestou até a publicação deste texto.

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O avanço territorial da Estrondo e a pressão pelo domínio das terras se faz pelo cerceamento do direito de ir e vir das famílias que ali moram há pelo menos seis décadas, conforme contam os entrevistados pela reportagem.

Cercas elétricas e de arame foram instaladas pela empresa em várias comunidades, às vezes nos quintais das casas.

Muitas famílias, com medo, proibiram as crianças de brincar livres pelo território. "Nós 'tá' sendo pisado demais", disse Arenaldo Ferreira de Sousa, 52, morador de Aldeia, a última comunidade geraizeira nas terras arenosas de Formosa. Localizada na divisa com Tocantins, em Aldeia não há energia elétrica nem posto de saúde.

Moradores acusam funcionários da Estrondo de fecharem estradas municipais sem autorização judicial e sem que o prefeito de Formosa, que estaria ciente das violações, se manifestasse. Os relatos foram registrados em boletins de ocorrência e nas atas de audiências e reuniões realizadas no Ministério Público Estadual.

Os funcionários abriram novas estradas com guaritas --que ficam ao lado de portões de ferro trancados com cadeado. Hoje, são sete portões de controle --outros dois estão em construção. Seguranças, armados e fardados, se revezam na "portaria".

Em nota, a Prefeitura de Formosa informou ter conhecimento do suposto fechamento, mas não disse há quanto tempo --algumas vias estão fechadas há mais de cinco anos, segundo moradores. Disse que a Procuradoria Geral municipal foi acionada "a fim de garantir o direito de ir e vir das comunidades dos Gerais do Rio Preto, bem como a segurança dos moradores". 

Procurada por telefone e e-mail desde quarta-feira, a Estrela Guia, empresa terceirizada contratada pelo Estrondo para serviços de vigilância, não respondeu sobre os pedidos de entrevista.

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A placa no portão avisa: só é permitido circular entre 6h e 18h. "Se alguém ficar doente aqui à noite, é obrigado a morrer, porque eles não deixam passar", diz Guilherme Ferreira de Sousa, 60, morador e liderança em Aldeia, a comunidade que teve todas as saídas fechadas pela Estrondo.

Em cada parada, todos precisam apresentar documento de identidade, o caminho que será percorrido, o destino final e a data de regresso. Quem não dá as informações não passa.

A cena difere da descrita na explicação dada pelo advogado da Estrondo, Celso Sanderson, à Promotoria de Justiça Regional Ambiental em 2012 --na época, havia apenas uma guarita.

Segundo Sanderson, a guarita tinha "como objetivo exclusivamente garantir a segurança da propriedade e da reserva legal, não visando de forma alguma exercer algum tipo de controle sobre as comunidades ou constrangê-las". Por telefone, o funcionário Daniel, da Estrondo, disse que a empresa não se manifestaria.

Há suspeitas de que a matrícula mãe da Estrondo, que engloba todo o empreendimento, seja fraudulenta -isso porque em 1999 a empresa entrou no "Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil", do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

O Incra informou, por nota, que os imóveis da Estrondo "vêm passando no crivo dos normativos do instituto no que se refere ao cadastro e certificação" e que as "questões do domínio do imóvel rural e sua titularidade cabem ao cartório e ao governo do Estado".

Em 2009, a Estrondo foi flagrada com trabalho análogo à escravidão, como mostrou a Repórter Brasil. Por trás da Estrondo, está o gaúcho Ronald Guimarães Levinsohn. 

A trajetória de Levinsohn é recheada de polêmicas milionárias, como a derrocada na década de 80 da Caderneta de Poupança e Crédito Imobiliário Delfin, então a maior do país, e, recentemente, da UniverCidade, no Rio.

Pouco conhecido das comunidades geraizeiras, o gaúcho vive recluso na Gávea, bairro nobre no Rio de Janeiro. Em 2017, Levinsohn -- conhecido por ser "o conquistador do oeste baiano"-- tornou-se réu por desvios de recursos de fundos de pensão na Operação Recomeço, desmembramento da força-tarefa da Operação Lava Jato, como informou o MP do Rio, em nota.

À União, deve R$ 470 milhões, de acordo com os dados públicos consultados pela reportagem no site da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Procurados várias vezes nos telefones da Estrondo, da empresa Colina e do escritório de advocacia, nem Levinsohn nem a Estrondo se manifestaram.

Arte/UOL

Entre cercas

Em Cachoeira, não há sinal de telefone nem de internet. Os únicos capazes de se comunicar são os seguranças da Estrondo, por rádio --os moradores não possuem o equipamento.

A Repórter Brasil acompanhou Ednaldo e o irmão, Jassonê, 33, à cerca que dividiu o território e o rebanho da família. Do outro lado do fosso, estavam seguranças da Estrela Guia. 

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Em pouco mais de dez minutos de conversa, três seguranças armados chegaram em uma caminhonete e juntaram-se aos dois que lá já estavam.

Dois filmaram e fotografaram a equipe de reportagem. Outro anotou a placa do veículo --cenas que se repetiram ao longo de toda a semana.

Jassonê questionou os métodos de trabalho dos seguranças, que, segundo ele, agem como jagunços. Um dos seguranças respondeu seguir ordens do "líder" [os gerentes da Estrondo].

Quando questionado se tinha ordens para atirar caso os moradores avançassem, respondeu para a câmera: "Isso você pergunta para os donos da empresa".

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A Estrondo chegou à Formosa do Rio Preto na década de 1970, "primeiro, fazendo medição de terras; em seguida, intimidando e expulsando os moradores das comunidades com uso de pistoleiros, impedindo, com isso, o uso das terras pelas comunidades e demarcando áreas do vale como áreas de reserva". As informações são de um parecer técnico feito pela AST Consultoria e Planejamento a pedido do Ministério Público Estadual em 2013.

"O risco que essas pessoas vivem é iminente", disse o diácono austríaco Martin Mayr, 55, que escolheu morar no cerrado para defender as comunidades geraizeiras.

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Descendentes de indígenas, sertanejos e escravos libertos, os 382 moradores de Formosa se autoidentificam geraizeiros, as populações tradicionais que amansaram as terras do cerrado. Há, entre os eles, tataranetos de sobreviventes da Guerra de Canudos.

Apesar de a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garantirem o direito à autoidentificação e a permanecer no território, a realidade das comunidades geraizeiras é outra, como mostram boletins de ocorrência registrados pelos moradores.

Em 2016, a Bahia ocupou o quarto lugar no ranking de conflitos pela terra e o segundo no de conflitos pela água, segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra).

A pressão para deixarem o território chega por ameaças a mão armada, destruição de currais e materiais e restrições de locomoção em vias públicas.

Essas 59 famílias uniram forças para permanecer nas terras do vale que ainda não foram tomadas pela Estrondo.

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Os filhos de Guilherme, criados na enxada, já não sabem mais onde pastar o gado. "O bicho morre de fome porque eles colocaram cerca em tudo e o gado não tem mais onde comer."

As comunidades geraizeiras não têm pasto nem condições de alimentar os animais com ração. Como seus bisavós, criam os bichos livres. "Eles falam que a gente só pode passar se o dono der ordem, mas que dono, se essas terras são todas nossas?", disse ele.

Em Cacimbinha, extrativistas de capim dourado afirmaram que desde 2014 estão proibidos de colher para além das cercas elétricas. O trabalho de um ano inteiro da comunidade revertia, para cada família, R$ 1.000.

Sabino Batista Gomes, 47, mostrou o que o capim um dia já trouxe: os primeiros móveis da casa onde vive. "Sabe quando você sente que vai conseguir melhorar um pouquinho de vida? A Estrondo veio e tirou isso da gente."

A instalação das cercas, assim como a das guaritas, também foi questionada no MPE. A estratégia dos representantes da Estrondo foi a mesma: negaram que a função das cercas fosse delimitar as áreas das comunidades, mas "facilitar o trabalho da vigilância patrimonial contratada pelo empreendimento para evitar novas invasões".

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Devastação ambiental

O chapadão onde as famílias da comunidade plantavam e caçavam é uma imensidão de terra batida e deserta. Do bioma natural do cerrado, restou pouco.

"Não sobrou um só pau para passarinho sentar. Se o bicho quiser descansar, tem que ficar de pé", diz Cipriano Batista Gomes, 65, sobre a vida selvagem que desapareceu.

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Antes, as famílias complementavam as refeições --à base de arroz, feijão e macarrão-- com carne de caça. 

Hoje não. Parte da culpa por devastar o cerrado nativo recai sobre a empresa.

Em 2003, o então gerente-executivo do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), José Marcos Cardoso, liberou, em um único dia, o desmatamento de 43 mil hectares em Formosa sem análise do estudo de impacto, como prevê a legislação ambiental.

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Procurado, o Ibama informou que Cardoso foi submetido a processo administrativo e judicial e que todas as autorizações foram anuladas.

A Estrondo recebeu R$ 55 milhões em autuações aplicadas pelo Ibama, mas "nenhum valor foi pago", como informou o instituto em nota.

Estudos feitos a pedido do MPE mostram a mudança na biodiversidade e a ampliação das áreas áridas. Um deles afirma que, na ausência de cobertura vegetal, "as terras absorvem cada vez menos a água das chuvas, a maior parte evapora ou escorre superficialmente, provocando grandes erosões e assoreamento nos cursos de água".

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O Instituto Gestão da Águas, hoje Inema, documentou um processo erosivo próximo à comunidade Aldeia, aparentemente ligado ao desmatamento total das áreas de chapada, e uma cratera em expansão em Cacimbinha.

Também notificou a redução dos recursos hídricos dos rios Sapão e Preto em razão da construção de poços artesianos que mantém monoculturas da Estrondo. Antes caudalosos, em algumas áreas não alcançam nem os joelhos dos moradores. 

Os levantamentos mostram ainda que áreas de veredas, onde vivem os moradores, foram transformadas em reservas legais do condomínio. Nessa condição, a área não poderia ser habitada. Na prática, os geraizeiros teriam que sair de suas terras.

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O silêncio da Justiça

Em abril deste ano, 11 moradores entraram com uma ação de manutenção de posse coletiva na área do vale. O processo chegou à vara regional de Conflito Agrário e Meio Ambiente de Barreiras, a 862 km de Salvador.

Três empresas foram citadas nominalmente. A Cia Melhoramentos do Oeste da Bahia e a Delfin Crédito Imobiliário, ambas na lista da Estrondo, e Colina Paulista, da qual Levinsohn é administrador.

As filhas de Levinsohn, Claudia e Priscila, atuais e ex-funcionários dele também operam lá, como o contador Adilson Santana e o ex-diretor jurídico da Caderneta Delfin Paulo Carneiro Ribeiro.

A única sócia da Colina é a Tamzim Trading Ltd, sediada nas Ilhas Virgens.

Em maio, a juíza Marlise Freire Alvarenga deferiu liminar (decisão provisória) de manutenção de posse com "urgência". Pela primeira vez em décadas, os geraizeiros sentiram-se ouvidos. Durou pouco.

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Em julho, a presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, a desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, anunciou o fechamento da vara e sua substituição de um centro de "acordos", alegando que a mediação daria celeridade aos processos.

A juíza Marlise, em um movimento incomum no Judiciário, foi primeiro para Coribe, uma cidade menor que Barreiras --a tradição é sempre no sentido contrário.

A notícia do fechamento da vara foi comemorada pelas principais associações que reúnem proprietários e produtores da região e inclusive foi publicada no site da Estrondo.

Procurado por e-mail e por telefone desde a quarta-feira pela manhã, o TJ respondeu, na quinta à noite, que nenhum magistrado se manifestaria, mas pediu para a reportagem encaminhar as perguntas. Até a publicação, as respostas não haviam chegado.

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Com a mudança, o processo saiu de uma vara especializada e foi para a vara comum em Formosa, onde ficou parado. Em agosto, o oficial de Justiça Bartolomeu Bispo foi até a região cumprir a liminar, mas não citou os réus no processo --as filhas de Levinsohn--, afirmando que os donos não estavam presentes.

A decisão lhe custou uma representação na Corregedoria do Tribunal de Justiça, que pode terminar com uma advertência ou, em casos graves, até com a suspensão do cargo.

Até a publicação desta reportagem, a liminar dada em maio a favor dos moradores ainda não estava valendo e o juiz de Formosa, com o caso há seis meses, não tinha se manifestado em relação ao processo.

"A sensação é que a mudança do processo convergiu com o interesse do agronegócio na região", diz Maurício Correia, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia, que defende as comunidades.

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A morosidade da Justiça frente os avanços da Estrondo provocou, pela primeira vez, uma reação, ou um "vento", como chamam os moradores. Homens renderam seguranças da Estrondo, destruíram uma ponte e incendiaram uma guarita. Nas comunidades, ninguém falou abertamente sobre o "vento".

Menosprezar ou não resistir a um megaempreendimento que viola direitos, disse Ednaldo, o agricultor que foi posto para correr sob tiros, pode ser ainda pior.

O avô dele, Abdon Lopes da Cruz, 83, não imaginou que as investidas de outra grande empresa na região terminariam com ele e a mulher, cadeirante, sendo despejados da comunidade Brejão à força.

"Três homens seguraram meu pai pelas pernas e braços. Não pudemos tirar nada da casa, nem os remédios", disse Mariêne, tia de Ednaldo, em um choro sem pausas. "Por isso eu falo para eles: lutem."

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