Ameaça no ar

Fim da neutralidade da rede nos EUA começa a valer hoje ainda sem mudança das operadoras; Estados lutam contra

Gabriel Francisco Ribeiro Do UOL, em São Paulo
Alex Edelman/AFP

Você está lá fazendo maratona na Netflix e ela do nada tem a velocidade reduzida. O Skype e o WhatsApp são bloqueados pela operadora para forçar você a fazer ligações. Soa como um abuso por parte de quem oferece internet, mas estes dois exemplos existem em um mundo sem neutralidade da rede.

Casos similares ocorreram nos Estados Unidos antes de 2015, quando a neutralidade de rede virou lei por lá. E hoje (23) essas normas chegaram ao fim novamente, abrindo as portas para que as situações acima voltem a ocorrer. 

Por enquanto, nenhuma operadora divulgou mudanças na cobrança da internet. Por outro lado, muitos estados americanos estão tentando criar leis para impedir a queda da neutralidade. O temor é que a nova era norte-americana sem a neutralidade se espalhe mundo afora. Incluindo o Brasil. 

Jonathan Ernst/Reuters Jonathan Ernst/Reuters

O que muda nos Estados Unidos

Em dezembro do ano passado, o FCC (espécie de Anatel local) aprovou o fim da neutralidade da rede no país sob a bênção do governo Trump e do chefe do órgão Ajit Pai, antigo advogado da Verizon, uma das maiores operadoras dos EUA. Agora, a neutralidade (a ideia de que todo conteúdo trafegando online deve ser tratado igual) passará a ser voluntária. Portanto, ela  é não mais uma lei rígida como era desde 2015 por lá e como ainda é no Brasil.

Um argumento dos defensores da mudança é que as operadoras terão que ser mais transparentes com o que cobram. Por exemplo: se quiserem cobrar mais por um serviço (como assistir a filmes em Full HD), caberá ao consumidor decidir se paga ou não. Muitas vezes, contudo, o usuário não terá opção a não ser pagar pelo que é cobrado a mais.

Mas a briga não para aí: a discussão se estende agora ao Congresso e à Justiça norte-americana. Mais da metade dos Estados norte-americanos prepara leis para proteger a neutralidade. No final de fevereiro, uma coalizão de 23 Estados, liderados pelo procurador geral do Estado de Nova York, entrou na Justiça americana para reverter o resultado da votação do FCC que repeliu a neutralidade.

Após a queda da neutralidade, Vermont, Havaí, Montana, Nova Jersey e Nova York ordenaram que provedores deverão respeitar a neutralidade se quiserem ter contrato com agências estaduais. Recentemente, Washington e Oregon aprovaram uma lei que protege a neutralidade de rede em cada um dos Estados. Um projeto de lei contra a mudança foi aprovado em uma comissão do Senado da Califórnia na terça (17).

Operadoras ainda não anunciaram novos planos

Até agora, não houve nenhuma movimentação por parte das operadoras em termos de novos planos ou mudanças na forma que a internet é oferecida aos consumidores.

O FCC exige transparência dos serviços: se reduzir ou priorizar a Netflix, por exemplo, terá que avisar publicamente. Mas especialistas chamam essa "transparência" de ilusão e lembram que existem brechas na lei que permitem que as empresas escondam essa prática sob um "gerenciamento de rede".

Além disso, o custo para trafegar mais dados pode ser transferido do usuário para as empresas. Netflix, outros serviços de streaming ou sites podem ser cobrados pelas operadoras para que seu sinal tenha mais velocidade.

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Neutralidade é internet sem barreiras

O que é a neutralidade de rede, afinal? Pois bem: esse é o conceito que define que todo o conteúdo online deve ser tratado igualmente por quem oferece conexão. Os provedores não podem aumentar ou diminuir a velocidade de um serviço, nem sequer restringir o acesso de um usuário a um determinado site, app ou conteúdo.

Em suma, o seu “cano” de acesso à internet não pode escolher uma plataforma favorita para seu consumo. Por exemplo, não pode aumentar a velocidade de um buscador que pague mais para a operadora ou melhorar a qualidade de um serviço de streaming parceiro do provedor. Isso faria com que pequenas empresas não tivessem acesso às pessoas.

Essa regra deixa você assistir tranquilão a um filme na Netflix sem que cobrem uma taxa extra. Deixa você não ter a velocidade de conexão cortada se está há muitas horas jogando online no videogame. Ou até evita que bloqueiem seu Uber, caso o app tenha acordo com concorrentes de sua operadora.

Não vejo nenhum ponto negativo da neutralidade para o usuário final. É benéfico porque nessa questão de taxar serviços com valores diferentes o consumidor acaba pagando o pato por outro serviço. Pode ter determinado conteúdo mais barato, mas certamente a operadora de telefonia pode embutir um conteúdo em outro. E tudo usa internet: WhatsApp, rede social, navegador, mandar áudio. Não dá para diferenciar a voz, dados, WhatsApp e cobrar menos ou mais por isso

Gisele Truzzi, especialista em direito digital da Truzzi Advogados

As principais áreas afetadas

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Games e streaming

Os principais usuários afetados pelo fim da neutralidade de rede podem ser os que utilizam com mais frequência games online e serviços de streaming, como Netflix e Amazon Prime. Tais usuários são considerados inimigos número um das operadoras por fazerem um uso mais intenso das bandas - lembra da polêmica da franquia de internet? Com o fim da neutralidade, operadoras podem fazer planos diferenciados (e mais caros) a quem quiser jogar ou ver Netflix.

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Redes sociais e censura?

Redes sociais podem sofrer os mesmos problemas, sendo favorecidas ou não a depender de parcerias que fazem com as grandes operadoras. Especialistas ainda opinam que o impacto no marketing digital pode ser "profundo". Há um grande temor envolvendo censura: sem a neutralidade da rede, é possível que uma operadora priorize um site que respalda suas visões em detrimento de outro. Ou que manifestações em redes sociais e sites possam sofrer restrições.

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Startups e IA

As startups, origem de inovações em inteligência artificial, realidade virtual e realidade aumentada (que usam muita banda), podem sofrer. Empresas mais poderosas terão mais condições de fazer parcerias com provedores por melhores condições, o que pode diminuir as chances de sucesso dos iniciantes. Mark Zuckerberg já disse que não teria criado o Facebook se operadoras fizessem ele pagar uma taxa extra. Qualquer velocidade diferente nos dados já é o bastante para um serviço virar ou não.

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Internet das coisas

Tudo será conectado, da lâmpada ao carro. Há o medo de que no futuro operadoras escolham produtos ou marcas que você usará oferecendo "vias rápidas" da internet. Milissegundos podem ser vitais: imagine o estrago caso o alarme de incêndio de um fogão inteligente demore a chegar no seu celular. O bom é que a maioria dos dados da internet das coisas circula em redes privadas à parte dos provedores - então o impacto com o fim da neutralidade pode ser menor.

Digamos que temos uma internet que tenha só vídeo, email ou rede social. Aí aparece um aplicativo tipo Pokémon Go, isso encaixa onde? Na internet, as coisas aparecem espontaneamente, surge realidade virtual, realidade aumentada. Também não é razoável que alguém queira dizer o que você vai fazer ou não, mesmo se sua banda for pequena. Se você tem pouco dinheiro, não é obrigado a comer só arroz e feijão.

Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).

Divulgação Divulgação

Ele é contra

Ajit Pai é o grande mentor do fim da neutralidade de rede nos Estados Unidos. O chefão do FCC alega que a web não estava “quebrada” antes e que eliminar a neutralidade vai favorecer investimentos. “Se nossas regras impedem o investimento massivo em infraestrutura, eventualmente vamos pagar o preço em menos inovação”, opina. 

O curioso é que ele usa os mesmos argumentos de quem defende a neutralidade da rede para acabar com o princípio – de que a internet ficará mais “livre e aberta”. De fato, quem ficará mais livres e abertos são os provedores. E ele garante que exigirá contrapartidas dos serviços para defender o usuário.

Nós requeremos que eles forneçam uma variedade de informações e se falharem nisso serão submetidos a ações legais. Essa regra vai garantir que os consumidores conheçam o que estão comprando. O FCC vai ter de novo autoridade para agir caso provedores se envolvam em atos de anticompetividade, injustos ou enganosos”, diz.

O que Ajit não diz é que a internet nos EUA pré-2015 vivia com abusos de provedores. Em 2009, a AT&T obrigou a Apple a boicotar o Skype e outros serviços de voz por internet para favorecer ligações telefônicas. Em 2012, foi a vez de fazer o mesmo com o serviço de comunicação da própria empresa da maçã. Só poderia ter acesso ao FaceTime quem pagasse a mais por isso. Em 2014, a Netflix admitiu que foi obrigada a pagar para operadoras para ter vias rápidas de distribuição de conteúdo.

Vamos ser absolutamente claros. Os americanos ainda vão ser capazes de acessar os sites que querem. Ainda vão ser capazes de aproveitar os serviços que aproveitam. Ainda teremos "policiais" guardando uma internet livre e aberta. Era assim que as coisas eram antes de 2015 e é assim que será de novo

Ajit Pai, chefe do FCC, agência que regula as telecomunicações nos EUA

Ajit Pai, chefe do FCC, agência que regula as telecomunicações nos EUA

Getty Images Getty Images

Todos a favor

  • Mark Zuckerberg, fundador do Facebook

    "Quando eu estava criando o Facebook, em Harvard, só tinha uma opção de provedor para usar. Se eu tivesse que pagar a mais para fazer meu aplicativo ser visto ou usado, ele provavelmente não existiria. Por isso acho que a proteção é necessária"

    Imagem: Alex Wong/AFP
  • Os pais da internet Vint Cerf e Tim Berners-Lee

    "A proposta de romper a neutralidade de rede sem qualquer substituto é uma ameaça iminente à internet que trabalhamos tanto para criar. A proposta é baseada em um entendimento falho e factualmente impreciso da tecnologia da internet"

    Imagem: Rodrigo Paiva/UOL
  • Netflix

    "Sem a neutralidade, nós nunca conseguiríamos crescer e nos tornar o negócio que somos hoje. Todo um futuro de startups merece essa chance. A neutralidade trouxe uma era de inovação, criatividade e engajamento civil"

    Imagem: Getty Images
  • Google

    "Permanecemos compromissados com as políticas de neutralidade de rede que têm gigante apoio popular, foram aprovadas pela Justiça e estão funcionando bem para cada parte da economia da internet"

    Imagem: Divulgação
  • Brad Smith, presidente da Microsoft

    "A internet aberta beneficia consumidores, negócios e toda a economia. Isso é ameaçado pela eliminação das proteções"

    Imagem: Mike Segar/Reuters
  • RedTube

    "Agora que a neutralidade foi repelida, nós voltaremos à boa e velha revista de nudez. Se você quiser se cadastrar, por favor nos mande seu cadastro via pombo-correio. Nós deixaremos comida de pássaro na frente do nosso prédio para ter certeza que a carta chegue em segurança"

    Imagem: BBC Brasil

Quem se beneficia com o fim da neutralidade?

O fim da neutralidade é benéfico principalmente para as grandes operadoras, que alegam que as regras diminuem investimentos em infraestrutura. Na proposta do FCC, uma pesquisa financiada pela indústria diz que investimentos na infraestrutura da internet caíram 3% em 2015 e 2% em 2016 - estudos e reportagens publicadas nos EUA, contudo, questionam se houve queda e se a culpa é da neutralidade. 

Grandes empresas da internet, contudo, não devem sofrer com o fim da neutralidade da rede. Companhias como Google, Facebook e Netflix atualmente têm condições de pagar aos provedores para serem mantidos nas “vias rápidas” da web ou força suficiente para não terem sua velocidade diminuída.

Acabar com a neutralidade da rede seria colocar nas mãos dos provedores de internet o futuro da rede.

“Podem cobrar diferente por serviços e entregar uma ‘semi-internet’ que nem alcança a internet toda. Alguns países fazem isso já. Isso engana o consumidor. Parece que está acessando a rede, mas está acessando um jardim murado”, diz Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).

As grandes operadoras são contra a neutralidade porque buscam mais receita. Apesar de terem receita do acesso, querem tirar de quem faz conteúdo na internet. Alegam que montaram uma rede de telecomunicações e que tem gente ganhando dinheiro com os meios que desenvolveram. É como se a indústria automobilística reclamasse de um cara usar o carro como táxi ou Uber

Basílio Perez, presidente da ABRINT (Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações), entidade que reúne provedores menores e regionais

Olha como é nestes países

FRANCISCO LEONG/AFP FRANCISCO LEONG/AFP

Portugal

Como parte da União Europeia, Portugal tem neutralidade de rede, proibindo diminuição ou bloqueio de dados. O que rola lá é "taxa zero", em que dados de apps ou sites não são contabilizados para o limite de dados de um usuário. Operadoras vendem planos de acordo com o que o internauta vai usar: R$ 23 se for usar WhatsApp, mais R$ 23 se quiser acessar Facebook, outros R$ 23 se for ver o YouTube... É a mesma polêmica do "WhatsApp ilimitado" no Brasil.

Ju Peng/ Xinhua Ju Peng/ Xinhua

China

Sem neutralidade, a internet por lá é gerida por empresas ligadas ao Partido Comunista. Ela é filtrada por um aparato de censura conhecido como "Grande Firewall da China". Alguns sites carregam com uma lentidão absurda, enquanto outros nem carregam. Já alguns surgem instantaneamente. Conteúdos também podem desaparecer sem explicação. A censura está presente sempre - recentemente, a China chegou a banir a letra N por um dia da internet por causa de uma revolta.

Rafael Alvez/UOL Rafael Alvez/UOL

Austrália

A Austrália não tem neutralidade de rede e, no país, provedores comumente oferecem a chamada "taxa zero" em alguns conteúdos com quem as operadoras têm parcerias comerciais. O sistema funciona por causa do alto número de provedores (63), leis fortes de proteção ao consumidor (que impedem bloqueio e redução de velocidade a competidores) e regras que reforçam a necessidade das empresas serem transparentes.

AFP AFP

Estados Unidos

Os EUA tinham problemas antes da neutralidade surgir em 2015. Quando a Netflix ganhou força, provedores fizeram o serviço pagar pelo alto consumo de banda. A velocidade dos usuários que acessavam o site foi reduzida até a Netflix aceitar pagar operadoras. O mesmo aconteceu com outras empresas, como a Riot Games (dona do League of Legends). Operadoras chegaram a bloquear também serviços de ligação por voz em celulares, como Skype e FaceTime.

Nelson Antoine/AP Nelson Antoine/AP

E a internet do Brasil?

No Brasil, a neutralidade é protegida pelo Marco Civil da Internet, que diz que o “responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Mas não se engane: as operadoras estão bem interessadas em mudanças.

O Sinditelebrasil (sindicato patronal dos grandes provedores) já afirmou que defende uma neutralidade de rede praticada de forma “inteligente”, na qual conteúdos não são diferenciados, mas aspectos técnicos, sim – por exemplo, podem diminuir velocidade de alguém vendo um filme e deixar normal a de uma pessoa que só checa emails. 

Por aqui já existem polêmicas como o oferecimento de WhatsApp ilimitado por algumas operadoras ou pelo “traffic shaping” (quando a sua conexão é remodelada a depender do uso que você está fazendo), prática acusada por muitos usuários. Para especialistas, a decisão norte-americana pode sim trazer mudanças no país.

“Você pega um lugar do tamanho dos Estados Unidos. Com certeza vai refletir no Brasil. Nós temos sempre um grande desafio que é a política acima de tudo. No primeiro momento, temos um impedimento legal, que é o Marco Civil, mas nada impede que grupos de pressão defendam que o fim da neutralidade da rede seja um bom negócio e forcem a criação de um projeto de lei que altere o Marco Civil”, opina Leandro Bissoli, especialista em direito digital da Peck Advogados.

E o caminho para alterar qualquer regra na rede por aqui tem que ser exatamente esse: para mudar o Marco Civil da Internet, teria que ser criado um projeto de lei. Isso pode partir tanto dos congressistas brasileiros (deputados ou senadores) como do presidente Michel Temer (MDB).

É aguardar para ver. Mas que a sua internet está mais ameaçada a partir de hoje, está.

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