Pagar o aluguel ou a comida?

Mulheres contam as dificuldades que as levaram a viver em ocupações no extremo leste de SP

Wellington Ramalhoso Do UOL, em São Paulo
Edson Lopes Jr./UOL

Sofrimento e esperança

Nas ocupações do extremo leste da cidade de São Paulo, há famílias tentando reconstruir a vida depois de penar durante anos para pagar aluguel. Quando a situação financeira piora, surge o dilema: pagar para morar ou ter dinheiro para comer? Em algum momento, a fome fala mais alto. A opção pela comida --e pela sobrevivência-- vira dívida, traz mais pressão e pode levar ao olho da rua. O desemprego e problemas de saúde entre os parentes tornam a situação ainda mais grave.

Mulheres ouvidas pela reportagem contaram as dificuldades de suas famílias. Trocar o aluguel por uma moradia irregular em um bairro mais distante do centro é uma escolha feita depois de muito sofrimento e desespero. Em uma ocupação, elas sabem que há riscos, mas o respiro nas contas e a esperança de ter a casa própria pesam a favor da mudança. Confira os relatos.

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Fomos despejados nove vezes, diz mãe de filho com paralisia cerebral

A paulistana Priscila de Jesus dos Santos tem 35 anos e mora há dois meses com o marido e cinco filhos em uma casa de dois quartos, feita de madeira, em rua de terra recém-aberta em um morro ocupado no Iguatemi, bairro do extremo leste de São Paulo. Estudou até o 1º ano do ensino médio e pretende voltar à escola no meio do ano:

"Morava em Itaquera [zona leste] até juntar com meu esposo, há 11 anos. Meu filho mais velho, o Phelippe, de 11 anos, é especial. Ele tem paralisia cerebral. Também tenho três meninas, de três, seis e nove anos, e um menino de dois.

Nesses 11 anos, fomos despejados nove vezes. Era difícil conseguir ficar mais de um ano numa casa. Se conseguia pagar o aluguel, não pagava água e luz. Cortavam a água, e a luz só não era cortada porque a Eletropaulo é obrigada a manter por causa dos aparelhos do Phelippe. Já ficamos três, quatro meses sem água, dependendo de os vizinhos darem água para nós.

O Phelippe nasceu de seis meses. Eram gêmeos. O irmão dele morreu com um ano, com infecção generalizada. O Phelippe era uma criança normal, que engatinhava e comia. Mas o pulmão dele era fraco, e ele teve pneumonia. Por negligência médica, ficou 20 minutos sem oxigênio no cérebro quando estava internado. Prometeram que meu filho não ia ficar sequelado, porém o tempo foi passando e ele ficou em estado vegetativo.

Antes de vir para a ocupação, a gente morava em uma casa em Cidade Tiradentes [bairro vizinho na zona leste]. O aluguel custava R$ 850. Meu marido é porteiro e foi mandado embora. A gente não tinha mais condição de pagar aluguel, fomos despejados e viemos para a ocupação.

Não posso morar em qualquer barraco por causa da vida do meu filho. Sou acompanhada por assistente social e psicóloga. Se eu estiver onde não é adequado para ele, eu perco [a guarda do filho]. Então, tudo é em função do Phelippe.

Quando a gente soube da ocupação, ficamos felizes porque é uma oportunidade de a gente ter uma nova vida, uma nova história, dar uma vida melhor para os nossos filhos. O dinheiro que eu tinha usei para comprar as madeiras para fazer a casa.

O Phelippe precisa de uma cadeira de rodas e de uma cama hospitalar. Pagando aluguel, não tenho condições de comprar. Ele também precisa de dietas caras.

Estamos pedindo a Deus para conseguir esse espaço porque, se a gente perder, não tem para onde ir. Não tenho família que possa ajudar. A gente está vivendo de doações.

Mudar toda hora de casa mexe com a estrutura familiar, e as crianças têm que mudar de escola. Aqui consegui escola para as meninas. Só falta para o menor. Tem uma AMA [Assistência Médica Ambulatorial, unidade de saúde da prefeitura] perto que está me dando suporte total para o Phelippe em relação a material e a curativo. Aqui a gente se encaixou. Está muito bom. Meu marido está fazendo bicos e procurando emprego. Queria ficar, juntar dinheiro e fazer a casa de alvenaria. Queremos pagar pelo terreno."

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Após depressão, moradora diz que ocupação é o paraíso

Nascida em São Paulo, a dona de casa Luciola Nanci Mendes tem 38 anos e quatro filhos. É vizinha de Priscila na ocupação e também mora em uma casa de madeira. Chegou a iniciar o curso universitário de gestão de segurança, trabalhou como vigilante e tem tido dificuldades para trabalhar porque sofre de artrite reumatoide:

"Estava pagando aluguel sem condição nenhuma na Vila Formosa [zona leste]. Eram R$ 780 por mês. E estou devendo R$ 980 de conta de luz. Em determinado momento, disse: 'Cansei, não quero mais viver'. Quatro filhos, [tive uma] profissão, pago imposto, pago luz, pago água, aluguel e nada conquisto, não tenho nada. Caí num estado crítico de depressão.

Você dorme com aluguel atrasado, com luz atrasada, quer dar pão para o seu filho [Luciola fica com a voz embargada] e não tem. Ou mesmo levar num passeio, seu filho ir com sapato estourado para a escola [chora].

É você querer comer uma macarronada e não poder comprar molho de tomate, ter um arroz e comer sem alho e cebola. Não ter uma fruta, não ter bolacha para dar para o filho. Ter arroz ou feijão e não ter mistura.

Passei muitas privações a ponto de não ter produto higiênico para tomar banho e escovar os dentes. E não ter dinheiro para a condução.

E os filhos com vontade de sonhar, de ser veterinária, de ser cabeleireiro. E você falar: 'Não tenho mais força, não tem mais espaço em São Paulo, onde vou morar?'. Cheguei a pensar em morar numa barraca de camping no centro da cidade, mas não seria vida para a minha filha de dez anos.

De repente surgiram as ocupações. Vim visitar meu pai aqui perto e fiquei sabendo do Wendell [Nunes, líder da ocupação no Iguatemi]. Cheguei aqui e contei o meu caso. Ele falou: 'É uma luta, vamos?'. E aqui estamos.

Hoje não pago aluguel, mas não é por isso que vamos morar de graça, porque não estamos invadindo, estamos ocupando espaço para agir certo e ter uma moradia digna. É errado? Somos seres humanos. A gente sabe que tem um dono, mas queremos pagar para o dono e lotear.

O que as pessoas falam de ocupação? Que é mais uma favela. Não. Aqui é um novo bairro. São terrenos de 5 m x 20 m, ruas, vamos ter um parque, estamos pensando em creche e posto de saúde. Os governos não são empáticos, não se põem no nosso lugar. Tem pessoas aqui com 70, 80 anos, que toda a vida pagaram aluguel, pessoas que moravam na rua.

A gente renasceu. Pessoas que estavam mortas espiritualmente, sem vontade de viver e hoje têm prazer de levantar. Aqui você vê crianças brincando, é uma coisa nova, é uma oportunidade de ter dignidade. O ser humano não é digno só quando tem um salário bom, mas quando tem uma moradia.

É o primeiro barraco da minha vida. É de madeira, mas é lindo e gostoso. Tem um quarto e um banheiro. Vamos aumentar a construção. A ocupação é um respiro e, principalmente, uma esperança. Estou no paraíso e daqui não saio.

Somos lutadores. Nas ocupações, tem gente que trabalha, que batalha, que tem filho, que tem problema de saúde, que não pode pagar um plano de saúde e um remédio caro. Meu remédio é de alto custo e não conseguia comprar há quatro anos. Me vi um ano paralítica. Consegui o remédio aqui, me trato e ando. Sei que valeu a pena não ter acabado com a minha vida, valeu a pena cada terra tirada para construir essa casa. Fiz até uma horta aqui.

Tenho uma filha para cuidar. Consegui escola para ela aqui perto. Ela quer ser veterinária. Pagando aluguel, vou poder pagar a faculdade dela? Não, assim como não consegui pagar para os filhos mais velhos [de 20 anos, 18 anos, 16 anos]."

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Investi a economia de 25 anos em uma casa na ocupação

A supervisora de logística Patrícia de Almeida tem 43 anos e mora com o marido e a filha universitária na ocupação Araguaia, no Iguatemi. A família usou as economias para construir um sobrado no local:

"Quando casei, há 25 anos, morei um tempo com a minha mãe, dividindo a casa com ela. Quando a família cresceu [Patrícia tem uma filha], a gente foi pagar aluguel. Estávamos morando no Jardim Colorado [na zona leste]. Pagava entre R$ 600 e R$ 700 de aluguel, mais água, luz, alimentação e o material escolar da filha.

Quando soube daqui, tocou no coração, e a gente conseguiu um pedaço de terra. A gente entregou na mão de Deus e veio encarar. Faz mais ou menos quatro anos. A gente construiu pequeno, fez um cômodo, depois fez mais um puxadinho. Não sei [quanto investimos]. A gente vai de pouco em pouco e nunca parou para fazer as contas de quanto gastou na construção da casa. É a economia desses 25 anos, é uma vida.

A gente tem uma expectativa muito grande de que tenha uma boa negociação e que a gente consiga manter a nossa casa. Porque a gente quer pagar, só precisa ter uma negociação. O fantasma da desocupação está o tempo todo do nosso lado. A gente tem medo, mas tem muita fé também.

Falo para o meu esposo: se a gente perder aqui, para onde a gente vai? O que vai ser da gente? Voltar ao começo, como 25 anos atrás? Morar com a minha mãe de novo? Não é fácil, não. Não quero nem pensar em quanto está o aluguel atualmente, quero pensar que vai dar tudo certo aqui."

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Árvore destruiu meu barraco na ocupação

A faxineira Maria Piedade dos Santos é alagoana, tem 35 anos e mora com o marido e dois filhos em um barraco de madeira na ocupação Caguaçu, em São Mateus:

"Passei seis anos morando de aluguel na Vila Matilde [na zona leste]. Meu marido ficou doente, atrasamos o aluguel e a dona pediu a casa. Meu filho de 4 anos é especial e não tenho com quem deixá-lo. Fica difícil para eu trabalhar. Meu marido é pedreiro e trabalha por conta própria. Condições de pagar aluguel a gente não tem. A verdade é essa, dura, nua e crua. O aluguel está acima de R$ 600, R$ 700, fora água, luz e remédios.

Foi através de um amigo que a gente veio para cá. Meu marido veio, gostou e a gente começou a construir aqui. Depois de dois ou três meses, a gente mudou para cá.

Aconteceram uns imprevistos, mas estamos firmes e fortes. Uma árvore caiu em cima da minha casa, mas conseguimos a madeira e as telhas e construímos de novo. A gente conseguiu se reerguer.

Estávamos eu e meus dois filhos em casa. Estava ventando muito, ia chover. Meu vizinho viu que a árvore começou a cair e gritou. Só deu tempo de pegar as crianças e se mandar. Graças a Deus a gente conseguiu se salvar. A vida é o mais importante. Bem material depois a gente corre atrás e consegue.

É minha primeira vez numa ocupação. No começo, achei um pouco diferente porque estava acostumada a morar em casa de tijolo. Depois fui me acostumando. Minha filha mais velha também ficou meio tímida no começo. Aí falei que é o que tem para hoje, é melhor do que a gente estar embaixo de uma ponte, sem casa, sem nada. A gente tem um barraquinho de madeira, mas cabe todo mundo, está todo mundo protegido da chuva, do sol. A gente enfrenta [a situação] de cabeça erguida.

Tenho esperança, fé. Toda noite, quando vou dormir, peço a Deus que dê um jeito para a gente conseguir ficar aqui. Se a gente sair daqui, estamos perdidos."

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