Liberou (quase) geral

Legalização progressiva da maconha nos EUA cria indústria multibilionária e polêmicas que chegam até Trump

Aiuri Rebello Do UOL, em Denver (Estados Unidos)
Mathew Sumner

Na virada deste ano, a Califórnia juntou-se a outros sete Estados norte-americanos (mais o distrito de Columbia) e liberou a venda de maconha para qualquer um que seja maior de 21 anos. Por lá, a droga já era vendida em lojas desde 1996 para quem possuísse receita médica. De acordo com a imprensa californiana, esse foi um dos principais argumentos pela legalização total --na internet não é difícil encontrar consultórios médicos que, por US$ 50 (cerca de R$ 160), fornecem receitas meio que para qualquer um na área metropolitana de Los Angeles.

No Colorado, por exemplo, essa indústria não parou mais de crescer e triplicou de tamanho nos últimos quatro anos --neste período foram arrecadados US$ 500 milhões (cerca de R$ 1,6 bilhão) em impostos. O potencial econômico chamou a atenção de grandes corporações e hoje maconha significa grandes negócios (e alguma complicação) por lá.

Enquanto a economia fala por si só e estudos internacionais recentes indicam que a legalização (ou descriminalização) da maconha é um passo importante no combate ao tráfico de drogas, ainda falta informação científica de qualidade, não há consenso entre cientistas e o governo de Donald Trump promete tentar conter a expansão da legalização. Na lei federal dos EUA, a maconha é proibida e considerada uma droga tão perigosa quanto a heroína.

Hoje, são 29 dos 50 Estados norte-americanos onde algum tipo de legalização --para uso medicinal ou recreativo-- existe. Em em meio às contradições e alguns retrocessos, a legalização da maconha avança nos Estados Unidos. 

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

''Minha mãe não entendia, então eu a trouxe para ver como é''

"À direita vocês podem ver a prefeitura, a escadaria fica exatamente a uma milha de altitude", diz ao grupo Dev, o guia turístico. "Denver é a capital mais alta dos Estados Unidos, em todos os sentidos", completa sobre a principal cidade do Estado do Colorado. Os turistas, um grupo de oito pessoas, acompanham atentos pelas janelas da van.

"A propósito, são 16h20. Quem quer experimentar o bong?", diz o guia oferecendo uma espécie de narguilé. "Eu pego", oferece-se Chang, 34, um dos turistas do grupo vindo do Alabama. "Sabe, desta vez eu trouxe a minha mãe para ver como é", afirma enquanto expira uma grande quantidade de fumaça. "Já é a terceira vez que venho. Ela ficava preocupada, não entendia, aí trouxe ela para ver que não tem nada demais", diz e aponta para a senhora miúda de 72 anos ao seu lado, que aquiesce. A atmosfera começa a ficar nublada dentro do veículo.

Trata-se de uma excursão temática de maconha, que leva a plantações e lojas da erva próximos ao centro da cidade. Qualquer maior de 21 anos, norte-americano ou estrangeiro, pode comprar e consumir maconha no Colorado (desde que em lugares privados, como a van). O Estado foi o primeiro nos Estados Unidos a legalizar completamente a droga em 2012 (junto com Washington) e Denver é a capital de uma indústria bilionária que se desenvolve no rastro da planta.

O grupo da van de Dev é heterogêneo e nele tem gente de diversas partes dos EUA. Fazem parte da turma de turistas que invade a cidade todos os finais de semana em busca de maconha. "Não é só fumar em si, é toda uma onda, uma cultura que está nascendo", explica Chang.

É difícil encontrar um quarto de hotel vago na cidade aos finais de semana e feriados. A passagem de avião e um lugar em uma das dezenas de excursões têm que ser comprados com antecedência. Com o sucesso --apenas na River Rock, uma dentre as dezenas de lojas de maconha na cidade, o faturamento é de US$ 25 mil (cerca de R$ 80 mil) por dia--, a indústria da maconha recreativa alastra-se pelo país e atrai cada vez mais o interesse de grandes corporações.

Excursão em van "legalizada" atrai turistas e leva a plantação

Opiniões divididas

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Emprego dos sonhos

"Esse é o emprego dos sonhos. Fumo desde o final da adolescência, só que isso antes era um problema. Hoje virou solução. Quando legalizou, foi uma revelação acho que para o país todo. Nenhuma catástrofe que falaram aconteceu. Não explodiu o número de usuários, a cidade não ficou tomada por viciados jogados nas esquinas, a criminalidade não cresceu. O que aconteceu foi o contrário: empregos, impostos e toda uma cadeia de turismo e fornecimento que não existia antes. Vai muito além das plantações e lojas. Desenvolvemos novos produtos que exigem um processo industrial, tecnologia, agregamos valor. A indústria de embalagens, de fertilizantes, os hotéis, companhias aéreas, e por aí vai... ninguém esperava resultados tão positivos. Faz só cinco anos. E claro, tem a parte divertida como a minha. Ganho dinheiro para fazer o que gosto. Só tenho que tomar cuidado para não fumar demais, faço até quatro excursões por dia."
Dev, 26, guia turístico em Denver

Jason Redmond/Reuters Jason Redmond/Reuters

Achei que seria pior

Votei contra. Nunca gostei desse papo de maconha, mas a verdade é que achei que ia ser pior. Aqui isso já era meio que normal fazia muito tempo: não dava mais cadeia, existia loja para quem tinha receita --na prática, todo mundo que queria fumar já fumava. Então mudou pouca coisa. O que vejo de diferente é essa quantidade de turista que tem pela cidade agora. Antes não lembro de Denver ser tão visitada. Incomoda um pouco, tem um pessoal que fica muito doido por aí, mas por outro lado é bom. Tenho um amigo que colocou um apartamento para alugar no "Airbnb" e está feliz da vida, toda semana tem gente lá. Tenho filhos, me preocupo com eles virarem maconheiros. Por outro lado, também não quero que eles bebam e o álcool é legalizado. Sei lá, ainda é tudo muito novo, vamos ver no que dá
Louis, 41, motorista do Uber em Denver

Flávio Sampaio/Folhapress Flávio Sampaio/Folhapress

Na terra da fartura

No Colorado, a indústria da maconha recreativa não parou de crescer desde 2012. Em 2014, foram arrecadados US$ 67 milhões (cerca de R$ 213 milhões) só em impostos. Em 2017, esse valor saltou para US$ 247 milhões. No mesmo ano, as vendas de maconha chegaram a US$ 1 bilhão apenas nos oito primeiros meses. Nos último quatro anos, o Estado arrecadou meio bilhão de dólares (cerca de R$ 1,6 bilhão) em impostos.

Com a entrada da Califórnia --Estado mais rico e populoso do país-- neste mercado, a tendência é um crescimento ainda mais agressivo. Por lá, a indústria da maconha movimenta praticamente todos os setores da economia. Da agricultura à metalurgia, das fábricas de embalagem, dos escritórios de advocacia e do turismo ao mercado editorial --não são poucas as opções de publicações voltadas ao tema.

A popularidade da maconha é um incentivo para os investidores. No ano passado, o Estado de Nevada legalizou o uso recreativo da droga. Em menos de uma semana, Las Vegas estava desabastecida. Na Califórnia, onde as lojas medicinais não são uma novidade, formaram-se filas na porta das lojas nos primeiros dias de legalização ampla.

Segundo uma pesquisa da consultoria Arcview, devem ser injetados US$ 5,8 bilhões (cerca de R$ 18,47 bilhões) na economia californiana até 2021 com a novidade. Com números tão grandes, não surpreende que a maconha tenha se tornado negócio de grandes empresas nos EUA.

O mercado local já passou da fase romântica, quando empreendedores pioneiros investem de maneira mambembe em um novo negócio que ainda não "explodiu".

"Um conselho que posso dar para vocês é: não venham para o Colorado, a época dos pequenos já passou", afirmou Andy Willians, dono e diretor-executivo da Medicine Man, a pequenos investidores em uma convenção em 2015. "O segredo é achar um lugar que ainda não foi dominado e está para acontecer e começar antes de todo mundo", diz o empresário. Sua rede de lojas de maconha e fábricas de beneficiamento (quando a planta é processada para venda ou transformada em outros produtos) é uma das maiores dos Estados Unidos.

A GW Pharmaceuticals, maior empresa de maconha dos Estados Unidos, vale pouco mais de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 9,5 bilhões) na bolsa de valores. As principais companhias do ramo possuem ações negociadas e, de acordo com a Arcview, as vendas de maconha nos EUA devem superar os US$ 22 bilhões (R$ 70 bilhões) até 2020.

John Locher/AP John Locher/AP

Lavando dinheiro (dentro da lei)

"Resumindo, a gente vai passando a grana de um banco para outro até ela ficar 'limpa' e não reclamarem mais", afirmou Andy Williams, da Medicine Man, ao programa de TV norte-americano "Vice News".

De acordo com a lei federal norte-americana, a maconha continua proibida. Assim, a maior parte do sistema bancário segue as leis federais e não aceita dinheiro dessa indústria --pelo menos diretamente. De acordo com analistas de mercado por lá, este é o maior gargalo para o crescimento da indústria nos EUA. Apesar de a resistência estar diminuindo e aos poucos os bancos estarem mais abertos ao dinheiro da maconha, a questão ainda é um problema.

Na maioria das lojas, as vendas são feitas apenas em dinheiro. Para conseguir colocá-lo em circulação no sistema bancário, os donos destes comércios usam subterfúgios.

"Primeiro você deposita a grana em um banco estadual, os que ainda estão aceitando nosso dinheiro. Digo isso porque funciona numa relação de 'não me diz o que você faz que eu não vou perguntar', mas uma hora eles são obrigados a ir mais fundo no seu cadastro e, quando descobrem qual seu negócio, fecham sua conta", disse na entrevista ao programa de TV.

"Depois você faz um cheque e deposita em outro banco estadual, para a partir daí quem sabe conseguir transferir a grana --que você ganhou honestamente e está pagando todos os impostos-- para um banco com operação nacional", explica o executivo. "Finalmente, aí sim, é possível movimentar a verba livremente. Dá um trabalho danado. Temos um departamento inteiro só para isso."

Outro problema decorrente desta situação é a dificuldade para conseguir financiamentos: os bancos não emprestam dinheiro para atividades relacionadas à maconha. Para solucionar isto, os empresários do Colorado criaram cooperativas de crédito.

Tem também o risco de segurança: as lojas não só recebem em dinheiro, mas pagam seus funcionários e fornecedores com dinheiro vivo. Assaltos não são incomuns. Não à toa, o mercado de segurança e transporte de valores é um dos que mais cresce atrelado à indústria da maconha onde seu uso recreativo ou medicinal foi legalizado.

Justin Sullivan/Getty Images/AFP Justin Sullivan/Getty Images/AFP

Bebidas, doces, pomadas e vapores

Uma das principais ressalvas médicas ao consumo da maconha é justamente o ato pela qual a erva ficou famosa: fumar. O ato de colocar fogo em um cigarro de maconha e inspirar a fumaça faz mal. Qualquer fumaça contém em grandes quantidades monóxido de carbono, substância notoriamente cancerígena.

Para contornar este problema, nos Estados Unidos é possível consumir maconha de várias formas, sem necessariamente fumá-la. O mais popular destes métodos alternativos é a vaporização, que consiste em esquentar um óleo com os princípios ativos da planta em uma espécie de cigarro eletrônico e inspirar. Como os vapores não chegam a queimar, não há fumaça nem monóxido de carbono, minimizando nesse sentido os eventuais males para a saúde.

Outras formas populares de consumo são os produtos comestíveis: chocolates, balas, bebidas e toda uma miríade de produtos. Por fim existem os bálsamos, espécies de pomadas para aplicação tópica pelo corpo.

"Este ainda é um assunto novo, mas o que recomendo para os médicos é que se informem para poderem informar aos seus pacientes", diz o médico Peter Grinspoon, pesquisador da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, em um artigo na página da instituição na internet, publicado neste início de ano. "O fato é que, apesar da falta de evidências médicas, as pessoas estão buscando a maconha por uma série de motivos e não adianta a gente tentar ignorar isso."

De acordo com o profissional, a maconha pode ser recomendada para uma ampla gama de mazelas: dor crônica, glaucoma, controle de convulsões, insônia, ansiedade, esclerose e Mal de Parkinson, entre outras. "Os efeitos colaterais da maconha para todas estas situações geralmente são bem mais leves que as alternativas que existem no mercado", diz em seu artigo. "O problema é que não sabemos quase nada sobre seus efeitos nocivos no organismo, é preciso cuidado."

Golpe no tráfico?

Dados divulgados nos Estados Unidos apontam que a legalização progressiva da maconha medicinal e recreativa causou uma diminuição do tráfico de drogas.

De acordo com levantamento da revista "Time" junto ao "U.S. Border Patrol", órgão do governo responsável pelo controle de fronteiras nos Estados Unidos, a apreensão de maconha na fronteira com o México, principal origem de drogas ilegais para os EUA, passou de 1.133 toneladas em 2011 para 861 toneladas em 2014.

O período coincide com a legalização da maconha recreativa no Colorado, Washington, Alaska, Oregon e no Distrito de Columbia, além da legalização para uso medicinal em vários Estados. Em 2014, o Exército mexicano confiscou 32% menos maconha do que no ano anterior. No mesmo ano, foram registrados 15.649 assassinatos no país latino. Em 2011, foram 23 mil assassinatos.

A experiência da legalização em outros países também aponta para uma diminuição da violência e criminalidade. No Uruguai, o governo informou em janeiro que os índices de crimes ligados ao narcotráfico caíram 18% desde a legalização e início das vendas de maconha nas farmácias, seis meses atrás.

No mesmo dia que o governo uruguaio divulgava a notícia, a Comissão Global sobre Política de Drogas condenou a guerra às drogas e recomendou políticas que priorizem a saúde pública ao combate ao tráfico. Do painel fazem parte ex-presidentes e líderes globais como Fernando Henrique Cardoso (ex-presidente do Brasil), Ricardo Lagos (ex-presidente do Chile) e Kofi Annan (ex-secretário geral da ONU).

Kevin Lamarque/Reuters Kevin Lamarque/Reuters

Governo Trump contra-ataca

Uma nova decisão de Donald Trump ameaça acabar com o crescimento da maconha legalizada nos EUA. O presidente norte-americano emitiu uma ordem para que os tribunais federais voltem a processar pessoas por causa da erva em 2018.

A maconha é permitida por meio de leis estaduais e proibida pela lei federal, mas na prática as cortes federais não abriam mais processos contra plantadores, vendedores ou usuários de maconha desde 2013, quando o governo Barack Obama anunciou que não ia mais interferir nas legislações estaduais sobre o assunto.

O anúncio de Trump coincide com os primeiros dias em que a droga pode ser usada para fins recreativos na Califórnia. A medida assustou empresários do setor mas, pelo menos até agora, não possui efeitos práticos.

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