Yes, we can (or not)

Os erros e os acertos do primeiro presidente negro dos Estados Unidos

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo

Barack Obama chega ao fim de seu segundo mandato como presidente dos EUA com uma média de 55% de aprovação, mas ainda assim não conseguiu eleger sua candidata, Hillary Clinton, o que garantiria a manutenção de seu legado político. Ele passa o cargo no dia 20 de janeiro ao republicano Donald Trump, eleito com a promessa de destruir o que Obama construiu.

O ex-senador democrata assumiu o comando do país em janeiro de 2009 com a maior crise econômica pós-1929, duas guerras e o compromisso de mudança. Foi reeleito em 2012 com facilidade e deixa o posto com um país politicamente dividido.

Jonathan Ernst/Reuters

DEFESA E DIPLOMACIA

Nobel da Paz herda duas guerras

Ao assumir o cargo, Obama herdou duas guerras do outro lado do mundo, uma prisão repleta de denúncias de abusos de direitos humanos, incluindo o uso de métodos de tortura em interrogatórios e o aval para promover ataques com drones. Ainda no primeiro ano de mandato, foi laureado com o Nobel da Paz por sua visão e esforços na perspectiva de um mundo sem armas nucleares e seus esforços pela diplomacia.

Em seu discurso ao receber o prêmio, disse que muitas vezes "instrumentos da guerra" eram necessários para alcançar e preservar a paz. Ele entra para a história como o único presidente americano a servir por dois mandatos inteiros em um país em guerra.

Obama queria ter trazido de volta todos os soldados americanos no Iraque e no Afeganistão. E falhou. Declarou o fim dos combates no Iraque em 2011, mas acabou enviando militares para auxiliar no combate ao Estado Islâmico três anos depois.

Em 2014, anunciou o plano para a retirada das tropas do Afeganistão, mas precisou recuar. Hoje, Trump herda 5.000 soldados americanos no Iraque e 8.400 no Afeganistão, onde o Taleban controla mais território do que em qualquer momento do conflito desde 2001.

Mas a era Obama certamente ficará marcada pela morte de Osama bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001, em uma operação militar que violou a soberania paquistanesa.

Sua primeira medida anunciada, assim que assumiu a Casa Branca, foi o fechamento de Guantánamo e a proibição da tortura. Oito anos depois, dezenas de presos foram transferidos ou libertados, mas a prisão militar na ilha cubana não foi fechada. Guantánamo –que tinha 242 presos quando Obama assumiu --hoje abriga 45 detentos, e 19 têm permissão para deixar o lugar, mas precisariam encontrar um país que aceite os receber.

Uma das partes mais controvertidas do seu legado terá sido a expansão dos ataques com drones, normalizados como tática de guerra, deixando milhares de civis mortos em seu governo –incluindo em países em que os EUA não estão oficialmente em guerra, como Paquistão, Iêmen e Somália.

Para muitos, a situação atual da Síria também é parte do legado deixado por Obama. O país hoje é o centro de desestabilização do Oriente Médio. Acusado de não intervir nas atrocidades cometidas por Bashar al-Assad, seu governo admitiu treinar rebeldes e fornecer armas para a luta contra o ditador sírio, mas Obama vetou todos os pedidos por medidas mais duras.

Ramon Espinosa/AP Ramon Espinosa/AP

Acordos diplomáticos históricos

Se o legado militar de Obama é controverso, o diplomático deixa uma marca na história americana. O presidente não conseguiu derrubar o embargo econômico cubano que persiste há mais de cinco décadas, mas retomou as relações diplomáticas com Cuba, reabriu a embaixada americana em Havana, elevou o limite de remessas, restabeleceu os voos diretos entre os dois países e foi o primeiro presidente a visitar a ilha em quase nove décadas.

Outro marco histórico foi o acordo nuclear com o Irã, país com quem os EUA não mantêm relações diplomáticas desde 1979, após a Revolução Islâmica. O pacto nuclear limita o programa atômico iraniano em troca do fim gradual das sanções econômicas internacionais impostas ao país persa, permitindo que o país alivie a sua crise financeira a médio prazo.

Entre as sanções levantadas está a que vetava a compra de petróleo dos iranianos, e agora Teerã corre para fechar acordos e garantir o aumento da sua produção –temendo o governo Trump.

Em relação ao conflito entre israelenses e palestinos, Obama pouco fez para tentar apoiar uma solução, deixando os esforços de mediação de lado. Obama e o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, mantiveram um tenso relacionamento. Os EUA se abstiveram no Conselho de Segurança da ONU na votação contra a política de assentamentos israelenses nos territórios palestinos ocupados, fazendo com que a medida fosse aprovada. Os EUA deixaram claro que defendem a criação de dois Estados.

relação com a Rússia atingiu o ponto mais tenso desde o fim da União Soviética, na década de 1990. Obama chegou a anunciar sanções econômicas a Moscou em 2014 por conta da anexação da Crimeia e reforçou as medidas após o envolvimento russo no conflito no leste ucraniano.

Após as denúncias de hackeamento durante as eleições americanas, Obama aplicou sanções e expulsou diplomatas russos. Os olhos do mundo estão atentos para ver que tipo de relacionamento o governo Trump irá desenvolver com o Kremlin, após tantas denúncias sobre o envolvimento de Vladimir Putin para ajudar a eleger Trump.

Parte da tensão com o Kremlin também envolve o asilo político a Edward Snowden, que vazou dados sigilosos da NSA (Agência de Segurança Nacional). O ex-analista da agência revelou o esquema de vigilância dos serviços de inteligência dos EUA, que coletavam registros telefônicos, e-mails e até espionava líderes internacionais, causando um gigantesco impasse diplomático mundial.

Saul Loeb/AFP

QUESTÕES SOCIAIS

A questão racial

A eleição do primeiro presidente negro dos EUA não iniciou a era pós-racial que tantos apostavam que começaria e não reduziu o racismo, a violência e a desigualdade –pelo contrário, ela tornou-se mais evidente, apesar das melhoras notadas.

O próprio presidente e sua família foram inúmeras vezes vítimas de racismo, desde os que duvidaram de seu nascimento nos EUA até ofensas pessoais, como a prefeita que chamou a primeira-dama, Michelle Obama, de macaca. 

Em 2012, depois da morte do adolescente negro desarmado Trayvon Martin, o país intensificou o debate sobre o racismo institucionalizado. O homem (branco) que matou Martin, o vigilante George Zimmerman, foi inocentado por um júri formado somente por pessoas brancas –ele alegou legítima defesa.

"Quando Trayvon Martin morreu, eu disse que ele poderia ter sido meu filho. Outra forma de dizê-lo é que Trayvon Martin poderia ter sido eu há 35 anos", disse Obama após o resultado do julgamento, surpreendendo a imprensa na Casa Branca.

Obama ainda defendeu a eliminação de símbolos opressores e racistas, como a bandeira da Confederação --movimento separatista e escravocrata da Guerra Civil do século 19.

Segundo dados levantados pelo jornal "The Washington Post" sobre mortes causadas pela polícia nos EUA, em 2016 foram 233 negros mortos. A indignação de uma nova geração de ativistas motivou protestos contra a violência policial contra negros que frequentemente ocorrem no país, e movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) ganharam força.

Mas não é só a violência racial que aponta para um longo caminho para a comunidade negra nos EUA. As disparidades socioeconômicas também são significativas. Comparados aos brancos, os americanos negros enfrentam o mesmo risco de desemprego nesta década do que nos anos 1960. Na época, a taxa de desemprego era de 5% para brancos e de 10,9% para negros; em dezembro, foi de 7,8% para negros e 4,3% para brancos.

Tony Gutierrez/AP Tony Gutierrez/AP

Defesa dos direitos gays

Obama foi o primeiro presidente americano a assumir publicamente o apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, e foi durante o seu governo que a união foi legalizada pela Suprema Corte, derrubando qualquer veto estadual.

O presidente também acabou com a proibição de que homossexuais servissem às Forças Armadas e assinou um decreto que ampliou a lei de discriminação trabalhista para gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.

Foi assinada a Lei Matthew Shepard, que expandiu a definição de crime de ódio para casos envolvendo preconceito de orientação sexual, gênero, identidade de gênero ou deficiência. Obama foi ainda o primeiro presidente a citar transgêneros e bissexuais em um discurso do Estado da União, em 2015.

Ele ainda determinou que escolas públicas permitissem que estudantes transgêneros utilizassem banheiros e vestiários de acordo com as suas identidades sexuais, mas a medida foi barrada por um juiz do Texas.

Gerald Herbert/AP

POLÍTICA DOMÉSTICA

O fracasso no controle de armas

Obama afirma que o pior dia da Presidência dele foi o do massacre na escola primária Sandy Hook, em que 20 crianças e seis adultos morreram.

Ele foi um grande defensor do controle de armas –principalmente após o massacre na escola em 2012--, mas não conseguiu avançar na legislação sobre o tema –a NRA (Associação Nacional de Rifles, na sigla em inglês) é uma forte apoiadora dos republicanos, que controlam o Congresso.

O democrata insistiu, sem sucesso, em impulsionar medidas como a verificação de antecedentes criminais e de saúde mental de compradores e vendedores de armas. A Segunda Emenda garante o direito de portar armas, mas são leis que determinam como o acesso deve ser garantido.

Estima-se que, em média, todo ano pelo menos 31 mil pessoas morram por disparo de arma de fogo nos EUA –dois terços são casos de suicídio, um terço é de homicídios. Os dois últimos anos de seu governo registraram o maior número de tiroteios em massa na história dos EUA: em 2016 foram seis incidentes com 76 mortos, incluindo o ataque a uma casa de eventos em Orlando, na Flórida.

John Moore/Getty Images/AFP John Moore/Getty Images/AFP

A luta pela imigração

Obama tentou impulsionar a reforma da imigração, mas deixa o cargo como o presidente que mais deportou ilegais –foram mais de 2,5 milhões de pessoas expulsas do país, mais do que qualquer outro governo.

Em seu segundo mandato, o democrata ainda tentou garantir a residência permanente de mais de 5 milhões de ilegais que vivem no país há mais de cinco anos e têm filhos nascidos em solo americano, mas a Suprema Corte bloqueou o decreto. Estima-se que atualmente 11 milhões de pessoas vivam ilegalmente no país.

Apesar do número recorde de deportações, Obama deve ser lembrado principalmente pelos mais jovens que entraram ilegalmente nos EUA. Em 2012, o governo concedeu a permissão de trabalho para ilegais com até 30 anos, que entraram no país durante a infância e a adolescência (até os 16 anos), os chamados "dreamers" (sonhadores").

Segundo dados do governo, hoje 750 mil pessoas fazem parte do Daca (Ação Diferida para as Chegadas na Infância, na tradução da sigla).

Os números mostram que o número de deportações caiu pelo segundo ano consecutivo (2014 e 2015), mas o motivo é a queda no número de imigrantes que tentam entrar nos EUA, principalmente pela fronteira com o México. Estudos também mostram, que entre 2009 e 2014, mais mexicanos voltaram ao México do que entraram nos EUA ilegalmente –1 milhão de mexicanos e parentes, incluindo crianças nascidas nos EUA, deixaram o país em direção ao México, enquanto 870 mil mexicanos tentaram imigrar para os EUA.

RHONA WISE/AFP RHONA WISE/AFP

O polêmico programa de saúde

Quando Obama assumiu, um em cada seis americanos não tinha nenhum tipo de plano de saúde –50 milhões de pessoas em uma população de 307 milhões. A Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente, que ficou conhecida como Obamacare, hoje garante cobertura para 20 milhões dos 50 milhões sem seguro-saúde –e deve ser o primeiro alvo do governo Trump.

A lei tornou a cobertura do sistema público de saúde praticamente universal, e os custos foram cobertos com impostos cobrados dos mais ricos. Planos de saúde privados foram proibidos de recusar pacientes com problemas de saúde pré-existentes, e os abusos praticados pelas seguradoras foram punidos, como as cobranças excessivas.

O ponto mais polêmico da lei, que foi mantido após um debate da Suprema Corte, é o que obriga todos os cidadãos a pagar um seguro-saúde, sob pena de multa. A lei foi debatida durante os dois mandatos de Obama, em uma queda de braço com os republicanos.

Trump e sua equipe já disseram que o Congresso irá revogar e substituir o Obamacare na primeira medida do novo governo. Até agora nenhuma alternativa ao Obamacare foi apresentada. 

Gerald Herbert/AP Gerald Herbert/AP

A retomada da economia

Obama assumiu durante a pior crise financeira do país desde a Grande Depressão de 1929. E conseguiu promover a recuperação de forma mais forte e rápida do que os europeus, que apostaram em medidas de austeridade enquanto os EUA injetaram dinheiro no setor.

Obama herdou uma taxa de desemprego de 7,8% (chegou a 10% no primeiro ano de seu governo) e entrega o comando do país a Donald Trump com uma taxa de desemprego de 4,7% (em dezembro de 2016), índice mais baixo desde agosto de 2007. 

Em dezembro de 2016, o salário por hora no setor privado subiu 2,9% (US$ 26) em relação a dezembro de 2015 (US$ 25,26) --foi o maior aumento em mais de sete anos.

Analisando o PIB (produto interno bruto), o crescimento foi modesto: desde 2010, aumentou cerca de 2,1% ao ano. Durante a era Clinton (1992-2000), foi de 3,8% ao ano, e nos anos de George W. Bush (2002-2007), a média foi de 2,7% ao ano.

Apesar de os números parecerem positivos, é preciso considerar que a taxa de participação na força de trabalho é de 62,7%, a mais baixa desde 1976 (61,8%). Existem muitas explicações para o resultado: demografia, a geração do baby boom envelhecendo e deixando a força de trabalho ou o fato de a população estar desistindo de procurar emprego.

Logo no começo de seu primeiro mandato, Obama assinou a Lei de Investimento e Recuperação Americana, que conteve a quebra econômica, criou milhões de empregos e elevou os investimentos públicos e privados.

Este pacote fiscal de US$ 787 bilhões foi direcionado a medidas e áreas para estimular a atividade econômica. O resultado até hoje é debatido entre economistas: uns dizem que teve efeitos positivos substanciais em curto e longo prazo em todos os setores. Outros o criticam, firmando que foi um fracasso, já que a economia teve um fraco desempenho nos primeiros meses do governo.

Sean Gardner/Reuters Sean Gardner/Reuters

Acordo e acidente ambiental históricos

Em 2015, Obama assinou o acordo de Paris, que estabelece o primeiro marco legal para a adoção de medidas para conter o aquecimento global, reduzindo a emissão de gases do efeito estufa –os EUA são o segundo país que mais emite CO2, atrás apenas da China, que também assinou o pacto. A proposta é diminuir o aquecimento do planeta a 1,5°C até o fim do século.

Mas seu governo ficará marcado pelo maior vazamento de petróleo da história dos EUA, no Golfo do México, em 2010. O desastre na plataforma da petrolífera britânica BP matou 11 pessoas e despejou o equivalente a 3 milhões de barris no mar. Flora e fauna marinha foram afetados, matando aves, peixes, mamíferos e tartarugas, fora a poluição das praias da região.

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