Corra por sua vida

Refugiada nigeriana atravessou a mata durante oito dias para escapar do Boko Haram

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo
Lucas Lima/UOL

O bilhete embaixo da porta deu o recado: “Corra por sua vida”. Avisou também para não levar o telefone celular, pois o aparelho permitiria que ela fosse monitorada.

Diante da gravidade do alerta, a professora nigeriana Nkechinyere Jonathan, 46, não teve tempo de avisar a família nem de organizar aquela que seria a pior viagem de sua vida: mais de uma semana correndo pela floresta para escapar do grupo radical islâmico Boko Haram.

A princípio, seis professores da mesma escola a acompanhavam. Apenas uma resistiu ao seu lado até o oitavo dia, quando elas encontraram por acaso uma igreja considerada segura. Os outros cinco ficaram para trás, em pequenas vilas, e ela não sabe se continuam vivos.

No Brasil, país escolhido para recomeçar, a nigeriana batalha agora para obter os vistos de sua filha e três filhos, com idades entre 19 e 25 anos. Está ansiosa para que os quatro experimentem a sensação de liberdade e possam dormir por oito horas seguidas. Sem abrir os olhos durante o sono, como fazem na Nigéria para garantir que estejam mesmo em segurança.
 

Você reza para sobreviver

O alerta

O bilhete do começo desta história foi escrito em 2014, na língua local hausa, por uma vizinha de Nkechinyere na cidade de Borno (norte da Nigéria). Evangélica nascida em Biafra (região sudoeste do país), a professora visitava o local desde 2005 para lecionar em uma igreja missionária: ensinava inglês e ciências sociais para crianças de 5 a 12 anos. O destino das visitas periódicas acabou virando sua residência em 2009, quando o número de professores por lá começou a cair.

O motivo: medo do Boko Haram, grupo que quer impor a sua versão das leis islâmicas e proíbe qualquer forma de educação ocidental.

Os professores que resistiram viviam sem suas famílias na igreja onde ministravam as aulas. Como muitas mulheres e filhas dos radicais islâmicos eram proibidas de frequentar escolas, Nkechinyere muitas vezes se encontrava com elas às escondidas para ensiná-las o alfabeto romano, a escrever seus nomes, a somar, a subtrair. Também incluía nesta grade extraoficial cuidados básicos de higiene, desconhecidos por muitas.
 

Lucas Lima/UOL

Com a vizinha que escreveu o bilhete, a professora tinha uma ligação ainda mais forte. A mulher era mãe de uma garota de nove anos, já casada. Com um integrante do Boko Haram. De 45 anos.

Muitas vezes Nkechinyere ouvia a menina chorar e gritar enquanto era estuprada. Na própria casa. Pelo marido. A professora não podia intervir. Mas, quando o homem saía, ela ajudava a garota a se limpar e lhe dava analgésicos. Começou também a educá-la e chamou para essas aulas secretas a mãe, que vivia coberta por um véu e raramente saía de casa.

Lucas Lima/UOL

O alerta veio quando a mãe da garota ouviu uma conversa entre os terroristas sobre os professores da cidade. Na ocasião, Nkechinyere Jonathan foi citada nominalmente, um indicador do risco que então corria. A mulher escreveu a nota e mandou sua filha deixá-la onde viviam os missionários. Recentemente, a professora descobriu que sua salvadora morreu. Mas ninguém soube lhe dizer por que ou se sua morte teve algo a ver com a ajuda oferecida aos professores.

Em 2014, ano em que os missionários fugiram horas depois do aviso, o grupo terrorista criado em 2002 virou notícia em todo o mundo. Sequestraram 276 garotas de uma escola em Chibok (a 80 km de Borno), sendo que muitas viraram escravas sexuais. Três anos depois, cerca de cem delas ainda permanecem em poder do Boko Haram. Quando conseguem voltar para suas famílias, podem sofrer preconceito por serem consideradas mulheres de terroristas – uma condição sobre a qual nunca tiveram escolha.

Coração que sangra

Falta de educação

Antes de os terroristas ditarem as regras, Nkechinyere se considerava uma pessoa livre. Diz não ficar quieta diante de opressão, especialmente quando isso acontece com as mulheres. Conta que aquelas nascidas no norte do país recebem pouca educação e são ainda mais humilhadas, tratadas como seres inferiores. Por isso tentava ensiná-las, para que elas mesmas pudessem tomar decisões sobre suas próprias vidas. 

Lucas Lima/UOL

As crianças também estão em seu radar, pois acredita que o amanhã depende de como são educadas hoje. Só essa afirmação poderia facilmente colocá-la na mira de um fuzil AK-47, considerando a cruzada do Boko Haram - o nome significa proibição à educação ocidental. A professora é enfática ao dizer que eles querem manter as pessoas na escuridão da ignorância para continuar perpetuando o mal. E defende que este não é um movimento religioso, mas sim político, para obtenção de poder e controle de territórios. 

Lucas Lima/UOL

Por ora, a solução para o caos parece extremamente complexa: Nkechinyere defende que a ONU (Organização das Nações Unidas) “faça o que precisa fazer” e fala na divisão geográfica de pessoas com ideologias tão diferentes. Da forma como a situação está, reconhece não haver saída, pois uma simples ida ao mercado virou uma atividade muito arriscada. Se voltar em segurança, lembra ela, você agradece a Deus.

A situação pode ser ainda pior para uma inimiga declarada dos terroristas. Há cerca de oito meses, um de seus filhos se exercitava em Lagos quando foi atacado por dois homens, que quebraram sua perna. Um ataque direcionado, segundo Nkechinyere. Victor foi levado a um hospital, mas a família considerou a exposição arriscada: por isso o jovem vem sendo tratado apenas com ervas em uma área rural, onde vive com os dois irmãos. Pelo perigo de virar escrava do Boko Haram, a irmã vive em outro local, mais isolado, com uma tia.

Todos tiveram de abandonar os estudos e trocar os chips de seus celulares. A mãe é a única que sabe seus números de telefone. 
 

Fome, medo e dor

Nkechinyere também lembrava de cor o número de um filho quando deixou seu celular para trás, durante a fuga. Foi por isso que conseguiu telefonar para a família, quando considerou estar segura, avisando sobre o que tinha acontecido. 

Marlene Bergamo/Folhapress

A conquista da segurança foi extremamente sofrida, como relata. Durante os dias de fuga pela mata não havia comida, apenas o fruto de palmeiras – usado pelos missionários para hidratar a garganta. Eles não tinham um destino definido – apostaram no nascer do sol como bússola para seguir sempre na mesma direção. A sandália de Nkechinyere arrebentou durante a fuga – ela ainda hoje trata dos graves ferimentos causados nos pés enquanto atravessava, descalça, florestas e vilas. Nos locais habitados, não podiam pedir ajuda aos moradores - os professores temiam ser entregues aos terroristas. 

Lucas Lima/UOL

No oitavo dia, as duas professoras que resistiram à viagem chegaram a uma igreja onde foram acolhidas. Ingeriram apenas bebidas até que estivessem prontas para voltar a comer. Tomaram banho. Receberam analgésicos e cuidados para seus ferimentos. E Nkechinyere foi levada de carro até o Benin, país vizinho, onde conseguiu o passaporte, o visto de turista e a passagem de avião até o Brasil.

Chegou a São Paulo em julho de 2014 sem dinheiro e com muitos traumas. Até hoje sente medo quando ouve os rojões que celebram o Corinthians em Itaquera (SP), região onde vive atualmente.

Vida de refugiada

Versão brasileira

Foram mais de dois anos até que a nigeriana conseguisse ser reconhecida pelo Ministério da Justiça como refugiada no Brasil – país onde dá aulas de inglês, trabalha como faxineira, faz penteados afro e vende matéria-prima para a culinária africana.

O órgão do governo não comenta casos específicos, mas seu registro saiu em dezembro de 2016, após uma petição online registrar 150 mil assinaturas. A iniciativa foi organizada pelo projeto Vidas Refugiadas, uma rede de apoio às mulheres refugiadas, que conta com rodas de conversa, exposição fotográfica, palestras e iniciativas para mudar as políticas públicas referentes aos expatriados.

A expectativa agora é pelos vistos dos filhos e, depois, pela arrecadação do dinheiro que poderá trazê-los ao Brasil. No dia da entrevista ao UOL, no final de maio, Nkechinyere e os filhos estavam no quarto dia de um período de reza e jejum para que conseguissem alcançar esse objetivo. Ela reconheceu não saber como isso aconteceria, mas estava confiante de que tudo daria certo.

Lucas LIma/UOL

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