História esquecida?

Brasil teria o registro humano mais antigo das Américas. Mas poucos sabem

Gabriel Francisco Ribeiro Do UOL, em São Paulo
Reprodução/Fumdham
Marcel Vincenti/UOL Marcel Vincenti/UOL

O Brasil não foi descoberto em 1500

Pode parecer estranho, mas o Brasil não "existe" só a partir de 1500, com a chegada de Pedro Álvares Cabral e companhia. Também não estamos falando dos índios que aqui moravam quando os portugueses chegaram.

A arqueologia brasileira é vasta em achados: temos fósseis de mais dez mil anos, isso sem falar em desenhos rupestres e restos de fogueiras que podem ser os mais antigos da América, que contestam inclusive as teorias norte-americanas sobre a entrada dos primeiros povos no continente.

Por que, então, esta faceta brasileira é tão pouco valorizada? A resposta pode estar na cultura.

No Brasil, nosso olhar é sempre do país do futuro, ocorre um apagamento do passado. Diferente de países como México e Peru, o Brasil é construído e pensado a partir da chegada dos portugueses. A gente apaga tudo o que veio antes. Por isso que temos essa relação com as comunidades indígenas, de apagamento e exclusão. A partir do momento que você divulga a ideia de que o Brasil é miscigenado você apaga tudo que vem antes"

Louise Affonso, professora da Universidade Federal de Pelotas, especialista em turismo arqueológico

Você conhece a Serra da Capivara?

Fundação Museu do Homem Americano Fundação Museu do Homem Americano

"Machu Pichu brasileiro" não tem estrutura para turismo

"Nós temos nosso Machu Pichu que é a Serra da Capivara. Falta vontade para divulgar". A frase de Louise Affonso mostra um pouco da realidade de um dos maiores parque de sítios arqueológicos do mundo e patrimônio mundial da Unesco.

Localizado no Piauí, a 510 km de Teresina, o Parque Nacional da Serra da Capivara reúne pinturas rupestres de milhares de anos, além de uma região com vegetação e paisagem que impressionam. Mas por que vive em constante risco de fechar e é pouco visitado?

Em agosto, a Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), responsável pelas pesquisas e manutenção do local, disse que, por causa da falta de verbas, fecharia as portas. O parque, contudo, segue aberto, mas pode ver sua qualidade cair bastante. O número pequeno de visitantes (até 20 mil por ano) pode ser atrelado à falta de divulgação, mas também à falta de estrutura local.

"Falta divulgação, mas sou a primeira a dizer que não adianta. Se você faz muita divulgação, vai criar expectativa, gente querendo vir e não tem onde receber. Não se pode provocar a vinda de turistas enquanto a hotelaria não for melhor, restaurante não for melhor. A cidade mais próxima, São Raimundo do Nonato, tem esgoto a céu aberto. Para mim, criando as condições de funcionamento dos acessos, a estrutura da cidade e de hotelaria, o público vai vir", diz Rosa Trakalo, coordenadora de Projetos da Fumdham.

Um aeroporto próximo ao parque foi inaugurado após promessas desde o fim da década de 90, mas, segundo a coordenadora da Fumdham, só leva aviões de até nove passageiros que saem lotados de Teresina rumo a outras escalas. As estradas da região sofrem com buracos e más condições, apesar de incentivos do governo local. Infraestrutura hoteleira e de restaurantes quase não existem na área. 

"A verdade é que não sei dizer o que falta. Eu não acho que seja mal divulgado, vemos reportagens especiais sobre o parque. Nunca vai ser um turismo de massa, isso é evidente. Aquela pessoa que quer pegar um sol na praia com cerveja do lado não quer vir aqui. Mas em um país com mais de 200 milhões de habitantes vai ter muito interessado. Falta criar estruturas e depois fazer publicidade paga. Inclusive se vierem grupos de hotelaria grandes, eles mesmo vão divulgar", desabafa Rosa.

Arqueologia no Brasil não é só na Serra da Capivara

Você sabia que o Brasil tem um "stonehenge" próprio? E que a costa do Sul e do Sudeste tem várias estruturas pré-históricas ignoradas até por moradores da região? Pois é.

O Brasil tem importantes registros arqueológicos, mas enfrenta um grande problema em relação aos concorrentes: não existem grandes monumentos que por si só despertam a curiosidade de turistas. Por aqui, não há pirâmides misteriosas como no Peru, Egito ou no México. Sem isso, o que sobra para o turista?

O principal local de turismo arqueológico no país é mesmo a Serra da Capivara, que tem vestígios humanos, como pinturas rupestres e fogueiras, que teriam mais de 40 mil anos, segundo estudos.

Mas o país é riquíssimo também em outros achados, como os de Santa  Elina, que mostram a presença do homem por aqui muito antes do que diz a teoria que o homem teria chegado às Américas pelo estreito de Bering, entre os EUA e a Rússia, há 13 mil anos. O crânio de Luzia, encontrado em Minas Gerais, mostra a presença do homem na América do Sul há cerca de 12 mil anos - o que também não era esperado pela teoria norte-americana.

O Brasil conta ainda com sambaquis pelo litoral do Sul e Sudeste -- montes de conchas e ossos de animais que muitos nem sabem que são estruturas arqueológicas. Mas, em sua maioria, nossa arqueologia é formada por sedimentos como pedras lascadas e afins, que não geram apelo ao visitante comum.

Se a gente for comparar o Brasil com o México, não quer dizer que os indígenas deles sejam melhores, quer dizer que as condições geográficas deles obrigaram a construir casas de pedras que duram até hoje. No Brasil, nossos indígenas moravam em lugar de material orgânico. Os sítios que nós temos com mais apelo são de arte rupestre. Grande sítio era de pedra lascada. A maioria é um pasto e as coisas que a gente coletou têm pouco apelo para turismo"

Louise Affonso, professora da Universidade Federal de Pelotas, especialista em turismo arqueológico

Arte/UOL

Serra da Capivara e Serra das Confusões

Onde? A Serra da Capivara está em São Raimundo do Nonato e a Serra das Confusões abrange grande área do Piauí.

O que tem? Ambos estão distantes 80 km um do outro. Nos dois, são encontrados vários sítios com sinais de ocupação que incluem artefatos, pinturas e, em alguns deles, sepultamentos humanos.

Data dos achados: Há vestígios que sugerem presença humana de 40 mil a 50 mil anos atrás no Parque Serra da Capivara. Na Serra da Confusões, alguns sepultamentos têm cerca de seis mil anos.

Tem visitação? Os parques são os principais carros-chefes do turismo no Piauí. É possível visitar e ver as pinturas rupestres, além da natureza local. Também há o museu da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), com o crânio de Zuzu, que tem cerca de 10 mil anos. 

Pedra do Ingá (ou Pedra Itacoatiara)

Onde? No oeste da Paraíba, a 46 km de Campina Grande e a 109 km de João Pessoa

O que tem? Primeiro monumento arqueológico tombado como patrimônio nacional em 1944. A pedra contém símbolos, sulcados e esculpidos com apurada técnica na enorme pedra, que lembram figuras humanas e animais.

Data dos achados: Não se sabe a data certa dos escritos. Estima-se que as inscrições pertenceram a uma cultura extinta entre 2.000 e 5.000 anos atrás.

Tem visitação? É possível visitar o monumento arqueológico. No complexo da Pedra do Ingá há também um pequeno museu de história natural, criado em 1996, que possui em seu acervo fósseis de animais extintos há mais de 10 mil anos.

Sítios Arqueológicos de Minas Gerais

Onde?  Em Santana do Riacho, em Pedro Leopoldo (MG), na região de Lagoa Santa e nas regiões de Montalvânia e Peruaçu. 

O que tem? Vários sítios arqueológicos. Entre eles, estão a Gruta do Gentio e os diversos locais da região de Lagoa Santa. São vários os sítios arqueológicos com pinturas rupestres, artefatos e até sepultamentos humanos. Minas Gerias foi o primeiro grande centro de pesquisa arqueológica no Brasil, tendo sido investigada ainda no século XIX pelo dinamarquês Peter Lund.

Data dos achados: Luzia, um dos fósseis mais importantes do Brasil e achado em Lapa Vermelha, tem cerca de 12 mil anos.

Tem visitação? A maioria dos sítios não possui estrutura para turismo. Em muitos deles, pesquisas arqueológicas seguem em andamento. 

Sambaquis

Onde? Vários sambaquis existem ao longo do litoral sul-sudeste brasileiro e em áreas fluviais. Duas regiões importantes pela concentração de sambaquis são Joinville (SC) e entorno (região da Baía da Babitonga), Laguna (SC) e entorno. Além do Rio de Janeiro (Baía da Guanabara, Baía da Ilha Grande), Baixada Santista (SP) e no Vale do Ribeira (SP)

O que tem? São verdadeiros montes construídos pelos grupos sambaquieiros pelo acúmulo de restos faunísticos (conchas e ossos de animais - principalmente peixes). Estes sítios apresentam artefatos e muitos sepultamentos. Alguns deles têm uso exclusivamente funerário.

Data dos achados: Estruturas apontam para presença humana entre dez mil e mil anos atrás. No Vale do Ribeira, foi achado um sepultamento de 11 mil anos atrás.

Tem visitação? A maioria está em áreas facilmente acessíveis, muitos têm ocupações (casas) construídas sobre eles, alguns são sinalizados para visitação. As pesquisas arqueológicas sobre sambaquis estão ativas. Muitos destes locais estão em áreas privadas.

Parque Arqueológico do Solstício

Onde?  Calçoene, litoral norte do Amapá

O que tem? É também conhecido como o "Stonehenge do Amapá". Um conjunto de 127 rochas com 30 metros de diâmetro. São grupos de blocos graníticos dispostos no topo de colinas em diferentes formatos, provavelmente usado como observatório astronômico por povos indígenas – um dos blocos está atrelado ao solstício de 21 de dezembro. Nas escavações, foram encontrados enterramentos e oferendas.

Data dos achados: Datações mostram que há sítios na região com datações a partir do século 3 e 4.

Turismo? O governo local viu enorme potencial de turismo no local e incentivou pesquisas. É possível visitar a área. 

 

Sítios arqueológicos do Mato Grosso

Onde? Sítio de Santa Elina, em Jangada, Mato Grosso, e na região da Cidade de Pedra, em Rondonópolis (MT)

O que tem? Em Santa Elina, há pinturas rupestres e artefatos. Tem datações das mais antigas do Brasil, que são um pouco questionadas. Já a região de Rondonópolis apresenta um complexo de 167 sítios mapeados, a maioria com arte rupestre. Além disso, vários sítios apresentaram ocupações antigas com artefatos. As pesquisas arqueológicas na região seguem sendo feitas.

Data dos achados: Santa Elina tem datações antigas de até 25 mil anos, que são questionadas. Já as datações de Rondonópolis variam entre 10 mil e 6 mil anos.

Turismo? Santa Elina não possui infraestrutura para receber turismo. Já em Rondonópolis o potencial turístico da área vem sendo descoberto e a circulação de visitantes tem aumentado, mas os sítios não possuem infraestrutura para receber visitantes.

Antigos moradores do Brasil

Gregg Newton/Reuters Gregg Newton/Reuters

Luzia

O mais célebre fóssil brasileiro. O crânio foi descoberto na década de 70 em uma expedição arqueológica franco-brasileira realizada em Lapa Vermelha, uma gruta em Minas Gerais. O fóssil tem cerca de 12 mil anos e derrubou teorias norte-americanas sobre a entrada dos primeiros habitantes do continente americano. O nome Luzia foi dado pelo biólogo Walter Neves, que se inspirou em Lucy, fóssil de 3,5 milhões de anos achado na Etiópia em 1974.

Fundação Museu do Homem Americano Fundação Museu do Homem Americano

Zuzu

Com cerca de 11 mil anos, foi encontrado em 1997 na Serra da Capivara (PI). É mais um pertencente a primitivos povos americanos que desafiam teorias de cientistas dos Estados Unidos. Ganhou o nome Zuzu, mas um estudo de 2009 diz que o fóssil pode se tratar na verdade de um homem que morreu entre 35 e 45 anos - um ancião para a sua época. É semelhante a Luzia e com feições próximas a dos aborígenes da Austrália ou dos atuais africanos.

Luiz Carlos Murauskas/Folhapress Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Habitante de sambaqui

Os sambaquis são estruturas que foram criadas em grande parte da costa do sul-sudeste brasileiro por habitantes que viveram entre nove mil e dois mil anos atrás. Nestes locais, há a presença de sedimentos, como conchas e outros artefatos. Os sambaquis também normalmente contêm sepultamentos humanos. É o caso deste crânio de três mil anos nas mãos de Walter Neves e André Prous, do Instituto de Biociências da USP. Este fóssil seria mais um antigo morador brasileiro.

Por que a arqueologia importa?

A velha máxima que a história é "conhecer o passado para entender o presente e tentar prever o futuro" vale muito para a arqueologia. No caso dela, está o primeiro passo: descobrir como eram civilizações e sociedades antigas.

O campo de estudo surgiu a partir do século 19 na onda do iluminismo, após a Idade Média, junto com a antropologia. Mas esqueça a ideia mágica de Indiana Jones à caça de algo. Para a arqueologia moderna, o objeto vale bem menos do que o contexto.

"A gente não estuda o objeto, a gente estuda as sociedades por trás dos objetos. A arqueologia começa com a ideia de colecionar objetos das culturas antigas, principalmente Grécia, Roma, Egito, Mesopotâmia. No quintal inteiro da Europa tinham vestígios romanos. Neste primeiro momento, a gente tem essa fixação pelo objeto. Gradativamente, a arqueologia vai se constituindo como ciência com método, com a consciência de que tem mais do que o objeto, com contexto", explica Verônica Wesowski, professora no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. 

Sol, praia e bunda?

Para historiadores e arqueólogos, o Brasil nunca se vendeu como um país que valoriza a arqueologia e o turismo voltado para a área. Pelo contrário: a promoção do turismo por aqui é baseada nas premissas "sol, praia e bunda". Especialistas apontam ainda que a escolha do tipo de turismo vendido pelo Brasil nada mais é do que "política".

"Sei que foi alvo de financiamento, mas o turismo arqueológico não foi considerado de forma intensa na publicidade do país. Nos últimos anos, depois de vários processos que o Brasil levou por ser um país de turismo sexual, começou uma pressão muito grande para divulgação de outras formas de turismo. Neste processo, começou a olhar para outros bens. Mas nunca foi a proposta do governo para turismo. É muito recente este olhar para o patrimônio cultural", conta Louise Affonso.

De fato, o UOL foi atrás de informações do Ministério do Turismo e da Embratur sobre divulgação do turismo arqueológico no Brasil, mas obteve a resposta de que não há dados para esta prática. A Embratur chegou a fazer vídeos promocionais, inclusive para a Serra da Capivara (visto mais acima), mas nunca utilizou o material. 

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