O fim da era Castro em Cuba

Miguel Díaz-Canel é o 1° presidente civil após a Revolução Cubana, em 1959

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo
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Após 59 anos, um civil

Em 1º de janeiro de 1959, a revolução liderada por Fidel Castro, Ernesto "Che" Guevara, Raúl Castro e Camilo Cienfuegos derrubou o ditador Fulgêncio Batista, instalando o primeiro movimento comunista da América Latina em Cuba. O comandante Fidel tornou-se o ditador e só deixou o poder doente, em 2006, entregando a chefia provisória para seu irmão mais novo.

Agora Raúl sai da presidência e quem assume o posto é um civil, Miguel Díaz-Canel, eleito com 99,83% dos votos dos parlamentares à Assembleia Nacional nesta quinta (19) --603 de 604 presentes.

O mandato dado pelo povo a esta legislatura é para dar continuidade à Revolução Cubana em um momento histórico e crucial, que será marcado por tudo o que devemos avançar na atualização do modelo econômico e social, aperfeiçoando e fortalecendo todos os aspectos da vida da nação"

Díaz-Canel, em seu primeiro discurso

Engenheiro e professor universitário, o novo líder não conheceu Cuba sem o comando dos irmãos Castro. Agora, ele herda um país com a economia estagnada, um embargo norte-americano de mais de cinco décadas e uma população que aguarda pela abertura econômica.

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Quem é o 1º presidente civil

Eleito, Díaz-Canel assume a presidência do país dias antes de completar 58 anos, tornando-se assim o líder mais jovem da ilha pós-revolução - Fidel governou até seus 81 anos, enquanto Raúl deixa o cargo aos 86. Assim como 70% da população da ilha, o novo presidente não participou da luta armada - nasceu em 20 de abril de 1960, mais de um ano depois da tomada de poder dos comunistas.

O engenheiro e professor universitário não veste farda. Entrou no Comitê do Partido Comunista Cubano em 1991, e foi o político mais jovem a integrar o Politburo (o comitê central do Partido Comunista), em 2003, aos 43 anos. Em 2009, tornou-se ministro da Educação Superior, e quatro anos mais tarde assumia a vice-presidência.

"A diferença entre Raúl Castro e Miguel Díaz-Canel (dir.) é geracional. Cada um representa um momento distinto da história de Cuba. Mas ambos compartilham uma mesma preocupação: que seu legado não seja o fim da Revolução. É assim que Harold Cárdenas Lema, um dos fundadores do site "La Joven Cuba", explica a mudança de poder para a nova geração.

Díaz-Canel passou por todos os níveis da hierarquia do Partido Comunista de Cuba e sobreviveu a uma devassa feita por Raúl Castro em 2009: Raúl demitiu o ex-vice-presidente Carlos Lage e o ex-chanceler Felipe Perez Roque, segundo Fidel, quando "o mel do poder despertou ambições que os levaram a um papel indigno".

Até hoje não se sabe o motivo que levou ao afastamento dos dois, mas acredita-se que tenha sido justamente as falas nada discretas em relação à necessidade de reformas e mudanças na ilha. Díaz-Canel é conhecido justamente por atuar fora do holofote.

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As forças do Partido

"O governo de Díaz-Canel será o que a correlação das forças internas do governo e do Partido Comunista permitir", avalia Cárdenas Lema.

O analista político cubano Arturo López-Levy lembra que a ascensão de Díaz-Canel trará mudanças no marco institucional da ilha, construído sobre os pilares do Partido Comunista e das Forças Armadas Revolucionárias. "A liderança de Díaz-Canel terá que ser parte de uma equipe, coletiva, diferente do tipo que era exercido por Fidel e Raúl", afirmou. 

"O novo presidente não terá o nível de liderança sobre os militares que Fidel e Raúl tinham, já que eles eram os fundadores do Exército guerrilheiro, que é o embrião das Forças Armadas. Não podemos esquecer que Fidel e Raúl eram militares, e Díaz-Canel é um civil". afirma.

A transferência da presidência cubana é, na verdade, um processo de transição. "Raúl Castro permanece como líder do Partido Comunista, e comandará a transição na qual a liderança será passada a uma nova geração, já que Raúl tem quase 87 anos", diz López-Levy.

Raúl Castro permanece no comando do Partido Comunista até, pelo menos, 2021.

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A herança da era Castro

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Avanços com muitas reformas pendentes

Desde que Raúl Castro assumiu a presidência de Cuba, a realidade na ilha é bem diferente daquela comandada por Fidel: há milhares de pequenos comércios, estrangeiros que agora tomam as ruas de Havana, o sinal de internet é oferecido por wi-fi público nas praças (com conexão ruim e cara). O contato com os familiares que deixaram a ilha é feito por celulares, à luz do dia.

Raúl rompeu com a ideia de que a iniciativa privada é incompatível com o sistema cubano e ainda restabeleceu as relações diplomáticas com os EUA depois de mais de cinco décadas de rompimento durante o governo de Barack Obama.

Cubanos podem ir e vir da ilha sem pedir permissão do governo desde 2013 e quem quer voltar a viver no país teve a repatriação facilitada. Mais de 20 mil cubanos voltaram, e milhares puderam viajar para visitar parentes e trabalhar. 

Apesar do início da abertura, a ditadura dos Castro manteve a censura e o monopólio da comunicação na ilha --apesar das dezenas de sites e revistas virtuais ilegais no ar. A perseguição aos opositores do regime segue firme e forte, e o governo ainda mantém o controle das organizações sociais.

A ilha ainda enfrenta a falta de água, luz e a escassez de alimentos. Apesar das mudanças econômicas e dos subsídios dados pelo governo, os salários ainda são muito baixos --cerca de US$ 30, pouco mais de R$ 100.

Para complementar a renda, quatro a cada dez cubanos em idade para trabalhar obtêm recursos vindos da propriedade privada --legal ou ilegal. Muitos ainda atuam no mercado negro de compra e venda de produtos e serviços ou vivem das remessas enviadas por parentes nos EUA e na Europa.

Apesar da transformação nos últimos anos, "Cuba ainda é um país em desenvolvimento, com déficits claros no padrão de vida e de infraestrutura. O grande investimento em educação não foi totalmente explorado para melhorar o bem-estar geral. Isto se deve, em grande parte, ao fato de que a estrutura econômica não é capaz de absorver eficientemente uma força de trabalho mais qualificada", diz Ricardo Torres Pérez, professor de economia da Universidade de Havana.

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A desigualdade de duas moedas

Durante os anos de Raúl à frente da ilha, a performance da economia cubana praticamente estagnou e o sistema de dupla moeda criado na década de 90 foi mantido, ampliando ainda mais a diferença de renda no país socialista.

Cuba mantém em circulação o CUP e o CUC --o peso cubano, chamado pelos habitantes da ilha de "moeda nacional", e o CUC, o peso cubano conversível, moeda com a qual turistas fazem negócios na ilha --1 CUC equivale a US$ 1 e a 24 CUP. Uma das mudanças prioritárias para os próximos anos é justamente a reforma da moeda, já que, sem ela torna-se quase impossível enfrentar os demais problemas econômicos da ilha.

Funcionários públicos recebem seus salários em moeda nacional, enquanto todos que trabalham de alguma forma ligados ao setor de turismo recebem o CUC. Para se ter uma ideia, uma corrida de táxi entre o aeroporto de Havana e o centro da cidade custa, em média, 30 CUC, ou seja, US$ 30 --o valor de um salário mínimo na ilha, alto próximo de 720 CUP.

A estagnação econômica é clara. Em seu estudo sobre os rumos da economia cubana, o economista Richard Feinberg, do Brookings Institution, pontua que a produção do setor agrícola, que emprega 13% da força de trabalho da ilha, está abaixo dos níveis de 2005. 

"O consumo do setor estatal de eletricidade permanecem estável entre 2000 e 2015 (enquanto o consumo de energia elétrica pelo setor residencial, que inclui algumas atividades da economia privada, como restaurantes particulares e casas de hospedagem, dobrou)", afirma Feinberg em sua pesquisa.

O turismo é a exceção em meio ao cenário sombrio da economia cubana. A chegada de estrangeiros no país passou de 2,2 milhões em 2006 para 4,7 milhões em 2017, aumentando na mesma proporção ou até mais a renda proveniente do setor turístico --acredita-se que seja bem superior, já que muitas casas de hospedagem, táxis e restaurantes atuam de forma ilegal na ilha.

A crise venezuelana também afetou fortemente a economia da ilha. Pela primeira vez desde a década de 90, a Rússia está exportando petróleo para Cuba, em uma tentativa de ajudar o governo da ilha a compensar a perda da commodity venezuelana. Assim como em toda a América Latina, a China hoje é o principal parceiro comercial da ilha. 

Para López Levy, professor da Universidade do Texas Rio Grande Valley, o sistema cubano hoje é estável, mas é frágil. "A reforma econômica não é só econômica, ela tem consequências políticas e, já na época de Raúl Castro, foram realizadas aberturas políticas importantes, que ganham força a cada ano que passa."

"A sobrevivência do modelo econômico está relacionada com a estabilidade política do país, que depende de uma reforma econômica que já foi definida nos últimos congressos do Partido Comunista. O problema não é ideológico, é de implementação", diz.

Internet para (quase) todos

O programa de informatização da ilha foi iniciado em 2014, e estima-se que, até 2016, 38,8% da população tinha acesso à internet, segundo estimativas do relatório mais recente da Freedom House.

A ilha tem hoje 673 pontos de wi-fi públicos, 207 salas fixas para navegação online e 771 áreas para uso de interne em hotéis e correios. A empresa ainda planeja instalar 150 novos pontos de wi-fi neste ano. Mas para usar o serviço público, é preciso comprar um cartão: 1 hora de navegação custa 1 CUC --mas, nos hotéis, pode chegar a custar 5 CUC (R$ 17).

O sinal de internet por DSL foi instalado em 14.634 casas, e a previsão otimista é a de que outras 52.500 terão o sistema disponível neste ano --12.682 já teriam sido instaladas. O sistema, entretanto, é bem caro: 30 horas de navegação na velocidade mais baixa (1024/256 kbs) custam 15 CUC (R$ 51) por mês.

O sinal de 3G em Havana e arredores custa, para cubanos, 12 CUC (R$ 40) um pacote de 900 mb.

O próximo governo tem o desafio de expandir e acelerar o acesso público à web --a saber se ainda sob monopólio estatal. Há ainda planos para um cabo de fibra óptica submarino do México para Cuba, que podem facilitar o processo, vital não só para a democratização da informação, mas também para a economia da ilha.

Turismo pode servir de modelo para a economia

Durante o governo de Raúl Castro, Cuba desenvolveu um sistema híbrido único para o turismo unindo três setores: a empresa estatal, os parceiros internacionais e os empresários privados nacionais. "Isto sugere um modelo -- o crescimento tripartite orientado à la cubana-- que poderia ser aplicado de modo lucrativo em outros setores da economia, particularmente em dois setores proeminentes e atrasados: a energia e a agricultura", analisa o economista Richard Feinberg em seu estudo.

No caso deste sistema híbrido cubano desenvolvido para o turismo, o Estado controla o ritmo e os padrões de crescimento --o governo controla o número de voos comerciais e cruzeiros, e seleciona seus parceiros internacionais nos negócios. Estes parceiros internacionais aconselham na qualidade dos serviços prestados e nos preços cobrados.

Além disso, os próprios cubanos e suas famílias dão mostras do espírito empreendedor ao atender às demandas dos turistas com pequenos negócios --ainda não legalizados. 

No caso da geração de energia, Cuba tem potencial para atrair investimentos estrangeiros na produção de energia renovável --já que o país hoje é quase completamente dependente da importação de hidrocarbonetos, e perdeu o suporte venezuelano. Por sua posição no planeta, a ilha poderia ser uma produtora natural de energia solar, por exemplo, e aproveitar sua região costeira para produção de energia eólica. O país tem potencial para produção de biomassa graças à cana de açúcar. Hoje, somente cerca de 4% da produção de eletricidade do país é renovável.

Na agricultura, a abertura para o investimento estrangeiro pode reverter a situação atual: grandes áreas de terras sem cultivos, arados puxados por animais, tratores da era soviética. Segundo o economista, a produção de açúcar, café, tabaco e de frutas cítricas antes da revolução eram muito maiores do que as colheitas atuais. "A escassez de alimentos cria uma insalubre concorrência entre os consumidores cubanos e o setor de turismo em expansão", diz o professor.

O portfólio de investimentos estrangeiros para 2018 traz uma lista de 104 projetos agroindustriais disponíveis, que requerem, segundo o documento, um investimento de US$ 2 bilhões.

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A expansão da economia privada

O número de trabalhadores autônomos na ilha disparou na última década: passaram de 150 mil em 2008 para 580 mil em 2017. Sem conseguir viver com o salário pago pelo funcionalismo público, um grande número de pessoas recorre ao setor privado informal. Estima-se que pelo menos 40% da força de trabalho cubana tem alguma relação com a economia privada atualmente.

Raúl Castro congelou a emissão de novas permissões de trabalho autônomo sob a justificativa de que é preciso rever as regras para evitar abusos e acumulação de riqueza. Uma saída para a economia cubana seria abraçar totalmente a economia privada e remover o controle artificial. "Por exemplo, o governo poderia substituir sua lista de profissões autorizadas por uma lista de profissões proibidas, declarando todas as outras atividades legais como abertas para negócios", diz Feinberg.

"O relaxamento das restrições poderia reduzir a fuga de cérebros (para o exterior ou para empregos menos qualificados e mais bem remunerados no turismo), enquanto promete qualidade de serviços tanto para negócios públicos quanto privados (incluindo joint ventures)", conclui o economista.

A maior fonte de investimentos para as famílias e empresas privadas cubanas são as remessas enviadas por quem está fora do país. De acordo com Feinberg, estimativas conservadoras afirmam que são enviados ao país US$ 2 bilhões por ano, e a economia privada estaria investindo cerca de US$ 600 milhões por ano --coincidentemente o mesmo valor projetado pelo governo para investimento estrangeiro em 2018). 

"Muitas receitas do passado já não são válidas porque Cuba mudou muito desde os anos 80", diz o economista da Universidade de Havana, Ricardo Torres Pérez.

Muitos dos objetivos do país ainda são os mesmos, mas está claro que é preciso novas vias para alcançá-los. E o governo cubano precisa convencer seus cidadãos de que está em condições de cumprir suas aspirações."

Ricardo Torres Pérez, Universidade de Havana

Ramon Espinosa/AP Ramon Espinosa/AP

E o embargo dos EUA?

Durante o governo do presidente dos EUA, Donald Trump, as chances de que o embargo seja derrubado são quase nulas. E não somente por causa das falas de Trump contra as medidas de aproximação de Barack Obama, mas por posições políticas de seus conselheiros no tema. O senador republicado Marco Rubio pediu em março que Trump considere o sucessor de Raúl Castro como ilegítimo, diante da "falta de um processo eleitoral livre, justo e multipartidário".

Mike Pompeo, indicado por Trump para assumir o Departamento de Estado, e John Bolton, novo assessor de segurança nacional, deram fortes declarações contra o regime cubano. Pompeo é a favor da manutenção da prisão de Guantánamo --Cuba exige a devolução da área em que está instalada a detenção americana. 

Ted Piccone, ex-assessor do governo Clinton para política externa e pesquisador especializado em América Latina do Brookings, lembra que Bolton foi duramente criticado nos anos 2000 por suas acusações infundadas de que Cuba estaria desenvolvendo armas biológicas. Bolton disse ainda, em artigo publicado na imprensa americana em janeiro, que "a intromissão russa na América Latina pode inspirar Trump a reafirmar a Doutrina Monroe" -- em referência à "América para os americanos".

"Lamentavelmente, a Casa Branca deixou as relações com Cuba nas mãos de um pequeno grupo de congressistas e senadores de origem cubana que prefere a hostilidade e, portanto, adiam os danos que o embargo faz ao povo cubano. E esta dinâmica não deve mudar", diz Harold Cárdenas, do site "Joven Cuba".

Já o economista cubano Ricardo Torres espera que a mudança de presidente seja uma oportunidade para que os EUA se deem conta de que há tantas coisas mudando em Cuba que não vale a pena insistir em políticas fracassadas.

Como fica a retomada das relações entre EUA e Cuba?

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