Repressão além da política

A ditadura contra os gays: ser "diferente" era ameaça à segurança nacional

Gabriela Fujita Do UOL, em São Paulo

Torturas, assassinatos, violações de direitos humanos e censura à imprensa são marcas da ditadura brasileira. Entre os muitos aspectos negativos do período há um menos abordado: o impacto nas vidas de quem não tinha envolvimento com política, mas que eram perseguidos por sua orientação sexual.

O professor de direito da Unifesp Renan Quinalha defendeu recentemente um doutorado sobre o tema. Integrante da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, afirma que era feita "uma associação de segurança nacional com o comportamento hetero-normativo, com a família tradicional brasileira".

A letra de uma música, por exemplo, foi proibida com o argumento de que “a divulgação do homossexualismo é proibida pela Lei Censória”. Um funcionário público foi afastado da Petrobras por ser gay.

O “alvo maior da atrocidade” eram os rapazes homossexuais, conta a cantora Angela Ro Ro. Segundo ela, “não se podia ver uma bichinha na rua que, pumba!, arrebentavam ela...”.

Veja, abaixo, relatos de quem viveu este período e sofreu ainda mais violência por ser "diferente" do padrão sexual. E como a ditadura tornou a homofobia uma política de Estado.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

"São violações que você precisa esquecer"

A enfermeira Thaïs Azevedo se obrigou a remexer em gavetas do passado para dar seu depoimento. Aos 70 anos de idade, não consegue conter o choro e desabafa aos dois minutos de entrevista. “Quando falo sobre isso, descubro como a gente consegue eliminar o passado. E aí descubro que ele é muito doloroso. Eu tenho medo.”

Dói se lembrar da adolescência e do início da juventude dela, vividos no Rio de Janeiro e em São Paulo durante a ditadura (1964–1984). Para Thaïs, essa fase “obscura” traz imagens difíceis e permeadas de muita violência.

“Quando a gente diz ‘Anos de Chumbo’, a gente está falando das pessoas heterossexuais [e do que elas sofreram]. Esse universo homossexual não contava. Toda a sevícia que você sofresse era natural”, ela afirma sobre a repressão militar.

Nascida no interior de Minas Gerais, Thaïs foi enviada adolescente à casa de uma tia no Rio para continuar os estudos, mas ainda não se identificava como uma menina. O ano era 1964 e ela tinha entre 15 e 16 anos de idade.

“Eu era uma criança preta, em uma escola só de brancos. A gente não falava de transgeneridade. Não falava também de homossexualidade. A gente não falava, mas a gente sentia as consequências.”

A primeira delas foi sofrida dentro de casa. A tia não aceitava o jeito de ser do sobrinho e dispensou a empregada para que o menino assumisse as tarefas de limpeza. “'Já que você é tão mulherzinha', ela dizia, 'vai fazer o serviço'. Ela tinha o discurso de que, se fosse para envergonhar a família, o melhor era eu sumir. Eu fugi.”

Envergonhada, Thaïs não tentou voltar para Minas e passou a ficar pelas ruas, dormindo na praia. Integrante de um grupo de oito jovens, todos menores de idade e sem família, Thaïs foi presa pela primeira vez em uma feira.

“A polícia era amiga dos feirantes, pegou a gente, e foi aí que começaram as violações sexuais pelos policiais. Eu era muito delicadinha, tinha um aspecto muito feminilizado naturalmente, eu era uma presa muito atraente para esse pessoal.”

As apreensões dos garotos passaram a ser frequentes, e o grupo era usado pelos policiais para diversão, ela relata.

O abuso sexual era cometido pelo poder

Thaïs de Azevedo, enfermeira

"Ninguém questiona, se você é militar. E esse militar não questiona essa criança. Eu era menor de idade, com um corpo ainda saindo da infância, uma estrutura biológica que não é constituída para, de repente, sofrer invasões de homens adultos e coisas dessa natureza. São violações que você precisa esquecer para sair no outro dia e fugir, correr e continuar vivendo”, ela diz.

Até chegar à idade adulta, ela se prostituiu para sobreviver. Viu os amigos de rua desaparecerem aos poucos. Conseguiu deixar a condição marginal ao se envolver com um homem mais velho, com quem teve um relacionamento estável. Só então pôde se assumir com uma imagem feminina, de cabelos longos, curvas e seios (moldados com o uso de anticoncepcional para mulheres).

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

"Desafiavam a ditadura pelo simples fato de serem o que eram"

A ditadura militar brasileira é, com frequência, associada a violações de direitos humanos, civis e políticos, mas pouco se fala da repressão aos comportamentos sexuais. Essa é a opinião do advogado Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp, que recentemente defendeu uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) que aborda histórias como a de Thaís.

“Há uma tendência a reduzir a ditadura a um embate entre um governo autoritário e uma oposição. O regime autoritário também impactou outros segmentos da sociedade que não tinham envolvimento com a política, que não foram para a luta armada, para a resistência clandestina, mas que simplesmente tentavam viver seus desejos, suas identidades e que, pelo simples fato de serem do jeito que eram, já desafiavam o poder da ditadura”, ele diz.

Integrante da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, o professor vasculhou documentos oficiais (do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, por exemplo) no Arquivo Nacional e no Arquivo Público no Rio e em São Paulo, produzidos e registrados entre 1964 e 1984. Seu objetivo foi mapear e compreender como as pessoas LGBTs eram tratadas pelo aparato repressor montado durante o regime militar.

Quinalha concluiu que, encarando os LGBTs como uma ameaça à segurança nacional e à estabilidade da família brasileira, a ditadura usou órgãos e servidores públicos para institucionalizar a homofobia, ou a LGBTfobia, preconceito que já estava enraizado na mentalidade brasileira, mas que piorou ao ser levado ao patamar de política de Estado.

Segundo sua pesquisa, são várias as dimensões onde a ditadura aplicava o repúdio extremo aos homossexuais: nas artes, nas ações policiais cotidianas, nas investigações internas do regime e até mesmo nas repartições públicas.

“Desde censuras, letras de música, que não tinham nada de erótico ou pornográfico, eram simplesmente barrados porque mencionavam a sexualidade. Espetáculos de teatro que foram proibidos de serem apresentados porque citavam algo que se pensava estar associado ao comportamento homossexual, rompia com o padrão de comportamento de gênero masculino, por exemplo, com uma figura afeminada. Programas de auditório foram censurados, como o caso do programa do Chacrinha, porque insistia em mostrar certos jurados afeminados”, Quinalha exemplifica.

Rita Lee e Gilberto Gil tiveram proibida a canção “De Leve”, uma versão de “Get Back”, dos Beatles. A letra insinuava que um rapaz de Pelotas (RS) se descobria gay no Rio de Janeiro, onde “muito garotão curtiu”. “De leve que é na contramão”, diz o refrão.

Na justificativa para a proibição, em novembro de 1977, a censora afirma que a letra “enfoca o homossexualismo e lesbianismo de maneira vulgar” e avalia que o assunto deve ser tratado “através do ponto de vista médico-científico”.

O cantor Luiz Ayrão foi mais explícito ao compor “Homossexual”, banida pela censura em abril de 1972. A letra afirmava: “A sociedade precisa entender que é possível se viver sem conviver, não aplaudir, mas não crucificar, não reprimir, pois toda força reprimida em vão aumenta mais a força da explosão”.

A explicação para vetar a canção foi esta: “Não aprovo, pois a divulgação do homossexualismo é proibida pela Lei Censória.”

Bem recentemente, em julho de 2018, a cantora e compositora Angela Ro Ro, que completará 69 anos em dezembro, declarou na TV aberta que foi espancada “cinco vezes por homofobia” e que, por causa das surras, perdeu a visão do lado direito.

“Era a nossa própria segurança pública do Rio de Janeiro que fez os cinco espancamentos. Quatro militares desde a ditadura e um pela civil, depois da ditadura”, ela afirmou ao jornalista Pedro Bial, da TV Globo.

A cantora, que é lésbica, conversou com o UOL sobre a revelação da violência que sofreu, mas com algumas ressalvas. “Para a minha própria segurança física, mental e existência”, disse a respeito de perguntas sobre as torturas. “Eu não quero puxar briga com essa gentinha, não.”

Eu tenho as vértebras 10 e 12, torácicas, esmagadas. Um dos caras me pegou pelos braços e me puxou para trás e enfiou o coturno no meio das minhas costas. Foi aquele 'créc', e eu falei: ‘Me fodi...’. Caí dura, e o cara ficou apavorado: ‘Ih, aleijei a mulher...

Angela Ro Ro, cantora e compositora

Angela se lembrou de alguns casos de intolerância policial, em situações variadas: desde um luau na praia do São Conrado, hoje conhecida como praia do Pepino, quando o grupo com quem estava teve de sair fugindo para não apanhar da polícia; até a morte de um amigo, que “não dava pinta”.

“A pessoa mais sossegada do mundo. Ele era delicado, nem dava pinta, ele apenas era frágil, magrinho. Morava na zona sul, com a família. Ele estava chegando do cursinho de noite, ele foi abordado por policiais, isso era na década de 1970. Plantaram uma maconha nele e ele não reagiu, só falou: 'Não é meu'. Um dos caras se descontrolou e deu uma coronhada na nuca dele. Mandaram ele se levantar, mas ele tinha morrido já”, ela diz.

A cantora afirma que o “alvo maior da atrocidade” eram os rapazes. “Não se podia ver uma bichinha na rua que, pumba!, arrebentavam ela...”

Keiny Andrade/Folhapress Keiny Andrade/Folhapress

Para a artista, ainda estamos longe do momento em que tudo isso vai ser apenas história. “Hoje em dia, a gente sai na rua e qualquer um vira Marielle Franco. Infelizmente, é a situação da segurança pública. Eu já fui acometida de diversas, você sabe, né, como eu falei no [Programa do] Bial”, em referência aos ataques dos quais foi vítima. “Sexo não é para se ter vergonha nem é crime”.

Arte/UOL Arte/UOL

"Pederasta passivo" e afastado do cargo na Petrobras

Não apenas casos de artistas, a busca de documentos realizada pelo professor Quinalha também identifica situações como a de um funcionário da Petrobras que foi afastado de um cargo de chefia por conta de sua orientação sexual. Em uma correspondência sigilosa com o timbre da empresa, ele é apontado como “elemento pederasta passivo”, o que levou à sua remoção do cargo.

Em outro documento, intitulado “investigação socio-funcional”, com o selo da Gapre-Divin (Gabinete da Presidência da Petrobras / Divisão de informações), é informado o motivo para a demissão de um funcionário do restaurante: “Por ser possuidor de trejeitos femininos, evidenciando homossexualismo passivo”. Entre os detalhes julgados “úteis” no documento, ressalta-se que já havia “outro empregado (mais antigo) com a mesma tendência pederasta”, o que poderia ocasionar “rejeição ao restaurante”.

"Fazia-se uma associação de segurança nacional com o comportamento hetero-normativo, com a família tradicional brasileira, os pilares do desenvolvimento do país", afirma o pesquisador. “A doutrina da segurança nacional traz o inimigo para dentro, ele é interno. E você pode colocar qualquer um que esteja tentando 'acabar com a família brasileira' nessa categoria.”

“A ditadura achava que grupos de homossexuais estavam aliados a um movimento internacional comunista, para se unir e destruir o núcleo familiar.”

"Eles queriam 'limpar' a rua"

A pesquisa expõe ainda as operações que atingiam a população LGBT mais pobre em São Paulo, formada principalmente por travestis, que se prostituíam em ruas da região central. No primeiro semestre de 1980, de 300 a 500 pessoas eram detidas por noite.

“Tem relatos de muitas delas [travestis] que foram presas, torturadas, relatos de torturas específicas, como colocar um dos seios em uma gaveta e fechar. Extorsão era muito comum. No geral, elas tinham dinheiro porque tinham acabado de fazer programa, então só saía [da delegacia ou da cadeia] quem pagava, em episódios claros de corrupção e impunes”, conta o professor.

A enfermeira Thaïs de Azevedo, que se mudou do Rio para São Paulo em meados da década de 1970, trabalhava como modelo e vendedora para lojas de roupas quando conheceu a cena travesti paulistana. Durante a semana, ela ficava nas lojas, e no sábado à noite, encontrava as garotas em regiões como a avenida Angélica e a rua Minas Gerais, que frequentava para se divertir.

“A gente ia para o centro de São Paulo, e a polícia caía matando em cima da gente”, ela diz. “Levavam a gente para o 4º Distrito Policial, pegavam a turminha [de travestis] das 23h, e quem tivesse a partir de 50 cruzeiros ia dando o dinheiro e ia saindo, mas já depois de ter passado a noite lá.”

Para efeito de comparação, o salário de Thaïs como vendedora, na época, era de 180 cruzeiros por mês.

“A gente sofria toda sorte de violência que você pode imaginar. Isso era todos os dias. Imagine jatos de água gelada e você ficar ali [presa] a noite toda, com a roupa molhada", ela afirma.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Era tanta tortura que elas [as travestis] começaram a se cortar com gilete. Porque quando elas se cortavam, eles [a polícia] ficavam com medo e levavam para o hospital

Thaïs de Azevedo, enfermeira

De acordo com Thaïs, para se proteger das ofensivas policiais, as travestis carregavam lâminas de barbear no corpo ou na peruca e se cortavam nos antebraços para sangrar e não ficar nos “cubículos” da delegacia.

A enfermeira se recorda da noite em que enfrentou policiais e, em resposta ao “atrevimento”, foi mordida por um cachorro na perna, usado para ameaça-la. Também diz que era muito comum rasparem as cabeças das travestis detidas, que eram obrigadas a sempre usar perucas.

“Era higienização mesmo, e não era nem disfarçada”, ela afirma. “Teve um período que, aqui em São Paulo, ficou tenebroso para as travestis, ficou impraticável. A polícia corria atrás como se você fosse bicho e te pegava, jogava no chão e destruía você, batia. E os delegados surgiam na mídia como heróis. O período dos anos 1970 foi tenebroso.”

“A ditadura exterminou fisicamente a resistência no fim dos anos 1970”, afirma Quinalha. “E o que você faz com esse aparato repressivo todo? Ele começa a ser deslocado para, de alguma maneira, cuidar e gerir essa população indesejável nas regiões, por exemplo, em que o mercado imobiliário estava avançando, como a zona central de São Paulo.”

Na análise do professor, a violência produziu muitos traumas e um fechamento do país num momento em que a maioria do mundo ocidental discutia as liberdades civis e sexuais. Enquanto o Maio de 1968 foi transformador para países como a França, somente dez anos mais tarde uma parte da sociedade brasileira pôde começar a reivindicar direitos de se expressar. 

“A gente está em um processo que começa, apesar da ditadura e contra a ditadura, e que vai se intensificando nesses anos todos, com várias lutas e algumas vitórias pontuais. Quarenta anos é pouco tempo do ponto de vista da história”, pondera Quinalha, “mas a situação hoje é muito diferente do que a gente tinha no momento da ditadura. Hoje em dia, você tem a possibilidade de homossexuais se casarem, adotarem filhos, constituírem família”.

Apesar das mudanças, para Thaïs as cicatrizes estão à mostra, e a dor a acompanha. “O que ficou de legado é uma grande vergonha. O que eu, como pessoa, sou nessa sociedade?”

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