A enfermeira Thaïs Azevedo se obrigou a remexer em gavetas do passado para dar seu depoimento. Aos 70 anos de idade, não consegue conter o choro e desabafa aos dois minutos de entrevista. “Quando falo sobre isso, descubro como a gente consegue eliminar o passado. E aí descubro que ele é muito doloroso. Eu tenho medo.”
Dói se lembrar da adolescência e do início da juventude dela, vividos no Rio de Janeiro e em São Paulo durante a ditadura (1964–1984). Para Thaïs, essa fase “obscura” traz imagens difíceis e permeadas de muita violência.
“Quando a gente diz ‘Anos de Chumbo’, a gente está falando das pessoas heterossexuais [e do que elas sofreram]. Esse universo homossexual não contava. Toda a sevícia que você sofresse era natural”, ela afirma sobre a repressão militar.
Nascida no interior de Minas Gerais, Thaïs foi enviada adolescente à casa de uma tia no Rio para continuar os estudos, mas ainda não se identificava como uma menina. O ano era 1964 e ela tinha entre 15 e 16 anos de idade.
“Eu era uma criança preta, em uma escola só de brancos. A gente não falava de transgeneridade. Não falava também de homossexualidade. A gente não falava, mas a gente sentia as consequências.”
A primeira delas foi sofrida dentro de casa. A tia não aceitava o jeito de ser do sobrinho e dispensou a empregada para que o menino assumisse as tarefas de limpeza. “'Já que você é tão mulherzinha', ela dizia, 'vai fazer o serviço'. Ela tinha o discurso de que, se fosse para envergonhar a família, o melhor era eu sumir. Eu fugi.”
Envergonhada, Thaïs não tentou voltar para Minas e passou a ficar pelas ruas, dormindo na praia. Integrante de um grupo de oito jovens, todos menores de idade e sem família, Thaïs foi presa pela primeira vez em uma feira.
“A polícia era amiga dos feirantes, pegou a gente, e foi aí que começaram as violações sexuais pelos policiais. Eu era muito delicadinha, tinha um aspecto muito feminilizado naturalmente, eu era uma presa muito atraente para esse pessoal.”
As apreensões dos garotos passaram a ser frequentes, e o grupo era usado pelos policiais para diversão, ela relata.
O abuso sexual era cometido pelo poder
Thaïs de Azevedo, enfermeira
"Ninguém questiona, se você é militar. E esse militar não questiona essa criança. Eu era menor de idade, com um corpo ainda saindo da infância, uma estrutura biológica que não é constituída para, de repente, sofrer invasões de homens adultos e coisas dessa natureza. São violações que você precisa esquecer para sair no outro dia e fugir, correr e continuar vivendo”, ela diz.
Até chegar à idade adulta, ela se prostituiu para sobreviver. Viu os amigos de rua desaparecerem aos poucos. Conseguiu deixar a condição marginal ao se envolver com um homem mais velho, com quem teve um relacionamento estável. Só então pôde se assumir com uma imagem feminina, de cabelos longos, curvas e seios (moldados com o uso de anticoncepcional para mulheres).