Nascidos para matar

No Sudão do Sul, ser criança também significa entrar no conflito armado de uma sangrenta guerra civil

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo
Stefanie Glinski/AFP

No país com maior taxa de crianças fora da escola, as aulas são na prática: treinamento militar, violência, uso de armas. Em vez de estudarem, os jovens ficam à mercê de grupos envolvidos em um conflito nacional, que recrutam menores de idade. Seja de forma voluntária ou à força.  A convocação é proibida, mas isso importa pouco em uma nação onde impera a lei da violência. Por lá, instituições humanitárias trabalham para resgatar a infância perdida, enquanto tentam fazer valer o básico dos direitos humanos. 

Divulgação/Isaac Billy/Unmiss Divulgação/Isaac Billy/Unmiss

Em 7 de fevereiro de 2018, uma cerimônia reuniu 311 jovens na cidade de Yambio, no Sudão do Sul. Na ocasião, registrada nas fotos desta reportagem, parte dos 224 garotos e 87 garotas --algumas com filhos no colo-- entregaram suas armas. Todos trocaram seus uniformes por roupas civis, marcando assim o começo de uma nova fase. Foi quando se libertaram oficialmente de grupos armados, nos quais atuavam como crianças-soldado, para ingressarem em uma nova vida. Desta vez, considerada “normal”: família, estudos, cuidados médicos, brincadeiras. 

Fica difícil, no entanto, falar em normalidade no país mais novo do mundo, que se tornou independente do Sudão em 2011. Com 13 milhões de pessoas e uma guerra civil iniciada em 2013, cerca de 4 milhões --quase um terço do país-- foram obrigadas a deixar suas casas nesses cinco anos. Em meio a uma grave crise humanitária, na qual a regra parece ser o caos, aquelas 311 crianças representam uma pequena parte do problema (ou, agora, da solução): estima-se que 19 mil menores tenham sido recrutados para lutar.

Numa conta complicada, levando em consideração a ilegalidade de usar crianças em combates, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) coloca o Sudão do Sul no topo da lista dos países que mais recrutaram menores nos últimos anos --na sequência aparece a República Centro-Africana, com 10 mil.

Estamos falando de jovens malnutridos, fora da escola, separados de suas famílias e, em muitos casos, armados. Até com fuzis AK-47. Alguns recebem treinamento militar, outros ficam incumbidos de prestar serviços para líderes que, em muitos casos, não escolheram. As garotas são minoria nos grupos armados. E quase a totalidade (99%) entre as vítimas de pedofilia, nos poucos casos reportados no país.

Em seus relatos, as crianças-soldado falam em ataques violentos contra civis, assassinatos, estupros, torturas, saques, roubos e todo tipo de destruição --como atear fogo em uma casa cheia de pessoas. Ações típicas de guerra, aqui executadas por crianças e adolescentes.

Eles estão traumatizados, passaram por atrocidades. Não há simplesmente como sair da floresta e ingressar em uma vida normal. Muitos têm sangue em suas mãos: mataram a mãe de alguém, o filho de alguém
David Shearer, diretor da ONU no Sudão do Sul 

Stefanie Glinski/AFP Stefanie Glinski/AFP

O desafio da liberdade

Para a libertação no começo de fevereiro, tropas de paz da Unmiss (Missão da Organização das Nações Unidas para o Sudão do Sul, na sigla em inglês) escoltaram líderes religiosos locais até áreas remotas de florestas, onde negociaram com dois dos muitos grupos envolvidos na guerra civil. Nas próximas semanas, essa mesma missão pretende libertar outros 400 que atuam como crianças-soldado.

Quando isso acontece, as vítimas são encaminhadas a centros provisórios onde recebem atendimento médico, psicológico e participam de programas de reintegração. Passada a primeira etapa, o objetivo é reconectá-las a suas famílias. Começa então um novo desafio: a migração em massa dificulta a localização dos parentes, sendo que muitos deles morreram. Algumas crianças, portanto, passam longos períodos aguardando uma definição sobre seu futuro em espaços mantidos por organizações assistencialistas.

“Alguns viveram por anos com esses grupos [rebeldes], então não conhecem nada além disso. Mas eles têm esperanças e sonhos como qualquer jovem: uma delas me disse que pretende ser costureira. Quando o medo passa, eles começam a jogar futebol, a querer ir para a escola, mostrando ter muito em comum com as crianças de qualquer lugar do mundo”, conta o neozelandês David Shearer, que desde janeiro de 2017 vive no local e comanda a Missão da Organização das Nações Unidas para o Sudão do Sul.

O jornal “Washington Post” mostra outra versão dessa história: quando, sem perspectiva, os resgatados consideram retomar sua vida com os rebeldes. A reportagem acompanhou, no final de 2017, o cotidiano de um jovem chamado Babacho Mama, que estava entre os 1.775 jovens soltos em 2015 na região de Pibor --este foi o maior número de crianças-soldado libertadas no país, seguido pela ação de 2018.

Babacho Mama diz ter entre 16 e 19 anos. Seus pais morreram em um confronto étnico: o pai levou um tiro no peito, a mãe teve o pescoço cortado. Sem parentes nem escola, juntou-se voluntariamente a um grupo armado e, por volta dos 12 anos, deu seu primeiro tiro com um AK-47.

Viveu como um guerreiro até a libertação, em 2015. Agora, considera voltar: “É melhor morrer em combate do que de fome”, afirmou o jovem, que lava roupa para fora e ganha até US$ 3 (cerca de R$ 9) por dia. Segundo o jornal, o programa de reintegração de Mama fracassou. Ele vai à escola, mas professores sem receber salários dão uma única aula de 30 minutos por dia. A cada dois dias, come uma refeição de carne seca com pimentas. “O que eu posso fazer [além de lutar]?”, questionou. 

Denis Dumo/Reuters

Stefanie Glinski/AFP

Adesão por força ou por fome

Para entender melhor o problema, a organização não governamental Human Rights Watch, de defesa dos direitos humanos, entrevistou durante um ano, entre meados de 2014 e de 2015, 101 vítimas sul-sudanesas.

Nesse grupo, 41 foram recrutadas por forças do governo e de seus aliados, 33 lutaram com os opositores e 27 foram crianças-soldado em conflitos anteriores à guerra civil --a prática já era comum entre 1983 e 2005, na disputa entre as regiões norte e sul do Sudão. Os quatro mais velhos tinham 18 ou 19 anos na época da entrevista, e a maioria ficava na faixa dos 13 e 14 anos --como muitos não têm certidão de nascimento, acabam desconhecendo sua idade exata.

Essa pequena amostra ajuda a conhecer o perfil dos jovens combatentes, geralmente moradores de áreas rurais e muito pobres. Cerca de um terço das crianças relataram ter sido forçadas, de forma violenta, a se juntar a grupos armados. Os demais aderiram por diferentes motivos: aumentar suas chances de sobrevivência (com acesso a armas e proteção do grupo), possibilidade de proteger suas comunidades e seus rebanhos, vingar-se de ataques anteriores, ter acesso a comida e, em pouquíssimos casos, receber pagamento. Mesmo aqueles que se voluntariam ficam depois proibidos de deixar os grupos, sob violentas ameaças.

Na prática, o próprio governo descumpre as regras e alista jovens sem a idade mínima para lutar. O SPLA (Exército da Libertação do Povo do Sudão, na sigla em inglês), exército formado por rebeldes que se oficializou como as Forças Armadas do país, aparece em uma denúncia recente da ONU --entre muitas outras-- com os recrutadores de menores.

O país não tem representação no Brasil. Um porta-voz da embaixada sul-sudanesa em Washington (EUA) afirmou em entrevista por telefone "não haver crianças-soldados no país. As crianças estão na escola". Questionado sobre as fotos da libertação em Yambio, divulgadas por agências internacionais de notícias, ele disse também serem falsas.

Stefanie Glinski/AFP

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A guerra que se espalhou de cima para baixo

O dia 15 de dezembro de 2013 marca o início da guerra civil do Sudão do Sul. Na capital, Juba, guardas do presidente Salva Kiir, da etnia dinka, entraram em confronto com defensores do então vice-presidente, Riek Machar, um Nuer --considerados rebeldes pelo governo do Sudão, os dois líderes lutaram juntos pela independência e se uniram para formar o novo governo. Porém Kiir acusou Machar de planejar um golpe, fazendo com que seu vice deixasse o país e dando origem ao sangrento conflito.

A violência iniciada em Juba, por políticos de alto escalão, se espalhou entre diversos estados, onde houve casos de tortura, assassinatos, estupros, vinganças, aldeias queimadas e detenções arbitrárias. Tudo com base nas etnias, que já tinham um longo histórico de disputas de terra, recursos e poder. Muitos desses grupos, unidos na luta contra o norte, retomaram sua postura de intolerância depois da independência.

Em 2016, depois da assinatura de um acordo de paz, Machar voltou ao Sudão do Sul e reassumiu a vice-presidência no governo de Kiir. Ou seja: tudo voltou ao seu lugar na hierarquia política, mas o caos estava instaurado no país. O estrago foi enorme: em março de 2016, um oficial da ONU falou em 50 mil mortos.

Por causa da guerra civil, o Sudão do Sul deixou de plantar e, em 2017, chegou a declarar situação de fome. Ainda hoje, a ajuda internacional fica à mercê dos grupos armados. A ONU exemplifica que, em uma viagem de dois dias entre Juba e Yambio, os comboios com carregamento de comida precisam de 13 autorizações de grupos armados para seguir caminho.

Foram assinados diversos acordos, como um cessar-fogo em dezembro de 2017, mas os confrontos continuam e têm como aliada a barata mão de obra das crianças. Dependendo de quem as recruta, podem receber treinamento militar ou simplesmente ganhar uma arma, que terão de aprender sozinhas como usar. Não há diferença entre atividades realizadas por adultos e crianças, com exceção do tamanho do armamento que conseguem carregar.

Quando não estão em combate, podem virar guarda-costas dos líderes ou cumprir funções do cotidiano, como lavar roupas, cozinhar e buscar água para o grupo.

Stefanie Glinski/AFP

Stefanie Glinski/AFP

Um país movido a ajuda humanitária

Diante de tantos problemas, miséria e descumprimentos de acordos feitos por líderes locais, o Sudão do Sul funciona à base de ajuda humanitária.

A Unmiss, por exemplo, mantém uma equipe com 17.140 colaboradores em diversas funções --muitas delas militares-- e oferece moradia provisória a mais de 200 mil civis. A World Vision tem diferentes programas: um deles dá o equivalente a US$ 45 (cerca de R$ 150) mensais para famílias, outro garante espaços para plantio, há ainda centros de nutrição para crianças, grávidas e lactantes. Care, Cruz Vermelha e Oxfam são outras entidades que provêm o mínimo para os sul-sudaneses viverem, enquanto tentam garantir que os direitos humanos sejam colocados em prática.

Em 2014, foi criada a campanha “Children, Not Soldiers” (crianças, não soldados), com foco em oito países e diretrizes para combater o recrutamento infantil. Entre 2007 e 2017, estima a ONU, foram libertadas cerca de 65 mil crianças-soldado em todo o mundo.

“Não conseguimos ajudar a todos, mas damos nosso máximo para fazer o melhor que podemos. Cada criança resgatada poderá ter uma nova vida, e é isso o que nos mantém seguindo em frente”, resumiu David Shearer, da Unmiss. “Para terem uma chance, eles precisam de alimentação e cuidados. Precisam de proteção --considerando desde as lutas até doenças. Precisam de um ambiente seguro, onde podem aprender e brincar. Se as crianças não receberem uma oportunidade justa, qual será o futuro do país quando eles crescerem?”, questiona Mahimbo Mdoe, representante do Unicef no Sudão do Sul.

Ex-criança-soldado e hoje cantor de hip hop, Emmanuel Jal (leia sua história abaixo) foi salvo do conflito por uma voluntária britânica, mas critica a forma como as políticas assistencialistas são executadas.

“Como nação, nos tornamos aleijados. Por muitos anos, nos alimentamos dessa ajuda [...] e vocês estão matando uma geração inteira com essa assistência. [...] Nos deem ferramentas de plantio, a África é fértil. Invistam em educação, para podermos criar uma revolução e mudar tudo. Temos esses homens velhos criando guerras na África. Eles vão morrer em breve. Se investirem em educação, conseguiremos mudar a África”, disse em sua palestra no evento TED realizada em 2009. Desde então, houve muitas mudanças. Poucas para melhor.

Divulgação/Facebook/Emmanuel Jal

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