Luz sobre um crime invisível

Combate ao abuso sexual e pornografia infantil avança, mas Brasil sofre sem banco de dados nacional

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo
Suamy Beydoun/Agif/Folhapress

Autoridades brasileiras realizaram em maio a operação Luz na Infância 2, classificada como a maior do mundo concentrada em um único dia para reprimir crimes de abusos sexuais contra crianças e adolescentes. Cerca de 2.600 policiais civis cumpriram 579 mandados de prisão no Distrito Federal e 24 estados, levando à detenção em flagrante de 251 suspeitos. Entre eles alguém relativamente famoso: Marcelo Eiji Harada, o “japonês do Pânico”, que aparecia na televisão aos domingos quando o programa ainda era exibido pela RedeTV!.

Encontrado em sua casa na zona sul de São Paulo, Harada tinha pornografia infantil armazenada em um HD (disco rígido) externo, segundo as autoridades --ele negou, dizendo que “foi tudo uma armação sensacionalista”. Se houve surpresa com a detenção de alguém conhecido, sua soltura pode ter causado o mesmo efeito. Isso porque, após prestar depoimento e pagar R$ 1.000 de fiança, Harada foi liberado naquele mesmo dia. Atualmente ele responde ao processo em liberdade.

Com base nessa história, a reportagem do UOL foi atrás de informações para saber qual havia sido o destino dos outros 250 detidos: quantos presos, quantos soltos, quais as acusações? Sem sucesso neste levantamento e após contato com diversas autoridades --policiais civis, federais, representantes da Justiça, ONGs e o próprio ministério responsável pela ação--, ficou evidente que não existe no país um sistema centralizado para registrar, investigar e acompanhar crimes de abuso sexual infantil.

O relato ilustra, de forma resumida e detalhada logo abaixo, a maneira como o Brasil lida hoje com o problema. 

Mais ações, dados espalhados

1. A tecnologia realmente possibilita a identificação de pessoas que historicamente agiam às escondidas --quando era basicamente a palavra da vítima contra a do abusador, numa espécie de "crime invisível". Por mais que atue no submundo virtual, o criminoso hoje está exposto, assim como as provas de suas contravenções.

2. Autoridades brasileiras estão envolvidas em diversas operações, muitas delas grandes, deixando clara a mensagem: há um esforço em andamento no combate a crimes sexuais contra menores. Existem delegacias especializadas, profissionais idem, e as leis estão mais rígidas, abrangendo diversos tipos de crimes. Há mais denúncia, mais investigação, mais punição.

3. Apesar do item anterior, é possível os suspeitos envolvidos em crimes de pornografia infantil responderem em liberdade mesmo após serem detidos. Sim, existe uma explicação legal para essa soltura, exposta mais adiante.

4. Por fim, o Brasil não tem informações consolidadas sobre o problema. Sendo que, em 2010, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Pedofilia fez duas recomendações desse tipo em seu relatório final. Sugeriu a criação de um “banco de dados nacional de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes” e um “levantamento estatístico, de âmbito nacional, relativo ao número de processos judiciais em que se apurem crimes de caráter sexual cometidos contra crianças e adolescentes, considerando-se, especialmente, a utilização da internet”. Oito anos depois, nada disso existe: “Se tentar reunir essas informações, você vai enlouquecer”, disse à reportagem uma autoridade familiarizada com o tema, que pediu para não ter seu nome divulgado.

Antes de avançarmos, um esclarecimento. Pedofilia não é crime, mas sim um termo médico ligado ao desejo sexual por crianças. Esta reportagem trata de pornografia infantil e de atos sexuais com menores de 14 anos --todas elas práticas criminosas. Levando isso em conta, um pedófilo que controla seus desejos, seus impulsos e não os coloca em prática não comete crimes. É uma questão médica, não policial. No sentido contrário, criminosos podem não ser pedófilos, mas oportunistas, por exemplo, se o objetivo for lucrar com a pornografia infantil. Dito isso, vamos em frente.

Foto: Suamy Beydoun/Agif/Folhapress; Fonte: Ministério da Segurança Pública

Quebra-cabeça de informações

No caso da Luz na Infância 2, coordenada pelo Ministério de Segurança Pública, houve uma concentração nacional de esforços nas investigações e no cumprimento dos mandados. Cada estado, porém, ficou responsável pelas detenções, pelos processos e julgamentos de seus suspeitos, considerando aí as particularidades de cada região. Há dados referentes ao número de detidos, cidades onde moram, idades e profissões mais recorrentes, mas não existem informações consolidadas sobre o encaminhamento desses casos.

Essas “ilhas de informação” são comuns no Brasil quando se trata das investigações e acompanhamento de processos. Ainda mais porque, em se tratando de abuso infantil, o segredo de justiça protege a identidade dos menores. Além disso, o tipo de crime determina quais instituições lidarão com ele. Grosso modo, sem considerar as especificidades de cada caso, a Polícia Federal fica responsável por aqueles envolvendo transnacionalidade e compartilhamento de imagens, enquanto a posse de arquivos e o abuso sexual fica com a Polícia Civil. A partir daí, o encaminhamento pode ser feito na justiça federal ou estadual.

Segundo recomendação da CPI, aquele banco de dados nacional ficaria a cargo da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), ligada a esse mesmo ministério. Já o levantamento estatístico dos processos judiciais seria responsabilidade da CNJ (Comissão Nacional da Justiça). Procurados, os dois órgãos não justificaram o não cumprimento dessas propostas.

“Não existe um canal único, um repositório onde essas informações possam ser cadastradas e buscadas. Isso atrapalha no estabelecimento de políticas públicas, de estratégias de investigação e de prioridades”, afirma Flúvio Cardinelle, delegado da Polícia Federal do Paraná, que também atua como professor de direito processual penal da PUC-PR e já respondeu pelo núcleo de repressão aos crimes cibernéticos da PF naquele mesmo estado. “Eventualmente podemos dar início a uma investigação que está avançada em outro lugar ou vice-versa. Alguém está engatinhando, enquanto o outro já pediu o mandado de busca e apreensão.” 

Cardinelle dá o exemplo de um único site que recebeu mais de 70 mil denúncias ligadas ao abuso sexual infantil. “Ficamos sabendo de tantas notificações por acaso, ao contatarmos um órgão central em Brasília.” Ele explica que pode ser recorrente o fato de diferentes órgãos investigarem denúncias equivalentes. “Na PF temos bases que concentram informações. No entanto, elas não conversam com a polícia civil, com a militar, com a guarda municipal. Uma integração nesse sentido certamente aumentaria a efetividade das investigações.”

Profissionais ouvidos pela reportagem também disseram se comunicar com colegas, sejam de suas ou de outras instituições, muitas vezes usando grupos de WhatsApp. 

O compartilhamento de informações funciona como um grande quebra-cabeça. Talvez alguém já tenha avançado para além daquele ponto ou feito outro caminho. Ao juntar esses dados, chegamos eventualmente à responsabilização pelos crimes
Flúvio Cardinelle, delegado da Polícia Federal do Paraná

As opiniões do delegado são equivalentes ao que diz Ivana David, desembargadora da 4ª câmara criminal do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), no âmbito judicial. Em sua experiência de 28 anos como juíza, ela afirma que a quantidade de crimes sexuais contra crianças julgados atualmente é muito maior do que em um passado recente. Porém, diz que sem estatísticas não há como fazer uma avaliação objetiva nem pensar estratégias em relação à maneira como essa conduta vem sendo combatida no país.

“O Brasil não tem a cultura dos dados, e é claro que isso representa um problema. Deveria haver uma base para esse e outros tipos de crime, na qual as autoridades e polícias de todo o país tivessem uma senha. Quando alguém acessa é criado um registro e, se a informação vazar, foi ele que contou. Isso não é lógico? O que estamos pedindo não é um absurdo”, afirmou a desembargadora. “Por que nos Estados Unidos isso funciona? Porque lá o governo entende que é algo importante. Aqui parece que não.”

O TJ-SP registra que, somente na capital, há 1.256 inquéritos policiais para apurar a prática de estupro de vulnerável e 527 processos denunciados na Justiça pelo mesmo delito. Deste total, não há informação de quantos estão presos. 

A solução para consolidar os dados, criando um raio-X nacional da situação, passaria por algo na linha do Susp (Sistema Único da Segurança Pública), aprovado pelo Congresso também em maio, que prevê integrar a atuação dos órgãos de segurança pública de todas as 27 unidades federativas, além de unificar dados e inteligência do setor. A implementação tem um calendário longo, como foi com o SUS (Sistema Único de Saúde), sem previsão de quando começará a funcionar em sua totalidade.

O Ministério da Segurança Pública afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que "com a integração dos sistemas eletrônicos de boletins de ocorrência por meio do Sinesp [Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas Sinesp], qualquer tipo de crime poderá ser mapeado, inclusive os de violência sexual contra crianças e adolescentes". Aprovado em 2012 pelo Congresso, o Sinesp deve conectar-se ao Susp, mas também sem previsão.

Goncalves/Sigmapress/Folhapress

Flagrante seguido de liberdade

Como aconteceu com o “japonês do Pânico”, não é raro os acusados responderem em liberdade a processos associados à pornografia infantil. Isso porque grandes operações --como as duas versões da Luz na Infância, realizadas em outubro de 2017 e maio de 2018-- baseiam-se inicialmente no armazenamento de arquivos digitais. O flagrante aqui não é o abuso em si, mas sim a posse daquele conteúdo em algum dispositivo digital (na operação de maio, somente em São Paulo foram apreendidos e encaminhados para perícia mais de 2.600 notebooks, pen drives, CDs, DVDs e celulares).

No juridiquês, estamos falando do artigo 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, que a partir de 2008 passou a prever pena de um a quatro anos de reclusão, mais multa, a quem “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. Some a isso a lei 12.403 de 2011, que só determina prisão preventiva a crimes com pena maior ou igual a quatro anos, e a posse de pornografia infantil figura como um crime afiançável.

Não há, portanto, ilegalidade no fato de alguém ser detido em flagrante com imagens de pornografia infantil, pagar fiança e responder ao processo em liberdade.

Na Luz da Infância 2, São Paulo e Rio de Janeiro foram os dois estados com maior número de detidos: 78 e 26, respectivamente. Procurada, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) não informou quantas pessoas cumprem pena no estado de São Paulo por crimes sexuais. Já a Seap (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), no Rio, disse haver em suas unidades prisionais oito pessoas em todo o estado condenadas por abuso sexual contra crianças e adolescentes.

Diego Nigro/JC/FolhaPress

Até onde vão as investigações?

Thiago Tavares, presidente da Safernet (associação para promoção e defesa dos direitos humanos na internet do Brasil), considera bastante completa a lei sancionada em 2008, da qual faz parte o mencionado artigo 241-B. “Ela tipifica dezenas de condutas, praticamente nada escapa. As penas são significativas e também cumulativas: aqueles que registrarem, armazenarem e também compartilharem esse tipo de conteúdo terão penas somadas que variam de oito a 18 anos. Isso sem considerar o próprio abuso”, afirma o advogado.

Apesar disso, ele critica a forma como as investigações podem ser feitas. “O problema está em focar na posse, que é o mais fácil: pega a imagem, lavra a prisão em flagrante, faz a denúncia pelo crime de armazenamento. Muitas vezes a investigação encerra nesta primeira fase”, afirma Tavares, responsável pela associação que recebe e encaminha denúncias de crimes praticados pela internet. Em 12 anos, foram mais de 1,55 milhão de notificações anônimas sobre pornografia infantil (39,5% do total no mesmo período).

Se as investigações não se aprofundam, o acusado sai após o flagrante. É preciso ir além, encontrar quem compartilhou e quem produziu o conteúdo. Nesses casos mais completos, a lei é suficiente para sentenças que passam de 90 anos 
Thiago Tavares, presidente da Safernet

Na condição de anonimato, um policial civil afirmou que, se as investigações não seguem adiante, muitas vezes é por falta de recursos --principalmente humanos. “Faltam profissionais para investigar tantos casos, faltam computadores potentes, falta tudo. Mas há um esforço real, dentro dessas limitações, no combate a esse tipo de crime. A descoberta desse material armazenado representa apenas a ponta do iceberg.” A desembargadora Ivana David faz coro: “Falta estrutura de investigação na segurança pública, e a polícia civil está desmontada. O combate a esses crimes melhorou, mas o ideal está distante”.

Alessandro Barreto, coordenador do Laboratório de Inteligência Cibernética do Ministério da Segurança Pública, órgão que coordenou as duas operações Luz na Infância, rebate as críticas sobre a pontualidade das investigações. “Nosso foco vai longe, o mais importante é identificar essas crianças e retirá-las desse cenário de abuso e de exploração. Nas duas fases da operação Luz na Infância, identificamos o armazenamento, o compartilhamento e a produção de conteúdo impróprio”, afirmou o especialista, para quem esse tipo de ação deve ser contínua. “Qual a melhor operação contra abuso sexual infantil? É sempre a próxima, estamos focados no que vem a seguir.”

Tavares classifica como o mais grave entre esses delitos a produção de imagens, pois o criminoso tem acesso direto a um menor abusado (a pena é de quatro a oito anos de reclusão para quem produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente). “Essa é a pessoa que alimenta toda uma cadeia, gerando mais vítimas”, resume.

Marcelo Chello/CJPress/Folhapress

Internet para o bem e para o mal

Sobre o aumento no número de denúncias, Ivana David afirma que a sociedade aprendeu qual o caminho para fazê-las. “O mundo mudou, a sociedade ganhou uma voz que não tinha antes. As pessoas se informam mesmo sem ter dinheiro para comprar o jornal, interagem com a notícia. Há mecanismos que permitem denunciar, fazer B.O. [boletim de ocorrência] online, o disque-denúncia. Essa liquidez de informação ensinou ao jovem, à geração T.I. [tecnologia da informação], que a vítima de abuso sexual tem que falar, sim. Não é para ter vergonha.”

Mesmo quando não há denúncias, ela continua, a tecnologia pode colocar luz sobre o crime “invisível” --como quando policiais participam de infiltrações virtuais, de acordo com a lei 13.441 de 20017, para investigar crimes sexuais contra menores de idade. 

É muito comum tentarem demonizar a internet, como se ela tivesse criado o abuso sexual de crianças. A internet é só um meio. Se por um lado facilitou o contato entre pedófilos e vítimas, para a polícia facilitou a investigação. Não há dúvidas que hoje descobrimos muito mais casos por causa da internet
Valdemar Latance Neto, delegado da Polícia Federal

Neste meio que parece garantir o anonimato, mas pelo qual todos os usuários deixam rastros, são hoje muitas as regulamentações e as ferramentas para se chegar até um suspeito --ao contrário do que acontecia há cerca de uma década, quando as próprias empresas de tecnologia serviam de obstáculo para as investigações. Estamos falando, por exemplo, de infiltrações virtuais, de softwares que identificam automaticamente pornografia infantil, do monitoramento do conteúdo baixado e visualizado por suspeitos, do afastamento de sigilo nas trocas de mensagens privadas.

Foi via acesso a uma dessas mensagens que Valdemar Latance Neto, delegado de Polícia Federal, leu uma conversa que dificilmente esquecerá. Quando cuidava da unidade de inteligência da delegacia da PF em Sorocaba (SP), um suspeito perguntou a outro que pomada deveria usar em uma criança abusada. O interlocutor deu a dica e o alertou para ter cuidado, pois o pediatra poderia desconfiar de algo. Nisso o primeiro homem respondeu que era apenas um plano do que viria a fazer, pois sua mulher ainda estava grávida de oito meses.

“Houve muita especialização nos últimos anos nessa área. As investigações são técnicas, precisamos entender sobre tecnologia. E também saber lidar com o frequente contato com esses arquivos e informações. Posso dizer tranquilamente, por experiência própria, que não é fácil. Tem imagens que me assombram até hoje”, diz o delegado.

Denúncias de pornografia infantil na internet podem ser feitas no site da Safernet, que analisa as informações e as encaminha para as autoridades competentes. Pelo telefone, a opção para crimes sexuais contra crianças e adolescentes é o Disque 100, ligado ao Ministério dos Direitos Humanos. Na página da ONG Childhood Brasil, há o contato de diversas instituições que podem ser acionadas por aqueles à procura de atendimento.

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