Crédito a quem explora

Sem punição, bancos violam norma e emprestam dinheiro a fazendeiros da 'lista suja' do trabalho escravo

Leandro Prazeres Do UOL, em Brasília
Arte/UOL
Kleyton Amorim/UOL Kleyton Amorim/UOL

Instituições financeiras brasileiras ignoraram uma resolução do Banco Central e repassaram R$ 3,6 milhões a fazendeiros condenados por utilizar mão de obra escrava. 

A constatação é resultado de uma investigação realizada pelo UOL ao longo de dois meses com base em dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e documentos inéditos. Entre as instituições que violaram a norma do CMN estão cooperativas de crédito, bancos privados e até o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). 

Esse valor, no entanto, pode ser maior porque os bancos que operam essas linhas de crédito, com exceção do BNDES, não têm a obrigação de divulgar os dados de suas operações. 

Entre 2000 e 2016, 48,8 mil pessoas em condição análoga à escravidão foram resgatadas por fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). 

Os elementos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão são condições degradantes de trabalho (violações à dignidade humana do trabalhador e riscos à sua saúde e vida), jornada exaustiva, trabalho forçado, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas ou psicológicas e servidão por dívida. 

Desde o início dos anos 2000, uma das principais preocupações dos órgãos e entidades dedicados à erradicação do trabalho escravo tem sido estancar o fluxo de recursos financeiros a empregadores que utilizam esse tipo de mão de obra. 

Em 2010, a resolução do Banco Central nº 3.876 proibiu que bancos públicos ou privados concedessem crédito rural a empregadores que constem no cadastro de pessoas e empresas condenadas administrativamente por utilizar mão de obra escrava. 

O cadastro, também conhecido como "lista suja do trabalho escravo", é uma relação com os nomes das pessoas físicas e jurídicas condenadas administrativamente em caráter final por utilizarem mão de obra em situação análoga à escravidão. 

Pressionado por um inquérito aberto pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), o Banco Central começou a fiscalizar o cumprimento da resolução em 2012, dois anos depois de ela entrar em vigor. A pedido dos procuradores, o BC elaborou um primeiro relatório que identificou nada menos que 24 operações suspeitas de terem violado a resolução. A resolução do CMN, contudo, não estipula punições.

Rogério Cassimiro/Folhapress Rogério Cassimiro/Folhapress

À reportagem, o banco revelou que, das 24 operações suspeitas, 14 efetivamente violaram a norma que proibia as instituições financeiras de conceder empréstimos rurais a empregadores que estivessem na lista suja do trabalho escravo. Somadas, essas operações envolvem R$ 2,4 milhões. Outras dez operações foram avaliadas regulares pelo BC.

UOL obteve uma cópia da relação das 24 operações consideradas suspeitas. Essa lista contém os nomes dos bancos, o CPF dos tomadores de empréstimos, a data em que a transação foi liberada, o valor dos contratos e a fonte dos recursos. 

Apesar de ser extremamente detalhada, não é possível divulgar suas informações na íntegra porque o BC não revelou quais foram as 14 operações que violaram a norma alegando respeito ao sigilo bancário. Mesmo assim, a reportagem conseguiu dados sobre duas dessas operações irregulares. Elas beneficiaram dois irmãos que atuam no ramo da produção de café no interior do Espírito Santo.  

BC identifica irregularidades, mas não pune bancos

O coordenador do Grupo de Trabalho de Instrumentos Econômicos e Governança do MPT (Ministério Público do Trabalho), Rafael Gomes, criticou as medidas tomadas pelo Banco Central em relação aos bancos que financiaram empregadores que constavam na lista suja do trabalho escravo. 

O Banco Central alega ter feito a "desclassificação" das 14 operações consideradas irregulares. Essa medida implica aumento dos encargos financeiros ao tomador do financiamento. Na maior parte dos casos, o financiamento rural é feito com taxas mais baixas que a de mercado. Apesar da desclassificação das operações, nenhum banco foi punido

A resolução do CMN que veda os financiamentos não estipula as punições a que as instituições que violaram a norma estão sujeitas.

Mesmo assim, Gomes diz que a "desclassificação" equivale a "revogar" a resolução que proíbe empréstimos rurais a quem está na lista suja. 

"Essa notícia é novidade para nós. Temos muitas dúvidas em relação à legalidade e à probidade desse comportamento. Essa prática representa o mesmo que revogar a resolução que proíbe esses empréstimos", afirmou.

O Banco Central, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que a "desclassificação [das operações de crédito] é um processo obrigatório [...] caso sejam constatadas irregularidades". 

Com relação ao fato de que nenhum banco foi penalizado por violar a resolução nº 3.876/2010, o BC disse que a decisão da instituição "quanto à aplicação de penalidade em instituição financeira é discricionária, segundo o nível de gravidade" e que os casos detectados pela instituição "não foram graves o suficiente para que fosse aberto processo administrativo visando a aplicação de penalidades nas instituições financeiras". 

Rafael Gomes disse que a medida tomada pelo Banco Central foi "insólita". "É insólito que um órgão de fiscalização, diante da constatação de que uma norma foi violada, em vez de buscar a responsabilização, oferece a opção de reclassificar uma operação como se fosse voltar no tempo", disse Gomes. 

Lunaé Parracho/Repórter Brasil Lunaé Parracho/Repórter Brasil

Irmãos entram na lista suja e conseguem empréstimo

As duas operações irregulares sobre as quais o UOL teve acesso aconteceram em 2010. No início daquele ano, três trabalhadores rurais oriundos da Bahia conseguiram fugir de uma fazenda na região cafeeira do Espírito Santo e reportaram às autoridades baianas que outros colegas estavam sendo submetidos à situação análoga à escravidão no Estado vizinho. 

A denúncia feita pelo trio deu origem a uma série de fiscalizações e ao resgate de dezenas de trabalhadores em situação similar. 

Uma delas aconteceu no dia 12 de maio de 2010. Naquele dia, fiscais do MTE chegaram à fazenda Barra Seca, no município de Jaguaré, interior do Espírito Santo. A fazenda, segundo os autos de infração lavrados pelo ministério, era de propriedade dos irmãos Luiz Carlos e Osmar Brioschi. À época, Luiz Carlos era secretário municipal de Agricultura de Jaguaré.

Lá, os fiscais encontraram 20 trabalhadores rurais submetidos à situação análoga à escravidão. Entre as irregularidades encontradas por eles estava o fato de que as carteiras de trabalho haviam sido retidas pelos empregadores, prática comumente adotada nesse tipo de caso para impedir que o empregado deixe a fazenda. 

Ainda segundo os fiscais, os trabalhadores, oriundos do interior da Bahia, teriam sido obrigados a pagar por uma compra inicial de alimentos feita pelo empregador e pelas passagens de ida até o Espírito Santo, o que é conhecido na legislação como "servidão por dívida"

Ao encontrarem os fiscais, os trabalhadores insistiram para que eles também fiscalizassem o alojamento em que eram mantidos. Chegando lá, encontraram o grupo alojado em duas casas na zona urbana de Jaguaré. As duas casas estavam em "ruínas"

"Faltavam portas, havia apenas um banheiro para todas as pessoas [e havia] alimentos jogados pelo chão", disse um dos fiscais.

Os irmãos recorreram das infrações aplicadas pelo MTE alegando que jamais utilizaram mão de obra escrava em sua propriedade. Os recursos, porém, foram negados e, no dia 30 de dezembro de 2011, seus nomes foram formalmente incluídos na chamada lista suja do trabalho escravo. 

Menos de um mês depois, porém, contrariando as regras do Banco Central, Osmar e Luiz Carlos conseguiram dois empréstimos totalizando R$ 60 mil. O dinheiro saiu de duas linhas de crédito diferentes e foi liberado pela cooperativa CCLA Leste Capixaba, uma instituição financeira ligada ao Sicoob. 

Procurada, a CCLA Capixaba disse que foi comunicada pelo Banco Central sobre as operações envolvendo os irmãos Brioschi em agosto de 2012, um ano e meio depois da liberação do empréstimo. A instituição disse que fez a liquidação imediata dos empréstimos e que comunicou as providências ao BC. 

Segundo a CCLA Capixaba, os empréstimos foram concedidos porque a análise de crédito dos irmãos Brioschi foi feita dias antes da inclusão dos seus nomes na lista suja do trabalho escravo. 

"O fato foi ocasionado em função de a análise do crédito ter sido realizada nos primeiros dias de dezembro de 2011 [...] durante o processo de contratação, houve a inclusão dos nomes na lista [...] quando o crédito foi liberado, em janeiro de 2012, não foi realizada nova análise. Atualmente, a lista é verificada novamente nesta etapa", disse o banco. 

Procurado, Osmar Brioschi disse por telefone que não iria comentar o assunto. A reportagem tentou, entre os dias 28 de abril e 2 de maio, contatar por telefone Luiz Carlos Brioschi, mas as ligações não foram atendidas. 

O advogado dos irmãos Brioschi, Geovalte Lopes de Freitas, afirmou que os dois não violaram a legislação trabalhista e que as denúncias que levaram à autuação feita pelo MTE tiveram motivações políticas. "O Luiz Carlos tinha um cargo público na época. Quem fez essa denúncia era adversário político. Eles jamais usaram mão de obra escrava", disse. 

As infrações registradas pelos fiscais deram origem a um processo criminal que tramita na Justiça Federal do Espírito Santo. Em primeira instância, Osmar foi condenado a três anos de prisão, pena revertida em prestação de serviços à comunidade e pagamento de multa. Mesmo assim, sua defesa recorreu. O caso tramita agora na segunda instância da Justiça Federal capixaba.

Bancos conseguem brecha para empréstimos

No dia 19 de julho de 2016, o fazendeiro Fausto Scholl, de Mato Grosso, recebeu uma boa notícia. O financiamento que ele tentava obter junto ao banco CNH Industrial para compra de maquinário agrícola havia sido finalmente liberado. 

Ao todo, foram R$ 540 mil em recursos oriundos do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). 

O que faz o financiamento autorizado pelos dois bancos tão especial é que, quatro meses antes, Fausto havia entrado para um "clube" inglório: o dos empregadores condenados por utilizar mão de obra em condição análoga à escravidão. 

Cruzando dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação e o cadastro de operações de crédito do BNDES, a reportagem do UOL identificou que os fazendeiros Fausto Scholl e Edílio Peron Ferrari conseguiram financiamentos rurais depois de terem sido condenados administrativamente pelo MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) por uso de mão de obra escrava em suas propriedades, o que, desde 2010, seria suficiente para impedi-los de acessar esse tipo de crédito. No entanto, em meio a um limbo jurídico que durou quase dois anos e meio, apesar de condenados, eles conseguiram seus financiamentos.

Entre 2003 e dezembro de 2014, o MTE publicou um cadastro de empregadores condenados administrativamente por utilização de mão de obra análoga à escravidão. Esse cadastro ficou conhecido como "lista suja do trabalho escravo", que era atualizada a cada seis meses. Para entrar nela, era preciso que todos os recursos administrativos contestando os autos de infração tivessem transitado em julgado (sem possibilidade de recurso) no ministério. 

Ao longo de quase 11 anos, a lista se transformou em uma referência internacional reconhecida por entidades como a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Com base nela, o Banco Central emitiu a resolução 3.876, de 2010, que proibia instituições financeiras de conceder empréstimos rurais a empregadores que tivessem seus nomes na lista. 

Jefferson Rudy/Agência Senado Jefferson Rudy/Agência Senado

Liminar do STF suspendeu lista

O "limbo jurídico" que embaralhou as cartas do combate ao financiamento do trabalho escravo começou no dia 23 de dezembro de 2014. Às vésperas do Natal, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar em favor de uma associação que congrega incorporadoras imobiliárias e determinou a suspensão da divulgação da lista

O ministro entendeu que a lista, instituída por meio de uma portaria interministerial, precisava ser implementada por uma lei. Além disso, ele argumentou que divulgação dela, feita unilateralmente, não garantia o direito à ampla defesa e ao contraditório aos empregadores.

A suspensão da divulgação da lista causou uma enxurrada de críticas de movimentos sociais e fez com que o caso fosse levado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

A lista só foi novamente publicada em março de 2017 após uma longa batalha jurídica entre o MPT (Ministério Público do Trabalho), que exigia a sua publicação imediata, e o governo federal, que pedia mais tempo para que um grupo de trabalho sobre o assunto finalizasse suas atividades. 

O problema é que, entre dezembro de 2014 e março de 2017, os bancos não tinham mais a lista publicada ativamente pelo MTE para consultar antes de concederem empréstimos rurais. Isso abriu uma "avenida" para que financiamentos rurais pudessem ser concedidos para empregadores ligados ao trabalho escravo.

Foi nesse vácuo que Fausto Scholl, de Mato Grosso, e Edílio Peron Ferrari, fazendeiro de Paracatu, no interior de Minas Gerais, conseguiram financiamentos que, somados, chegam a R$ 1,2 milhão.

Autuações e recursos

Scholl foi autuado por fiscais do MTE no dia 16 de dezembro de 2015 por manter três trabalhadores em situação análoga à escravidão em sua fazenda localizada no pequeno distrito de Salto da Alegria, no município de Paranatinga, no interior de Mato Grosso. 

Ele recorreu administrativamente das autuações, mas não obteve sucesso. No dia 25 de março de 2016, foi condenado administrativamente em caráter final, o que seria suficiente para incluí-lo na chamada lista suja e impedi-lo de conseguir financiamentos rurais. Isso se a lista estivesse sendo publicada. 

Quatro meses depois, no dia 19 de julho de 2016, o CNH Industrial Capital e o BNDES liberaram R$ 540 mil em financiamento agrícola. Seu advogado, Abel Sguarezi, nega que seu cliente tenha utilizado mão de obra escrava em sua fazenda. 

"Meu cliente nunca utilizou esse tipo de prática em seus negócios. Nós recorremos dos autos e conseguimos uma liminar na Justiça para que ele não tivesse seu nome incluído nessas listas", afirmou Sguarezi. De fato, em dezembro de 2016, a Justiça do Trabalho concedeu uma liminar em seu favor anulando os autos de infração contra Scholl. O mérito do caso, no entanto, ainda não foi julgado.

Alejandro Arigón/IPS Alejandro Arigón/IPS

Banheiro no mato, água suja e noite ao relento

Algo parecido aconteceu com Edílio Peron Ferrari. Em março de 2011, fiscais do Trabalho chegaram às fazendas Giramundo e Guariroba, na região conhecida como Barra da Égua, no município de Paracatu, em Minas Gerais. Lá, os fiscais encontraram 14 trabalhadores atuando na limpeza da área que seria utilizada para o plantio e também na produção de carvão vegetal, atividade comum no noroeste mineiro. 

Os fiscais constataram que as condições de trabalho na fazenda violavam a legislação trabalhista. Entre as irregularidades estavam a falta de banheiros no local do trabalho e ausência de equipamentos de proteção individual. Os trabalhadores tinham que ir ao mato para fazer suas necessidades fisiológicas. 

Um dos resgatados contou aos fiscais que a água dada pelo fazendeiro aos empregados vinha de um córrego, sem tratamento, e que o alojamento disponibilizado era tão precário que eles dormiam "ao relento", expostos à chuva, a picadas de insetos e a outros animais peçonhentos.

A tramitação do auto de infração se arrastou por quase quatro anos e somente no dia 16 de março de 2015 é que o último recurso administrativo movido por Ferrari foi condenado em caráter final. Se à época a lista estivesse sendo regularmente publicada, seu nome estaria nela.

Nove meses depois de ser condenado pelo MTE, Ferrari conseguiu um financiamento de R$ 662,2 mil junto ao CNH Industrial (mesmo banco de Fausto Scholl), com recursos oriundos do Finame Agrícola, uma linha de crédito operada pelo BNDES. 

O advogado de Ferrari, Nelson Buganza Júnior, também negou que seu cliente tenha usado mão de obra escrava em suas propriedades e disse que também moveu ações na Justiça para retirar o nome de Ferrari da lista suja. "Meu cliente é inocente. Isso causou muita comoção e afetou muito a vida dele. Já ingressamos na Justiça contra isso, mas o caso ainda não foi julgado", afirmou Buganza. 

Em março deste ano, o nome de Ferrari apareceu na versão da lista suja do trabalho escravo publicada pelo MTE.

BNDES vai pedir apuração dos casos

Procurado pela reportagem, o BNDES disse que as operações identificadas pelo UOL são do tipo "indiretas automáticas". 

Nesse tipo de crédito, bancos credenciados junto ao BNDES é que ficam encarregados de analisar a documentação e fazer a contratação do empréstimo. 

Mesmo assim, o BNDES disse que vai procurar o banco CNH Industrial (que concedeu os empréstimos para Fausto Scholl e Edílio Ferrari) para obter informações sobre o caso. 

"O BNDES fixará prazo para que os agentes financeiros que contrataram as operações em questão realizem apuração sobre a eventual ocorrência das irregularidades, com o que poderá avaliar as medidas legais e/ou administrativas a serem tomadas", disse o banco por meio de sua assessoria de imprensa. 

Questionado sobre os dois financiamentos, o CNH Industrial Capital, também por sua assessoria, disse que "repudia qualquer forma de trabalho escravo ou exploração infantil e atua no mercado com estrita observância às leis vigentes e às normas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e BNDES".

Interromper as fontes de financiamento para empregadores condenados por trabalho escravo é fundamental para erradicar esse problema. É preciso proibir qualquer tipo de financiamento a empregadores flagrados na lista

Rafael Gomes, procurador

A Resolução 3.876/2010 sempre esteve em vigor, portanto as instituições financeiras nunca foram desobrigadas de cumpri-la. Ocorre que, durante o período em que a lista esteve suspensa, o normativo perdeu sua eficácia

Banco Central

Os danos da suspensão da lista

Os danos causados pela interrupção na publicação da lista suja do trabalho escravo só começaram a ser observados mais recentemente. 

"A suspensão da lista criou esse problema. Alguns bancos podem argumentar que, na medida em que a lista não estava mais sendo publicada, eles não tinham a obrigação de consultá-la", afirmou o procurador e coordenador do Grupo de Trabalho Instrumentos Econômicos e Governança do MPT, Rafael Gomes. O grupo coordenado por ele investiga como atores econômicos e governamentais podem combater ou incentivar o trabalho escravo. 

É esse, aliás, o entendimento do próprio Banco Central, responsável por fiscalizar a resolução 3.876, que proíbe instituições financeiras de concederem empréstimos rurais a empregadores que tenham seus nomes na lista suja. 

Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, o Banco Central tenta explicar o imbróglio. 

"A Resolução 3.876/2010 sempre esteve em vigor, portanto as instituições financeiras nunca foram desobrigadas de cumpri-la. Ocorre que, durante o período em que a lista esteve suspensa, o normativo perdeu sua eficácia", disse o BC. 

O procurador Rafael Gomes diz, no entanto, que, apesar de a lista não ter sido mais publicada pelo MTE, era possível obter as informações dela junto ao órgão por meio da Lei de Acesso à Informação. A medida foi tomada por ONGs que atuam no combate ao trabalho escravo como a Repórter Brasil e instituições financeiras como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Itaú, além de bancos internacionais, como o Rabobank, da Holanda. 

Durante a suspensão da divulgação da lista, o blog do Sakamoto, no UOL, divulgava a lista atualizada de condenações por trabalho escravo em caráter final por trabalho escravo com base em dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação. 

"Quem quisesse ter acesso aos dados era só fazer um pedido. Mas, na prática, a suspensão da lista causou um dano enorme", diz o procurador. 

 

Disputa emperra investigação por cinco anos

Tudo começou em 2012. Dois anos depois de o CMN (Conselho Monetário Nacional) emitir a resolução 3.876, que proibia bancos de concederem empréstimos rurais a empregadores condenados por trabalho escravo, o MPT (Ministério Público do Trabalho) iniciou uma investigação para saber se a norma estava sendo cumprida. 

Iniciou-se ali uma troca de ofícios e uma batalha judicial que só terminou em fevereiro deste ano, cinco anos depois. 

Em julho de 2012, os procuradores questionaram o BC sobre como ele fiscalizava a aplicação da medida e pediram informações sobre possíveis operações que teriam violado a norma. 

Após a insistência dos procuradores, em outubro de 2012, o BC informou ter encontrado indícios de irregularidades em 24 operações envolvendo 11 instituições financeiras. O BC, no entanto, só repassou informações a respeito de dez delas sob o argumento de que essas teriam utilizado, de forma direta ou indireta, recursos públicos. As outras 14 operações, no entanto, continuariam sob sigilo.

O MPT voltou a pedir acesso às informações de todas as operações. 

"Era absolutamente importante para nós ter acesso a essas operações para que pudéssemos investigar os casos. Interromper as fontes de financiamento para empregadores condenados por trabalho escravo é fundamental para erradicar esse problema", disse o procurador Rafael Gomes, que deu início a uma ação civil pública contra o Banco Central. 

De um lado, o MPT pedia acesso a todas as informações coletadas pelo Banco Central sobre as operações supostamente irregulares. De outro, o BC alegava que só poderia repassar essas informações mediante uma decisão judicial

Em fevereiro deste ano, a Justiça do Trabalho finalmente decidiu em favor do MPT e determinou que o Banco Central fornecesse as informações completas sobre as 24 operações suspeitas. Só agora, cinco anos depois do início das investigações, é que os procuradores poderão apurar o caso integralmente.

"O prejuízo para as nossas investigações foi enorme. Temos um inquérito que está parado e que precisa ser renovado de ano em ano. Depois de tantos anos, é previsível que teremos dificuldades em obter as provas que buscávamos. Realmente, foram cinco anos de embaraço e dificuldade. Há bancos grandes envolvidos e o caso precisa ser investigado", afirmou Gomes. 

O Banco Central, por sua vez, se defende, por meio de sua assessoria de imprensa, dizendo que "a ação civil do Ministério Público do Trabalho de Araraquara visava a obtenção de dados protegidos pelo sigilo bancário, informação que legalmente somente poderia ser fornecida com a devida autorização judicial".

Combate ao financiamento deve ser prioridade

A revelação de que, apesar da proibição prevista pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), empregadores condenados por trabalho escravo continuaram a receber financiamento público mostra que o caminho para a erradicação desse crime ainda é longo. A constatação é do coordenador da Campanha Nacional contra o Trabalho Escravo da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Xavier Plassat. 

Segundo ele, os casos precisam ser investigados. "É preciso que seja feita uma investigação detalhada sobre o que está acontecendo. Não é possível que o Estado seja tão incoerente ao ponto de gastar recursos para combater o trabalho escravo de um lado e continuar financiando empregadores condenados por isso de outro", afirmou. 

Plassat diz que a preocupação com o financiamento do trabalho escravo surgiu no final dos anos 90 quando fiscais do MTE faziam operações em fazendas e se deparavam com placas informando que aquela propriedade havia recebido financiamentos públicos. 

"Essa questão nasce desde os primórdios da atuação dos grupos móveis de combate ao trabalho escravo. Era muito frequente entrar em uma fazenda no interior e ver aquelas placas dizendo algo como: 'O Estado está investindo aqui'", conta. 

Plassat defende que a resolução 3.876/2010, do CMN (Conselho Monetário Nacional), seja revisada e não se limite apenas ao crédito rural. A resolução prevê que bancos não podem conceder financiamento rural para empregadores que estejam na lista suja do trabalho escravo. Plassat sustenta que a resolução não se limite ao crédito rural. 

"Não faz sentido vedar apenas o financiamento rural. Também temos muitos casos de trabalho escravo em atividades urbanas. É preciso proibir qualquer tipo de financiamento a empregadores flagrados na lista, não apenas o rural."

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