Apartheid da violência

Negro tem 17 vezes mais chance de ser assassinado em Alagoas do que branco, maior diferença racial do país

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Maceió
Beto Macário/UOL

Maceió, noite de 24 de maio de 2018. Enquanto na badalada região de Ponta Verde moradores brancos fazem caminhadas ao lado de turistas pelo calçadão sob a segurança de policiais, dois jovens negros são mortos nos bairros mais violentos da periferia. E.S.S., 22, foi assassinado a tiros no Vergel do Lago, a 7 km da orla. A 16 km dali, no bairro do Benedito Bentes, a vítima foi J.S., 22, morto durante uma operação policial.

Apesar de ser um berço da resistência negra no país, com a luta de Zumbi no Quilombo dos Palmares, no século 17, Alagoas ainda vive um "apartheid" que separa a realidade entre os homicídios de negros e brancos no estado.

Pior ainda: em mais de dez anos, somente cresceu a diferença entre as raças com relação ao risco de ser morto.

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Segundo o Atlas da Violência (levantamento feito a partir de dados do DataSUS, do Ministério da Saúde) divulgado neste ano, em 2016 (dado mais recente disponível), Alagoas tem a menor taxa de assassinatos de brancos do país. O estado registrou a menor taxa de homicídios em 11 anos para um determinado grupo racial: 4,1 homicídios por 100 mil habitantes não negros (que inclui brancos, amarelos e indígenas). Essa taxa equivale à dos Estados Unidos, um país considerado de baixa letalidade.

Já entre os negros (dado que inclui pardos e pretos, conforme designação do IBGE), essa taxa foi de 69,7 por 100 mil, a terceira maior naquele ano --atrás apenas de Sergipe e Rio Grande do Norte. O índice é maior do que o de El Salvador, um dos países mais violentos do mundo e que registrou taxa de 60,9 assassinatos por 100 mil habitantes no ano passado. Em Alagoas, segundo o Censo, 66,8% da população é preta ou parda.

Pelo menos nos 11 anos de análises feitas pelo Atlas, nunca um estado teve tamanha diferença entre as taxas de assassinatos entre pessoas brancas e negras. Em 2016, proporcionalmente, para cada branco morto violentamente, 17 negros foram assassinados em Alagoas.

Para dar a ideia da desproporção da realidade de Alagoas, o segundo colocado com maior diferença entre taxas de brancos e negros assassinados é a Paraíba: a chance de um negro ser morto é oito vezes maior do que a de um branco. Em seguida veio o Amapá, com diferença de 7,6 vezes.

O Estado diz que a violência diminuiu, não contesto isso. Mas os 'poucos' que morrem somos nós, os negros

Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas

Taxa de homicídios em dez anos

Arte/UOL

O extermínio de negros, especialmente os jovens, não é uma novidade no estado e tem crescido ao longo dos anos.

Entre 2006 e 2016, o número de homicídios de brancos em Alagoas caiu 33,7%, enquanto o de negros subiu 29,4%. Nesse mesmo período, somando todas as mortes violentas, Alagoas teve alta de 2% no total de homicídios. Já considerando apenas os anos entre 2011 e 2016, houve redução das mortes em 24%.

"O Estado diz que a violência diminuiu, não contesto isso. Mas os 'poucos' que morrem somos nós, os negros. A política de segurança que está salvando a vida dos brancos em Alagoas não nos ajuda, porque nos estigmatiza e naturaliza nossas mortes", afirma Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas. "É preciso um tratamento de choque, que o governo perceba que toda uma geração está sendo morta."

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Histórias de dor (e temor)

Não é difícil encontrar relatos de negros mortos em Alagoas. Mais complicado é que as famílias queiram aparecer.

Em geral, dizem que têm medo de retaliações, da polícia ou de traficantes que comandam a venda de drogas em bairros periféricos. 

"A gente prefere deixar isso pra lá, ainda dói em nós e temos medo, não sabemos quem matou ele", conta a irmã de um jovem negro de 20 anos morto em 2016 no bairro do Clima Bom, em Maceió.

"A dor ainda é muito grande, não sabemos quem matou, não quero aparecer, nem que o nome dele apareça. Desculpa", diz, emocionada, a mãe de outro jovem, de 19 anos, morto no bairro do Jacintinho, em fevereiro.

Um dos poucos que aceitaram falar e mostrar o rosto foi o jornalista Railton da Silva (na imagem acima), 31, que teve o irmão Robson assassinado com cinco tiros, no dia 19 de janeiro. "O corpo dele foi encontrado dois dias depois na lagoa Mundaú. Uma vizinha viu uma reportagem em um site e nos avisou que se tratava dele", conta Railton.

O jornalista conta que o irmão tinha um carrinho de pipoca e convivia com o problema de esquizofrenia, mas era tratado por psiquiatra e psicólogo.

Alguns meses antes de ser morto, Railton diz que Robson (em imagem de arquivo abaixo) deixou de tomar os remédios controlados. A família tem poucas informações sobre o uso de drogas dele, mas afirma que a morte pode ter relação com o tema.

"A gente nunca foi atrás para saber quem o matou e por qual o motivo. A polícia chegou a prender um traficante da área em março, mas soubemos que a denúncia contra ele foi feita por tráfico, não por assassinato", relata.

A gente prefere deixar isso pra lá, ainda dói em nós e temos medo, não sabemos quem matou ele

Irmã de um jovem negro de 20 anos morto em Maceió

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

O presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Social da OAB-AL (Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas), Alberto Jorge Santos, afirma que o extermínio de negros no estado é um tema debatido há tempos.

Em 2015, foi lançado o projeto Juventude Viva. "Éramos o estado com o maior número de assassinatos de jovens negros do Brasil, e o governo federal viu e lançou o plano aqui", lembra.

Santos conta, porém, que não houve um resultado efetivo na redução desses crimes, devido à exclusão social. "Foi fácil perceber o problema pela localização dos negros. Onde eles estão? Estão fora do mercado de trabalho e educacional e vivendo nas favelas em situação desumana. Sobra então para essa juventude o mundo das drogas, seja através de roubo, seja através do tráfico", diz.

O advogado afirma que a maioria das mortes de negros são relacionadas a um "acerto de contas" no próprio mundo do crime, por isso quase nunca há investigação.

"E muitas vezes a polícia os mata e coloca que a vítima atentou contra policiais. Existe então uma série de coisas que nós não aceitamos. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas pelo poder público."

Sobra para essa juventude [negra] o mundo das drogas, seja através de roubo, seja através do tráfico

Alberto Jorge Santos, presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Social da OAB-AL

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Racismo se reflete em mais violência

Para o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Daniel Cerqueira, que coordenou esta edição do Atlas da Violência, o racismo no Brasil se apresenta de várias formas, entre elas a violência.

Para ele, cada estado apresentou um comportamento variado para as crescentes taxas de homicídios.

"Um outro ponto é a diferença da posição social do negro na sociedade: eles foram largados à própria sorte na abolição. Eles são super-representados nas camadas mais pobres e sub-representados nas mais ricas. Como é mais pobre, fica mais vulnerável", explica.

Outro problema é a discriminação pela cor da pele. Para Cerqueira, ela está caracterizado, por exemplo, na questão da atuação do Estado na área de segurança.

"Existe um ditado bem conhecido nas polícias de que preto parado é suspeito e preto correndo é bandido. Isso quer dizer que o uso da força contra o negro vai ser sempre maior. Um branco morrendo numa rua nobre da cidade vai virar manchete dos jornais, a polícia vai achar o criminoso e prender. Se for um negro morto na periferia de uma grande cidade, não é mais nem notícia; se virar notícia, a sociedade vai dizer que ele estava envolvido com drogas e há uma naturalização com esse veredito da sociedade. É a cultura arcaica de país de dois andares", afirma.

Ainda segundo Cerqueira, o Estado também atua de forma voluntária para manter esses grupos sociais afastados. "Os maiores policiamentos estão em torno das áreas nobres da cidade, que também é onde estão os melhores hospitais, as melhores escolas", explica.

Para o pesquisador, por motivos históricos, o Nordeste ainda apresenta traços mais marcantes de racismo --que se refletem hoje no número de homicídios.

"Se for olhar para esses estados, eles têm uma história de dinâmica da economia dos Impérios que vários negros migraram para lá. Portanto, pela cultura histórica racista, isso é uma coisa mais presente no Nordeste", avalia.

Existe um ditado bem conhecido nas polícias de que preto parado é suspeito e preto correndo é bandido. Isso quer dizer que o uso da força contra o negro vai ser sempre maior

Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea

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Secretaria de Alagoas diz que tem reduzido crimes

Procurada para comentar sobre o aumento das mortes de negros, a Secretaria da Segurança Pública de Alagoas afirmou ao UOL que "atua de forma macro visando promover políticas de segurança que atendam a toda a população alagoana".

A pasta disse ainda que, desde 2015, "colocou como prioridade a redução de homicídios e vem conseguindo reduzir os índices", ressaltando que Alagoas saiu do topo da violência graças a uma "nova postura de enfrentamento ao crime".

"Alagoas já investiu mais de R$ 60 milhões no aparelhamento da segurança pública. Além disso, lançou programas de enfrentamento ao crime, como o Força Tarefa e o Ronda no Bairro, e construiu Centros Integrados de Segurança Pública, que fortalecem ainda mais a política de integração entre as polícias Civil e Militar. Esse trabalho conjunto tem conseguido reprimir o tráfico de drogas, um dos principais causadores dos homicídios."

Segundo a secretaria, os investimentos "colocam Alagoas como um dos poucos estados do país que conseguem reduzir crimes". "Nos últimos sete meses, por exemplo, o número de homicídios caiu. Entre janeiro e maio deste ano, o percentual de redução foi de 23% comparado ao mesmo período de 2017." 

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Sofrimento negro

Os homicídios não são a única violência contra os negros em Alagoas. Eles também estudam e vivem menos, têm maiores taxas de analfabetismo e menor renda per capita, em relação aos brancos.

Segundo o Atlas do Desenvolvimento do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), os brancos têm uma renda per capita 86% maior do que um negro no estado, enquanto a mortalidade infantil é 25% maior.

Já o analfabetismo entre os brancos é 2/3 do que aparece entre os negros

"O racismo em Alagoas invade todos os territórios. O estado não despertou para essa luta, o que é uma contradição, porque fomos a primeira República livre das Américas. Mas esse racismo institucional faz com que a ideia da marginalidade persista", afirma Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas.

Ela ainda afirma que as mortes são o mais duro golpe na autoestima negra no estado. "Quando uma família negra perde um único filho jovem, ela perde a sua descendência. Quem perde isso acaba perdendo a sua história."

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