Veneno x salvação da lavoura

Da plantação até a sua mesa, saiba quais são os argumentos sobre a mudança na legislação dos agrotóxicos

Diego Toledo Colaboração para o UOL, em São Paulo
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O avanço no Congresso Nacional de um projeto de lei (PL 6.299/2002) que altera as regras para o uso de agrotóxicos no Brasil despertou duras críticas de quem teme consequências negativas para a saúde e o meio ambiente. Ao mesmo tempo, defensores da proposta alegam que uma mudança na legislação é fundamental para que o país não desperdice o seu potencial agrícola.

Aprovado em uma comissão especial da Câmara dos Deputados, o projeto ainda precisa passar pelo plenário, pelo Senado e receber a sanção presidencial para entrar em vigor. O debate no Congresso pode se estender e as chances de uma decisão sobre o assunto ficar para o ano que vem são grandes.

Entre as principais mudanças do projeto em discussão no Congresso estão uma autonomia maior para o Ministério da Agricultura autorizar o uso de novos agrotóxicos no país, com uma perda de influência das pastas da saúde e do meio ambiente, novos prazos e critérios para a liberação desses produtos e a substituição na legislação do termo "agrotóxico" por "pesticida".

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O embate entre quem é contra e quem é a favor da proposta se concentra principalmente nas diferentes interpretações sobre o impacto dos agrotóxicos no meio ambiente e na saúde das pessoas. Veja abaixo argumentos do debate sobre o projeto de lei, divididos em cinco temas.

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As consequências do uso de agrotóxicos

O Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo e também um dos maiores consumidores de agrotóxicos. Dados do início da década já indicavam que o uso dessas substâncias no país superou a marca de 850 milhões de litros por ano. Apenas em 2013, o mercado brasileiro de agrotóxicos movimentou cerca de US$ 11,5 bilhões.

O Ministério da Saúde registrou 25 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil no período entre 2007 e 2014 – o que significa uma média de oito intoxicações por dia. Quase a metade dos casos é atribuída a tentativas de suicídio. Estudos calculam que, para cada caso registrado de intoxicação por agrotóxicos, há outros 50 não notificados.

O país ainda possui poucos dados sobre a relação direta entre a exposição a agrotóxicos e o surgimento de doenças crônicas, como câncer e depressão. Mas estudos de campo regionais já indicam essa possibilidade.

Na Chapada do Apodi (CE), há indícios de casos de más-formações congênitas e puberdade precoce. Outros trabalhos de pesquisadores da UFC (Universidade Federal do Ceará) apontam para incidência de câncer na mesma região. Também há pesquisas que apontam ligação entre a exposição a alguns agrotóxicos, em especial organofosforados, e quadros neurotóxicos associados ao suicídio.

Para o toxicologista Angelo Trapé, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), no entanto, os alimentos consumidos pelo brasileiro estão dentro de padrões de segurança adequados. Ele avalia ainda que, do ponto de vista da saúde pública, não há provas de alterações significativas na saúde dos agricultores relacionadas ao uso de agrotóxicos.

Trapé, que defende o projeto de lei em debate no Congresso, cita um trabalho de campo feito com trabalhadores da Serra da Ibiapaba (CE) e na região meio-norte de Mato Grosso. Apesar de encontrar nos grupos estudados índices elevados de alcoolismo, obesidade e sobrepeso, os resultados apontaram para um perfil de saúde similar ao da população em geral.

"Em termos de estudos epidemiológicos, não tem nada", afirma o médico da Unicamp. "Não estou dizendo que não possam estar ocorrendo situações aqui no Brasil, mas a falta de dados que nós temos hoje é imensa."

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Avaliação de risco

A legislação atual proíbe produtos que, em testes experimentais, tenham apresentados características que indiquem a possibilidade de causar câncer, má-formação de fetos, alterações no DNA ou distúrbios hormonais. 

Já o novo projeto de lei condiciona o uso desses produtos a uma análise de risco que leva em consideração outras variáveis, além da toxicidade do agrotóxico, como a dosagem, o tempo e o tipo de exposição à substância tóxica, as condições climáticas e o uso de equipamento de proteção.

"Quando você calcula essa exposição, você joga um monte de variáveis, acreditando que elas vão acontecer assim no mundo real, e isso não é verdade", afirma o pesquisador de saúde pública Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

"Controlar essa quantidade de variáveis, é a coisa mais difícil que existe, ainda mais lidando com uma substância que é potencialmente causadora de algum efeito crônico, como o câncer", acrescenta Meirelles, que trabalhou por 13 anos na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e é contra o projeto de lei discutido no Congresso.

Já os defensores da proposta argumentam que a mudança permite uma avaliação mais correta dos riscos. "O sol é perigoso, pode causar câncer de pele e uma série de outros problemas. Mas, se eu não me expuser ao sol ou se eu tomar as devidas precauções --cuidar do horário ou usar protetor, por exemplo--, não fico exposto a esse perigo", compara o engenheiro agrônomo Caio Carbonari, da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

"Essa mudança não significa nem flexibilizar e nem dificultar o uso de agrotóxicos, mas, sim, fazer uma análise mais correta do ponto de vista técnico e científico", acrescenta.

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Liberação de novos agrotóxicos

O novo projeto de lei também dá mais poder ao Ministério da Agricultura e, na prática, transforma a Anvisa e o Ibama apenas em órgãos consultivos no processo de liberação de novos agrotóxicos. As agências das pastas de Saúde e Meio Ambiente inclusive se pronunciaram contra a proposta.

"A Anvisa pode dizer que uma substância causa câncer, e a Agricultura vai poder registrar assim mesmo", critica o pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz. "Por mais que digam que a Anvisa e o Ibama vão homologar, quem tem expertise para avaliar isso vai ficar de fora, e a Agricultura vai fazer do jeito que quiser, com foco na questão econômica."

Meirelles acrescenta que um estudo recente de pesquisadores da UFPR (Universidade Federal do Paraná) apontou que 35% dos agrotóxicos com uso autorizado no Brasil não são comercializados no país. "Eles ficam pedindo registro porque isso é um ativo econômico", diz o pesquisador.

"O portfólio de uma empresa muitas vezes pode valer mais do que a própria instalação dela para produzir", acrescenta. "Portfólio são os registros, que você vende. Quando você vende uma empresa, o registro tem um valor."

Os defensores da proposta entendem que a mudança vai desburocratizar o processo para a autorização dos novos produtos e permitir o acesso a novas tecnologias.

"Ao passo que, para nós, a liberação de uma nova tecnologia demora de seis a dez anos, todos os nossos concorrentes do ponto de vista agrícola empregam essas novas tecnologias com cinco, seis anos de antecedência", diz Caio Carbonari, da Unesp.

"Quando nós calculamos o índice de impacto ambiental dos produtos novos, eles são melhores do que a média que está no mercado", acrescenta. "Poderíamos ter avanços importantes se tivéssemos acesso mais rápido a tecnologias que outros países já estão usando."

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Fiscalização

As críticas de Ibama e Anvisa ao projeto que avança no Congresso também apontam a falta de estrutura nas duas agências para avaliar os riscos de novos produtos em um cenário em que a oferta de agrotóxicos no país seja maior.

"O Brasil já tem uma dívida histórica com a população brasileira em relação aos controles que tinha de estar fazendo e não faz, e à assistência que tinha de prestar ao trabalhador e não presta", afirma Meirelles, da Fiocruz. "O que estão querendo fazer é agravar esse quadro ou fingir que ele não existe."

Para os defensores da proposta, a legislação e a fiscalização são duas etapas diferentes, e uma não deve servir de obstáculo para a outra. "É função do Estado proteger a saúde da população e o trabalhador", diz Angelo Trapé, da Unicamp.

"Temos profissionais competentes em várias unidades acadêmicas e institutos de pesquisa no Brasil", acrescenta. "Basta a Anvisa e o Ibama se organizarem e começarem a chamar esse colegiado de inteligências para colaborar e contribuir com isso que a gente vai ter sucesso." 

Os críticos do projeto destacam que atualmente cerca de 30% dos ingredientes ativos autorizados no Brasil são proibidos na União Europeia. Entre os dez mais vendidos no país, dois deles não podem ser comercializados na Europa. O temor é que, com uma legislação mais flexível, essa diferença aumente ainda mais.

Crítica do novo projeto de lei discutido na Câmara, a geógrafa Larissa Mies Bombardi, da USP (Universidade de São Paulo), destaca que mesmo a legislação atual chega a permitir uma quantidade de resíduos de agrotóxicos na água potável muito maior do que os permitidos na Europa.

Em um atlas sobre o uso de agrotóxicos no Brasil, Bombardi aponta que o limite máximo de resíduos da substância glifosato na água potável é 5.000 vezes maior no país do que na União Europeia. O glifosato é um herbicida e, em 2015, foi classificado pela IARC (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em inglês) como "provavelmente cancerígeno para humanos".

"O Brasil não tem um bom histórico de dizer o que é um produto seguro ou não", afirma a geógrafa da USP. "A legislação deveria seguir os padrões adotados na União Europeia e no Japão, por exemplo, para restringir mais os limites máximos de resíduos. O projeto não indica esse caminho, e sim o contrário, de flexibilizar."

Dirceu Portugal/Fotoarena/Folhapress Dirceu Portugal/Fotoarena/Folhapress

Política agrícola

A disputa sobre o uso de agrotóxicos no Brasil também revela duas visões distintas a respeito das estratégias de exploração agrícola no país. De um lado, a defesa de um modelo ecológico e sustentável. De outro, uma visão que prioriza a competitividade e a importância da agricultura para a economia brasileira.

"Quem alimenta o Brasil é a agricultura brasileira, que está desenvolvida e sustenta a economia do país", defende Angelo Trapé, da Unicamp.

"A biotecnologia está avançando muito, e as empresas químicas também estão investindo muito", acrescenta. "Tem que saber trabalhar com as duas coisas e deixar a tecnologia avançar, e não pregar o obscurantismo."

"Se você pega uma verba pública e só financia o agronegócio, com experiências que testam agrotóxicos, vai atrasar muito a evolução de uma produção que introduza tecnologia limpa", rebate o pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz. "O retorno do ponto de vista de saúde e meio ambiente é muito importante a médio e longo prazo."

"A gente teve várias experiências, principalmente na produção de frutas, legumes e verduras, do ponto de vista orgânico e agroecológico, que foram muito bem-sucedidas", acrescenta. "Sustentabilidade não pode ficar só no discurso."

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