A fila do coração

Mais de 260 brasileiros aguardam familiares de vítimas de morte encefálica dizerem "sim" à doação de órgãos

Larissa Leiros Baroni Do UOL, em São Paulo
iStock

Encontrar o coração ideal para transplante depende de uma espera longa e difícil que colocam em uma mesma fila centenas de pessoas. Até o junho deste ano, 260 pessoas aguardavam a doação de um coração no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. No grupo que aguarda, há 44 crianças. 

"O tempo médio dessa espera varia muito de acordo com o Estado em que o paciente mora, bem como com as condições de saúde dele. Em São Paulo, por exemplo, essa demora varia de 12 a 18 meses", afirma Paulo Pêgo, cirurgião cardíaco do HCor (Hospital do Coração). A lista paulista tem 120 nomes em busca de um novo coração.

Nem todo mundo consegue esperar todo esse tempo. Dados da ABTO apontam que 57 pessoas --2 crianças-- não conseguiram aguardar o "novo coração" e morreram na fila de espera no primeiro semestre desse ano.

Uma das dificuldades para o transplante do coração está na decisão da família do doador, que tem de dizer "sim" ao transplante no momento em que é determinada a morte encefálica de seu familiar. O índice de rejeição à doação de órgãos no país é historicamente alto: 43%, segundo o Ministério da Saúde.

 

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

5 meses de pausa

Aos 30 anos, publicitária aguarda coração enquanto fila anda lentamente

Tatiane Ingrid Penhalosa, 30, está há cinco meses em casa, sem fazer esforços enquanto aguarda um coração. "Estou no 33º lugar da fila, que parece evoluir lentamente. Nesse período, avancei cerca de oito posições."

A publicitária tem uma doença congênita e hereditária, miocardiopatia hipertrófica, que por muitos anos foi controlada apenas com remédios. Após uma arritmia, ela teve de operar para colocar um marcapasso. E agora terá de substituir o coração.

A minha vida parou esse ano, já não conseguia mais respirar direito. Não aguentava mais andar de salto, passear no shopping, dirigir. Hoje tem dias que até falar é um sacrifício."

Nos últimos tempos, Penhalosa chegou a ficar internada três vezes por mês. Nessa parada, a publicitária desmarcou até seu casamento --que, segundo ela, também entrou na fila.

A lista de chamadas anda conforme a existência de um órgão em condições disponível e a gravidade da situação do paciente.

"Teve época em que olhava diariamente o site do governo para acompanhar a minha evolução", conta. "Meu maior medo é não conseguir ter de volta a minha vida. Mas tenho fé que o meu coração novo vai chegar logo."

iStok

Quando a fila anda

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

"Achavam que não passaria de 1 ano"

Patrícia Fonseca ganhou um coração de presente de aniversário de 30 anos

A economista Patrícia Fonseca, 32, nasceu com uma cardiopatia e com pouca expectativa de vida, segundo os médicos. "Achavam que eu não ia passar de um ano de idade, mas eu superei esse prognóstico."

Sua infância foi marcada por visitas frequentes a hospitais, exames médicos e remédios. "Fui submetida à minha primeira cirurgia aos 14 anos. Aos 20 anos, fui parar na UTI por causa de uma arritmia. Até que, aos 28 anos, a situação chegou a um ponto crítico, que foi piorando gradativamente até que nenhum remédio mais fazia efeito."

A partir de então, andar ou subir escadas eram uma dificuldade. "Nos últimos dias do meu antigo coração, não tinha mais forças nem para expressar os meus pensamentos. Toda vez que tinha vontade de fazer xixi chorava de desespero."

Foram três meses de espera pelo novo coração, sendo que dois deles na UTI. O coração chegou no dia de seu aniversário de 30 anos.

A primeira ligação do dia foi do meu médico me pedindo para que me preparasse para a cirurgia. Não contive a emoção. Chorei, chorei, chorei muito. Esse era o melhor presente do mundo." 

Recuperação de atleta

"A minha recuperação do transplante foi recorde. A previsão era que ficasse 15 dias na UTI, mas 5 dias foram suficientes. No terceiro dia da cirurgia já conseguia ficar em pé. Em um mês, fui para a academia do hospital. Em um ano, já estava correndo. Quatro meses depois, participei da minha primeira corrida de rua."

Patrícia foi parar na Olimpíada dos Transplantados, como a primeira transplantada do coração a representar a seleção brasileira e a única a conseguir completar a prova de triatlo. 

Hoje, ela treina de três a quatro dias por semana, trabalha e é militante da doação de órgãos

Há pessoas que recebem de graça a saúde, mas há muitas, assim como eu, que lutam para se manter vivas e dependem de um gesto de generosidade para terem a chance de viver e realizar seus sonhos.

iStock iStock

Como funciona a doação

No Brasil, a doação de coração depende exclusivamente da autorização dos familiares de uma pessoa com morte encefálica.

"Não adianta deixar registrado no RG, no testamento ou em qualquer outro documento. Nada disso tem validade legal. A palavra final é da mulher ou do marido, dos filhos ou dos pais", ressalta Paulo Pêgo, cirurgião cardíaco do HCor.

A recomendação para aqueles que querem doar seus órgãos em morte é deixar os familiares avisados. 

A regra brasileira é diferente da de outros países, onde a doação é compulsória. É assim na Espanha, por exemplo, país campeão do mundo em doação de órgãos.

Segundo a ONT (Organização Nacional de Transplantes), foram realizados 43,4 transplantes a cada um milhão de habitantes em 2016. O índice no Brasil é de 14,6, como aponta a ABTO.

Outra diferença do Brasil em relação a outros países, como acrescenta Pêgo, está no processo para a declaração de uma morte cerebral. "Não basta um médico decretar a morte cerebral. Seis horas depois desse primeiro diagnóstico, um outro médico precisa atestá-lo. Uma confirmação que também depende da realização de exames para atestar a inexistência de fluxo cerebral."

Uma burocracia que, segundo o especialista, se faz necessária para dar garantias à família de que aquele parente não vai ter chances de acordar. 

Curtiu? Compartilhe.

Topo