Sagrado feminino

Repórter do UOL mergulha em retiro para mulheres com direito a cristais vaginais, pompoarismo e nudez coletiva

Helena Bertho Do UOL, em São Paulo

Já ouviu falar em Sagrado Feminino?

Não é uma religião. É uma corrente que defende que a mulher precisa se reconectar com a essência do que é feminino. Os cursos que pregam essa ideia estão na moda: há vários encontros e retiros pipocando por aí. E eu andava curiosa para saber qual é a pegada deles.

Eis que soube do encontro "Poderes do Feminino", na Comuna Metamorfose, uma espécie de sítio de vivências tântricas. A proposta seria um fim de semana de imersão, "para despertar as características essenciais da mulher, mantendo a energia pulsante em equilíbrio", segundo os organizadores. 

Embarquei na aventura sem saber se meditaria, faria massagem tântrica ou só trocaria ideias com outras minas. Só tive um spoiler ao me inscrever: em algum momento, teria que lidar com yoni eggs, os cristais para inserir na vagina e fazer pompoarismo.

No mínimo, eu aprenderia a malhar a pepeca.

Primeira lição: Beyoncé e Anitta acabam com qualquer climão

Era noite de sexta-feira quando fui para Itapeva, no interior de São Paulo. Peguei carona com duas mulheres que conheci no grupo de discussão por email criado pelos organizadores - uma delas era uma francesa, que vive em Campinas.

O lugar foi minha primeira surpresa: eu imaginava que seriam cabanas de madeira, velas ao invés de luzes e nada de internet. Afinal, era uma imersão! Mas o sítio tinha dois predinhos de concreto e, para despertar a Afrodite dentro de mim, o wi-fi estava ali para ajudar.

Éramos cerca de 60, entre 20 e 60 anos, reunidas em uma sala de vidro, com uma paisagem maravilhosa do campo. Todas estavam tímidas, como era de se esperar no primeiro encontro de totais desconhecidas. Começou a tocar uma música, um som meio tribal. Uma ou duas começaram a dançar e as outras se mexiam sem sair do lugar. 

Então tocou Beyoncé. Veio Anitta, mais funk e axé. Cinco músicas depois, todas dançavam até suar

"Sexo é feito do jeito dos homens. As mulheres não têm prazer", disse Puja

As coordenadoras do retiro então apareceram, dançando entre nós: Deva Puja, terapeuta tântrica, e Aysha Almeé, terapeuta e também professora de dança do ventre. Disseram que seria um fim de semana para "curar nossos corpos e almas".

"Nós, mulheres, sofremos alterações hormonais que levam a mudanças emocionais. Mas o mundo nos reprime e obriga a disfarçar o que é natural na gente", defendeu Aysha. As terapeutas explicaram também que as demandas sociais nos obrigaram a nos masculinizar. E isso fez com que "desconectássemos de nossos corpos".

Tudo isso afetou uma área bem importante de nossas vidas, o sexo. "Transamos de um jeito tão masculino! O homem é quem define as regras e, por isso, a maioria de nós não sente prazer", concluiu Puja.

Nos ensinam que somos inimigas umas das outras e que competimos entre nós. É mentira!

Aysha Almeé, terapeuta tântrica

"Achei que só eu estava fora da suruba e me senti excluída"

As luzes da sala envidraçada então foram apagadas e nós devíamos ficar de olhos bem fechados. Puja, com sua voz suave, nos pediu para caminhar até o centro da sala. Sem visão, começamos a nos esbarrar.

Minha primeira reação foi me desviar das outras, mas a terapeuta contestou: "Sintam seus corpos, deixem a pele de vocês se tocar". Foi o que aconteceu: ficamos todas muito próximas. E aí dava para sentir não só a pele alheia, mas cabelos, roupas, respiração ofegante... Tudo!

Puja nos pediu para sair do centro e nos afastar. Sem ver nada, saí daquela quentura de corpos. Longe das outras, ainda ouvia as respirações aceleradas pela sessão de dança. E comecei a imaginar se eu era a única que havia se afastado do grupo. As respirações estavam tão ofegantes, que imaginei se as outras estavam sentido prazer.

Na pegação entre elas, só eu havia ficado de fora? Me senti esquecida e chorei 

Até que a voz de Puja nos pediu para abrir os olhos: nada de suruba no salão. Pelo visto, minha mente tinha me pregado uma peça e me colocado em contato com um dos meus maiores medos: o de ser excluída.

Fomos dormir e eu me revirei na cama perturbada com aquela constatação. O fim de semana seria intenso.

Deva Thirak/Divulgação Deva Thirak/Divulgação

"Algumas choravam, outras gemiam como em um orgasmo"

Depois desse embalo de sexta à noite, a programação do final de semana era cheia. Yoga, pompoarismo, massagem e muita, muita meditação estavam no cronograma. E o sábado começou com uma "meditação ativa".

Funcionava assim: diferentes ritmos tocavam e tínhamos que dançar de maneira fluida, deixando o corpo livre, até evoluir para movimentos vigorosos, que incluíssem socos e chutes. Imagine seis dezenas de mulheres fazendo isso ao mesmo tempo.

A música ficou mais acelerada, com um som de tambores tribais e chegou a hora dos chutes e socos. Aysha dizia para colocarmos nossa raiva para fora. Eu golpeava o ar, pondo para fora uma revolta que nem sabia que existia. 

Elas gritavam e esmurravam o nada com fúria. Tentei imaginar em quem batiam. Maridos? Filhos? Chefes? 

Tive a sensação de que foram horas nesse baile enfurecido. Eu sentia uma dor muscular intensa. Ao meu redor, uma moça rolava no chão gemendo, num estado orgástico. Muitas outras choravam, enquanto algumas gargalhavam, abraçadas consigo mesmas.

"Tirei a roupa e fui massageada por quatro mulheres nuas"

A imersão teve outra atividade marcante. Fomos divididas em grupos de cinco e nos colocamos ao redor de colchonetes. Uma a uma sentava-se nele e falava sobre a relação com o próprio corpo, conforme tirava a roupa, até ficar pelada. Em seguida, deitava e as demais deveriam massagear quem estava no centro do círculo.

No meu grupinho, as histórias foram todas meio parecidas. Dificuldade para sentir prazer nas transas, vergonha do corpo, insatisfação com os seios, a barriga, a bunda... Todas estavam infelizes com sua imagem algum nível.

Elas eram lindas e rejeitavam o próprio corpo. Fiquei angustiada, pensando no que deviam achar de mim

Fui a última do grupo a falar e tirar a roupa. Quatro mulheres nuas me massageavam. Acredite, não foi nada erótico. Foi uma das experiências menos sexuais que já vivi.

A massagem foi um conforto. Foi como estar de volta à infância, quando minha mãe me fazia carinho para dormir. Quase cochilei no colchonete.

Estupro e trauma no parto: elas buscavam a cura

Entre uma atividade e outra, conversei com mulheres de diferentes perfis, que estavam ali por diferentes motivos. Uma médica, uma arquiteta, uma jovem estudante, uma dona de casa.

Uma contou que tinha passado a vida tentando se masculinizar para ser respeitada e, com isso, não conseguia ser feliz nas relações amorosas. Outra falou que nunca se recuperou do parto violento que sofreu - "se sentia rasgada" e não conseguia ter prazer no sexo. Uma das histórias mais chocantes: uma moça que havia sido estuprada por dois homens e sentia culpa por isso. 

Doraci Rodrigues, 58, era a mais velha de nós. Participou de todas as atividades, com muita abertura. "Só tirar a roupa que não tiro. Estou velha para isso".

Doraci é evangélica. Não se incomodou com a nudez, nem com nada do que viu

Mãe de quatro, ela se casou aos 16 e, aos 17, já tinha dois filhos. Seu ex-marido era alcoólatra e violento. "Um dia, ele me ameaçou com uma faca. Não conseguiu, então saiu de casa e nunca mais voltou", me contou. Doraci também estava ali para curar seu Sagrado Feminino.

Assistimos a vagina de Aysha "engolir" o cristal

Recebemos uma cesta cheia de yoni eggs - os cristais em forma de ovo para prática do pompoarismo - a "malhação" da pepeca. As pedras eram verdes, rosas e pretas e nós não devíamos escolher nosso ovo. Devíamos "deixar que ele nos escolhesse", segundo Aysha. Como não fui eleita por nenhum, escolhi o preto.

A terapeuta nos explicou que os cristais nos energizariam. Meu ovinho, por exemplo, tinha o "poder" de curar traumas passados. Antes de enfiá-lo lá dentro, a recomendação era: lavar, deixar um dia em sal grosso, um dia e uma noite enterrado e lavar de novo. Só aí deveríamos inseri-lo e deixar ali por algumas horas.

Fizemos um círculo ao redor de Aysha, para que ela nos mostrasse sua vagina sugar o cristal. Nós não podíamos enfiar ele lá, nada de forçar! "Já sofremos muita violência e esse exercício não pode ser mais uma delas", nos explicou.

Ela levantou a saia e avisou: "Não reparem, estou menstruada". Sem vergonha alguma, aproximou o yoni egg da vagina, enquanto fazia um exercício de respiração e contração. Assistimos seus grandes lábios se movendo, até que a pedrinha foi entrando.

Lição dada, hora de fazer. Deitamo-nos em colchonetes e demos início ao exercício. Inspira, expira. Contrai, relaxa.

Devagar e uma meia hora depois, funcionou! "Flupt", o cristal entrou em mim. A partir daí, deveríamos meditar, enquanto a pedra fazia seu trabalho.

Ao meu redor, as coisas foram mais intensas. Comecei a ouvir choro e gemidos. Uma mulher começou a gritar. Outra gemia alto e cada vez mais rápido.

A moça soltou um grito de prazer: ela tinha gozado. Fiquei com inveja

Ficamos por quase duas horas nessa dinâmica, até que a Aysha nos liberou. Os cristais deviam ficar dentro de nós, para nos energizar, até que saíssem naturalmente. Então, com o youni egg lá dentro, como se fosse um absorvente interno, fui jantar.

Quando o sono bateu, fui ao banheiro e, de cócoras, repeti o exercício de contrair e relaxar a pepeca para expelir o cristal. Não queria dormir com ele dentro de mim.

Para celebrar nossa jornada, nos jogamos peladas na piscina

Tivemos ainda outras seções de meditação coletiva e um exercício de "ativação dos sentidos". Nele, ficamos vendadas, sem roupas, enquanto outras passavam penas, folhas e gelo em nossos corpos ou colocavam comidas em nossas bocas.

No final, formamos uma enorme roda, onde quem quisesse podia compartilhar sua trajetória ali. Várias mulheres desabafaram, se emocionaram e contaram o que sentiram e pensaram durante o processo.

Para mim, o Sagrado Feminino foi uma surpresa. Não foi uma experiência mística, nem um reencontro com algo santificado com a minha essência de mulher. Mas foi uma jornada enriquecedora.

Vi mulheres buscando olhar para si. Porque o mundo exige, toma e bate na gente. E elas estavam quebradas, tentando juntar os caquinhos

Na imersão, nós fomos nós. Nossos corpos nus eram nossos, não estavam disponíveis para o prazer de ninguém. E para celebrar isso, fomos todas para a piscina, dar um mergulho peladas, com a confiança e a liberdade de estar num espaço seguro. Um espaço de mulheres. 

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