Time de guerreiros

O Meninos Bons de Bola quer ser a primeira equipe transexual do Brasil a participar de uma liga

Por Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo

Em 28 de agosto, uma quadra sem traves e com linhas apagadas no Parque da Juventude, em São Paulo, recebeu o treino inaugural do Meninos Bons de Bola, o primeiro time de homens trans do Brasil. A equipe é formada por pessoas que nasceram mulheres e mudaram de sexo.

Os atletas de final de semana planejam disputar campeonatos de várzea a partir do ano que vem. A maioria jogava na base de times femininos de São Paulo antes da transição de gênero e querem reviver as emoções do esporte. Por enquanto, eles se preparam para o primeiro amistoso, ainda em novembro.

Na reportagem, o UOL Esporte conta como o Meninos Bons de Bola foi criado e relata as dificuldades enfrentadas pelos seus integrantes.

Rdorigo Ferreira Rdorigo Ferreira

Objetivo: participar de ligas amadoras

A primeira partida da história do Meninos tem data marcada. Vai ser um amistoso em 10 dias contra um time que disputa a Copa da Inclusão, no Sesc. Para o próximo ano, uma novidade: o time vai ganhar uniforme. A equipe quer participar de campeonatos.

A preferência seria por competições com outros times de homens trans, mas como não é possível, o jeito é apelar para torneios masculinos da várzea. A vontade é maior entre aqueles que eram esportistas antes de fazer a transição de sexo.

A equipe tem muitos atletas que defendiam as categorias de base de times de São Paulo quando se identificavam como mulheres. Raphael explica que eles querem voltar às competições, mas como homens trans.

"Se os Meninos Bons de Bola completar um ano e a gente estiver mais avançado vou tatuar o logo e o nome do time."

Por que Raphael criou o time

Sempre quis fazer algo para as pessoas como eu. E há algum tempo já estava pensando o que poderia fazer para trazer essas pessoas para mais perto. Quando surgiu esta ideia do futebol eu falei: ‘gente é isso!' Vou trabalhar e tirar do papel

A reação dos jogadores após o primeiro dia de treinos

Domingo foi o primeiro dia em que fiquei super feliz. Se tivesse mais oportunidades, certamente seria esportista. Nunca tinha participado de um time. Não ia para o futebol porque sabia que sofreria discriminação. E não me chamavam para pelada da semana

Claudio Galícia

Claudio Galícia

O Meninos significa um momento de lazer. Eu estava em um meio que a gente se entende. Eu já joguei um final de semana com amigos e primos, mas não é a mesma coisa. Lá, tem gente que fala que nunca vai conseguir me chamar de Gustavo

Gustavo Souza

Gustavo Souza

Idealizador foi violentado "para virar mulher"

Treinador trans diz: "Olham para você como se dissessem 'credo!'"

A maioria do elenco do Meninos Bons de Bola é de pessoas como Raphael, com passado esportivo. Mas há uma parcela que entrega a falta de intimidade com a bola só pelo jeito de correr. Todos são comandados por Eduardo, também trans, que treina alguns times de várzea.

Todo domingo, às 8 horas, um grupo de 15 atletas de final de semana obedece as orientações do técnico. O treino de duas horas ocorre numa quadra do Parque da Juventude e haver uma única bola de futsal não impede que pratiquem passes, controle de bola e finalização. Pior do que a falta de estrutura, é a falta de educação.

“Eu jogo futsal e às vezes as pessoas param de jogar para não deixar eu jogar por ser diferente”.

O treinador do Meninos conta que o preconceito é velado, mas possível de sentir: “Normalmente as pessoas ignoram ou ficam cochichando. Só que você percebe, começam a olhar para você como se dissessem 'credo!'”.

 

Como um jogador trans é recebido numa pelada

O que Fifa, CBF e COI têm a dizer

JARBAS OLIVEIRA/FOLHA IMAGEM JARBAS OLIVEIRA/FOLHA IMAGEM

Fifa

A posição da Fifa é clara. Nenhum tipo de discriminação tem lugar no futebol. Discriminação de qualquer tipo contra um país, grupo ou pessoa por origem étnica, gênero, língua ou religião é proibida. A prática é passível de suspensão ou expulsão da entidade.

JOAO PAULO ENGLELBREC JOAO PAULO ENGLELBREC

COI

Qualquer mulher em transição para ser homem trans pode competir. O caminho inverso tem mais detalhes. Homens em transição para mulher trans têm um nível máximo de testosterona permitido. Eles precisam monitorar a quantidade de testosterona nos 12 meses antes de competirem pela 1ª vez.

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CBF

As regras são estipuladas para o futebol, não para um país. O que a Fifa cria é universal e a A CBF adota os mesmo critérios que estão definidos no Estatuto da Fifa. Vale para a questão de transgêneros, doping e qualquer outro assunto ligado ao futebol.

Reprodução Reprodução

Constrangimento com nome de batismo

O saguão do Sesc Consolação, em São Paulo, tem poltronas diferentonas, estantes de livros, uma cafeteria com jeitão de cara e gente moderninha circulando. Bem diferente do segundo andar, onde rolam gritos como “chuta” e “olha o ladrão”.

Raphael encontrou um ambiente além do Meninos Bons de Bola para jogar sem ser julgado. Toda terça e quinta-feira participa das peladas que misturam homens e mulheres. Ele também ficou feliz porque aceitaram o nome social na carteirinha.

Mas mesmo nos locais com a melhor vontade do mundo, há situações embaraçosas. Nos registros constava o nome de batismo dele e foi o que apareceu ao se inscrever no campeonato do Sesc.

"Teve um dia que vim pro treino e o professor falou que ia tirar (a mulher desconhecida) que nunca ia treinar. Foi aí que eu falei ‘essa pessoa sou eu'.”

Rodrigo Ferreira Rodrigo Ferreira

Quando o futebol é terapêutico

Erick fala como um boleiro, mas ele não tem só jeitão de jogador. O cara mete um gol atrás do outro nos treinos do Meninos Bons de Bola. A entrega ao futebol existe porque o esporte ajudou a superar uma tragédia pessoal. Aconteceu na infância.

Ele morava em Campinas e vendia balas no centro com a bisavó. Um dia, insistiu em ficar e garantiu que sabia voltar sozinho. Não era verdade.

“Minha vontade era terminar (as balas) e ir para casa. Umas 7 horas da noite, eu procurando onde era o 554. Eu não achei e veio um fulano e falou 'pega aquele ônibus que chega mais rápido. Quer que te leve?' Eu inocente fui. E caminha, caminha, caminha e nada. Daqui a pouco levou eu pro mato, fez tirar toda roupa.”

Erick aproveitou um vacilo do homem para escapar. Mas a devastação emocional estava concretizada.

“Fiquei todo machucado. Quem me barrou no meio da rua, que era de terra, foi um caminhão de lixeiro. Pedia 'socorro, socorro, socorro’. Chovendo, o cara desceu do caminhão, arrancou aquela capa amarela e jogou em cima de mim."

"Fiquei com vergonha de passar por uma situação daquela e olhar para família. Eu não queria olhar na cara da minha bisavó quando ela foi no hospital. Minha bisavó não era igual minha mãe”

Erick estava com a bisavó como alternativa da Justiça para não morar num abrigo. A mãe usava crack e o obrigava a bater de porta em porta pedindo dinheiro que era convertido em drogas. Com a bisavó, era diferente.

“Ela pegava o dinheiro das balas e me dava. 'Compra o que você quiser'. No hospital eu dizia 'tenho nojo de mim mesmo'. Não devia existir isso.”

Mas Erick diz onde encontrou a redenção: “Foi aí que passei a morar no abrigo e passei a conhecer o futebol. Foi minha terapia, quando voltei a ser feliz.”

O que eles estão cansados de ouvir

Skarleth Schynider Skarleth Schynider

Por que é mais difícil para as travestis

O tratamento a travestis e mulheres trans no futebol ultrapassa a fronteira de preconceito e chega à hostilidade. Natalia pediu para jogar e os homens correram atrás dela para bater. Ficou 15 anos na seca até jogar no colégio onde estuda mês passado.

O silicone industrial (R$ 38 a garrafa) que muitas colocam no corpo também atrapalha. Ele escorre pelo corpo e se acumula nos pés e pernas, que ficam imensos. Futebol nestas condições é inviável. O produto foi criado para borracharias e vidraçarias, diz Luciano Chaves, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

"Há 100% de certeza de problema de saúde. Com certeza existe uma incapacitação para o esporte".

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Com a palavra, a primeira trans a participar de partida oficial

Jaiyah Saelua é pioneira no futebol mundial, foi a primeira jogadora trans a participar de uma partida oficial da FIFA em novembro de 2011. Ela é zagueira e defende a Samoa Americana, que naquela ocasião bateu Tonga por 2 a 1. O jogo valia pelas Eliminatórias da Copa de 2014.
 
A atleta é uma fa'afafine, termo empregado na Polinésia para quem nasce homem e se identifica como mulher. Em entrevista ao UOL Esporte, Jaiyah disse que sempre foi respeitada pelos companheiros de seleção. Mas ela confessa que jogadores e torcedores adversários nem sempre são amistosos.
 
Nunca fui discriminada por companheiros de equipe. Fui xingada por adversários, mas somente no calor da partida. Antes e depois do jogo eles e as comissões técnicas são respeitosos. Com torcedores é diferente. Sempre haverá preconceito dos torcedores.
 
A zagueira afirmou que o mundo tem a aprender sobre tolerância com a região do Pacífico. A cultura da Polinésia entende como um terceiro gênero pessoas nascidas como homem e que se sentem mulheres.
 
Mas a atleta conta que o tratamento hormonal que faz está deixando a parte física defasada em relação ao restante da equipe. Ainda assim, não se arrepende e pede apoio. "É importante que a FIFA e as associações apoiem os atletas. Seria ótimo se eles adotassem as regras da Federação Inglesa que apoia atletas transgêneros."
 

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