Tsunami tricolor

Festa, susto e jogadores quase pelados: primeiro título do São Paulo na Libertadores teve invasão histórica

Daniel Lisboa Do UOL, em São Paulo

A Copa Libertadores ajudou a moldar o futebol brasileiro nas últimas décadas. Concentrou vários significados ao longo de suas quase 60 edições. Tornou-se sinônimo de catimba, rivalidade, provocação, jogo duro. Também representa o reinado em seu continente e o passaporte para conquistar o mundo. Virou uma obsessão cantada e incorporada pelas nossas torcidas.

Para mostrar um pedaço do DNA desse torneio, personagens que participaram de cinco títulos históricos brasileiros recontam suas experiências nas partidas decisivas. Jogadores de Atlético-MG, Corinthians, Flamengo, Palmeiras e São Paulo relatam como viveram suas finais sul-americanas.

A terceira de cinco reportagens dessa série especial tem histórias marcantes do título do São Paulo de 1992, quando o estádio do Morumbi foi "inundado" por torcedores. Quando Zetti defendeu o chute de Gamboa e sacramentou o triunfo nas penalidades, logo após o time de Telê devolver o 1 a 0 no tempo normal, o gramado foi completamente tomado.

Muita festa por parte da torcida, susto por parte dos jogadores e tricolores correndo para todos os lados. A América era do São Paulo.

Reprodução Reprodução

Milhares em campo

"Não deu tempo de correr quando a torcida invadiu o campo. Pegaram minha chuteira, meia, camisa. E eu não jogava de sunga. Se arrancassem meus shorts, eu ia ficar pelado. Eu falava 'não, não, não!'. Aí tiraram eles de cima de mim e eu fui para o vestiário"
Macedo, que por pouco não ficou totalmente nu

"Não fiquei naquela bagunça, consegui sair rápido. Fugi e perdi só a chuteira, teve gente que ficou pelada. Foi um mar de gente, incrível, mas lógico que assustador. Foi muito louco aquele negócio"
Ivan, que correu, mas perdeu uma chuteira

"A emoção era tão grande que eu queria curtir aquilo o máximo que pudesse. Mas acabei ficando só de cueca e com um pé da chuteira. Pedi pra ficar com ela. Não fiquei assustado quando vi a multidão entrando em campo. Era tudo o que pedi a Deus. Fiquei até a entrega da taça"
Pintado, de cueca, fez questão de curtir na muvuca

Antes, foi preciso reverter a derrota por 1 a 0

Eu estava ansioso, mas confiante. Sabíamos que haveria uma superlotação do Morumbi. Era um ambiente de euforia, até perigoso de certa forma. Mas estávamos muito conscientes de que seria um momento divisor de águas daquela geração"

Raí

Raí, lembrando o cenário pré-decisão

Chegar a um estádio lotado daquele jeito te faz sentir tudo ao mesmo tempo. Te deixa ansioso, confiante e feliz. Posso te falar que é um choque. Você pensa: como vou deixar escapar uma oportunidade dessa?"

Pintado

Pintado, sobre a atmosfera do Morumbi

A confiança sempre foi muito grande pelo que tínhamos feito até ali. Tivemos algumas chances de gol na primeira final, se não me engano o Muller errou praticamente dentro da pequena área. Acho que merecíamos mais ganhar o primeiro jogo do que o segundo"

Antônio Carlos

Antônio Carlos, sobre o jogo na Argentina

Fizemos um bom primeiro jogo e ficamos muito chateados por termos perdido. Sabíamos que tínhamos um time muito competitivo, com condições de reverter em casa, só que tinham mais de 100 mil pessoas no Morumbi. Lógico que isso gera um pouco de ansiedade"

Ivan

Ivan, citando a pressão da decisão

David Cannon/Getty Images David Cannon/Getty Images

Até o mestre estava nervoso

"O Telê nunca foi um cara muito sentimental, sempre foi meio frio. Mas ele também nunca tinha vencido um título daquela importância, um título internacional. Então sentíamos que nele também havia uma ansiedade muito grande"
Pintado, vendo até o experiente Telê Santana aflito

Milton M. Flores/Folha Imagem Milton M. Flores/Folha Imagem

Muller mal, bola na trave de Zetti...

"Confesso que fiquei aflito no Morumbi. Estava demorando muito para sair o gol e estávamos perdendo muitas oportunidades. O tempo foi passando e achei que não ia acontecer [o gol]. O Muller era nosso grande nome, eu pedia para tocar nele, mas não estava bem naquele dia. A gente sentia que ele não conseguia fazer as jogadas"
Zetti, lamentando a noite pouco inspirada do atacante referência

"Na hora que o cara [do Newell's] saiu correndo com a bola dominada [para chutar na trave], era só torcida para que ele errasse. Se não me engano, foi uma bola na esquerda que meteram nas costas do Ivan. O time desconcentrou um pouco com aquele lance, mas aos poucos fomos controlando o jogo"
Antônio Carlos, lembrando o vacilo da defesa que quase custou caro

Do banco para o pênalti salvador

A torcida começou a gritar meu nome no segundo tempo. Meus amigos no banco começaram a olhar pra mim, parecia que era uma luz divina, sabe? Que era para eu entrar e sofrer aquele pênalti [que originou o gol de Raí]. Na segunda bola que peguei, entrei em diagonal, driblei o Gamboa, driblei mais um e, quando fui bater, o Gamboa puxou minha camisa. Puxou e largou, né? Malandro. Mas eu vim para trás quando ele puxou e o juiz deu o pênalti. Foi a maior alegria quando ouvi o juiz apitar o pênalti. Já comemorei como um gol"

Macedo

Macedo, sobre o pênalti que sofreu pouco depois de entrar em campo no segundo tempo

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

A frieza de Raí no meio da multidão

"Sempre digo que, quando o juiz apitou o pênalti, 100 mil pessoas gritaram, meus companheiros comemoraram, só eu que não.

Minha sensação é a de ter me colocado numa bolha naquele momento para tentar manter tudo o que representava aquela jogada e me desligar do entorno. Peguei a bola e tentei abstrair, como se estivéssemos só eu e o goleiro. 

Eu geralmente me decidia por um canto e tentava sentir o movimento do goleiro até o último momento. Se ele não se mexesse, batia naquele que já estava definido. Se não, tentava mudar de canto. Foi o que fiz, bati no canto que havia definido antes"
Raí, sobre o gol que fez aos 22min do segundo tempo e levou a definição para as penalidades

Os pênaltis, na visão deles:

Leandro Moraes/UOL Leandro Moraes/UOL

Raí abriu a contagem e fez

"Na disputa de pênaltis, o Telê estava na dúvida se eu deveria bater ou não. Porque eu tinha acabado de cobrar um. Eu falei pra ele que bateria, que estava confiante. Cheguei a ficar na dúvida, mas bati no mesmo canto [que o cobrado no tempo normal]. Meu aproveitamento em pênaltis sempre foi bom. Fora aqueles que perdi contra o Dida [do Corinthians, em 99], perdi pouquíssimos na minha carreira inteira"

Reprodução/SPFC TV Reprodução/SPFC TV

Ivan marcou o segundo do SP

"O Telê disse para eu escolher um lado e bater forte que não teria problema. Foi o que aconteceu. Bati como fazia nos treinos. Porque, se acontecesse algo negativo, pelo menos você fez o que tinha que ser feito. O Ronaldão, por exemplo, também escolheu bater forte, mas o goleiro não se mexeu. Se ele bate no canto, era gol"

Bruno Freitas/UOL Bruno Freitas/UOL

Ronaldão perdeu o terceiro chute

"Cobrei como tinha treinado a semana inteira, não iria mudar. Estava batendo todos daquele jeito. Não sei, acho que tinha um informante argentino na concentração. O goleiro não se mexeu e acabou defendendo. Mas é aquele negócio, só quem bate tem a responsabilidade de fazer. O que me aliviou foi que o jogador do Newell's que bateu na sequência isolou a bola"

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Pintado seria o quinto cobrador

"Eu tinha certeza que ia fazer, pedi para o Telê me deixar bater. Eu nem era batedor, mas aquele eu queria bater. Seria a minha oportunidade para fazer as coisas acontecerem. Foi bom o Zetti pegar, mas imagino como seria o sabor de ter feito o gol do título. Penso nisso até hoje. Minha família disse que eu era louco por querer bater num momento daqueles, mas o gol do título seria meu, eu ia até fazer uma tatuagem"

Leandro Moraes/UOL Leandro Moraes/UOL

100 mil pessoas gritam Zetti

"No último pênalti, do Gamboa, eu estava muito frio. Escutava a torcida gritar meu nome, mas, no momento em que ele correu para a bola, eu não ouvia mais nada. Era eu e a bola. Eu pensava muito que ele não podia me enganar, falava isso pra mim mesmo. Podia sair antes, mas esperei, pois ele podia mudar o canto. É muito difícil explicar o que acontece nessa hora e passar esse filme para as pessoas depois de todo esse tempo"
Zetti, o herói, sobre a defesa que garantiu o título

Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube

São Paulo 1 (3) x (2) 0 Newell's Old Boys

São Paulo: Zetti; Cafu, Antônio Carlos, Ronaldão e Ivan; Adílson, Pintado e Raí; Muller (Macedo), Palhinha e Elivélton. Técnico: Telê Santana.

Newell's Old Boys: Scoponi; Saldaña, Gamboa, Pochettino e Berizzo; Llop, Berti e Martino (Domizzi); Zamora, Lunari e Mendoza. Técnico: Marcelo Bielsa.

Data: 17 de junho de 1992
Local: estádio do Morumbi, em São Paulo (SP)
Árbitro: José Joaquín Torres Cadenas (Colômbia)
Assistentes: Jorge Zuluaga (Colômbia) e John Redón (Colômbia)
Público: 105.185 pagantes
Gol: Raí, aos 22min do segundo tempo
Pênaltis: Newell's  Old Boys 2 x 3 São Paulo 
1ª série: Berizzo errou; Raí acertou
2ª série: Zamora acertou; Ivan acertou
3ª série: Llop acertou; Ronaldão errou
4ª série: Mendoza errou; Cafu acertou
5ª série: Gamboa errou; Pintado não precisou bater

A festa que virou caos...

Passei nervoso no fim, porque fiquei tenso quando vi a invasão. Não saí do lugar. Quando vi, um torcedor, um cara forte, me ergueu de cavalinho lá no meio. Ele ia para lá, para cá, eu queria descer e não conseguia porque era muita gente. Foram puxando minha luva, puxando camisa. Também terminei só de sunga e minha orelha sangrou porque a camisa enroscou nela. Eu via todo mundo recebendo medalha no meio de campo, o troféu, e eu não conseguia descer pra chegar lá"

Zetti

Zetti, levado por um torcedor contra sua vontade durante a festa

Acabei ficando quase pelado também [na invasão]. Levaram caneleira, chuteira, camisa, tudo... Só os shorts que não. Eu fiquei em campo porque queria festejar. Assustou um pouco, mas fiquei ali do lado do banco, onde ia acontecer a entrega das medalhas e tinha um pouco de segurança. Foi uma loucura. Meu pai, que era são-paulino, só conseguiu chegar aos 30min do segundo tempo ao estádio. Acabou vendo só o fim do jogo e as penalidades"

Antônio Carlos

Antônio Carlos, sobre o tsunami tricolor daquela noite de junho

...e entrou para a história

Depois de toda a loucura do jogo, fui com um amigo tomar uma cerveja na Henrique Schaumann [rua na Zona Oeste de São Paulo]. Comemoramos sozinhos. Não tinha caído a ficha. Não fui assediado por torcedores porque já estava muito tarde e não tinha mais ninguém lá. Talvez eu tenha sido o cara que ficou mais feliz [com o título]. Pode ter alguém igual, mas mais feliz do que eu com certeza não. Nem nos meus melhores sonhos imaginei que ganhar uma Libertadores pudesse acontecer"

Pintado

Pintado, sobre o histórico dia de 26 anos atrás que marcou sua carreira

Nos capítulos anteriores...

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    Sangue e vingança - Heróis do Flamengo na Libertadores de 1981 contam como lidaram com a raiva em final violenta com o Cobreloa

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