O país do mimimi

Por que os chiliques, reclamações excessivas e rodinhas em torno de árbitros são uma mania brasileira

Gabriel Carneiro, Thiago Tassi e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo
Bruno Cantini/Atlético-MG

Em tempos de VAR, cobranças por profissionalização da arbitragem e especialistas no apito em todos os canais de TV há uma instituição brasileira que nunca falha: o mimimi dos jogadores contra a arbitragem. Em jogos de elite ou de várzea, em marcações que vão mudar a história de campeonatos ou deixar tudo como está, a cena é comum: o juiz apita e logo é cercado de reclamões inconformados.

São contestações muitas vezes ostensivas, com toques de chilique, e as convencionais rodinhas em torno do responsável pela condução do jogo, que não consegue tempo, espaço ou condições para falar com seus auxiliares ao mesmo tempo em que precisa tomar uma decisão. É claro que os árbitros erram, inclusive no futebol brasileiro, mas toda história tem outro (s) lado (s), e os jogadores não são apenas vítimas deste processo.

"Aqui no Brasil é exagerado, chegou a um ponto em que a reação parece ensaiada", identifica Arnaldo Cezar Coelho, árbitro brasileiro nas Copas do Mundo de 1978 e 1982 e hoje comentarista de arbitragem da Rede Globo.

Arnaldo e uma série de outros profissionais que apitaram no Brasil e fora conversaram com o UOL Esporte sobre o mimimi dos jogadores contra a arbitragem. Falta respeito? Falta autoridade? Faltam regras mais claras (pode isso, Arnaldo?) ou até mais punições? No país que tanto fala de arbitragem o comportamento de todas as partes envolvidas está em debate.

Paul Ellis/AFP Paul Ellis/AFP

Falta de autoridade dos árbitros explica

O Liverpool se classificou para a final da Liga dos Campeões da Europa no último dia 2 em uma partida contra a Roma marcada por decisões contestáveis da arbitragem. Os ingleses não aceitaram um pênalti marcado para os italianos e ainda um gol marcado por Dzeko em posição duvidosa, enquanto o time eliminado questionou dois pênaltis não marcados para si contra o Liverpool. O excesso de erros levou a reclamações e argumentações, mas houve respeito. Nada de rodinha em torno do esloveno Damir Skomina.

E se esse tanto de erro fosse cometido em uma partida no Brasil? 

"Há uma diferença cultural evidente (entre Brasil e Europa), mas há também essa questão da autoridade do árbitro. Os árbitros estão se deixando levar por essa encheção de saco, porque tem jogador que toda hora se joga no chão, o cara dá grito, o cara faz piti, aí de tanto encher o saco do árbitro vai encher o saco do bandeira, vai encher o saco do adicional e nada acontece, por isso eu penso que teria que ter mais autoridade", critica Carlos Eugênio Simon, árbitro brasileiro em três edições da Copa do Mundo (2002, 2006 e 2010) e hoje comentarista de arbitragem dos canais Fox Sports.

Os árbitros têm que se impor mais em campo, entrar em campo e falar: "Espera um pouquinho, velho. Só um pouquinho. Não tem muita conversa: eu vou apitar e você vai jogar bola".

Carlos Eugênio Simon

Carlos Eugênio Simon, Ex-árbitro, comentarista de arbitragem

Edu Andrade/Agência Freelancer Edu Andrade/Agência Freelancer

Erre, mas seja firme

"Eu tive um instrutor de árbitros que falou: é melhor um árbitro firme e errado que um árbitro certo, mas com dúvida, entende?". Salvio Spinola, árbitro de Eliminatórias de Copa do Mundo e final de Copa América, hoje comentarista de arbitragem dos canais ESPN, leva a lição adiante.

De acordo com essa teoria, a falta de autoridade ou hesitação dos árbitros em marcações mais significativas faz com que os jogadores tentem tirar proveito: se o juiz está na dúvida, o jogador vai para cima dele tentando impor seu lado pela pressão, mas se a marcação foi firme a chance de isso acontecer diminui muito. Ainda que seja um erro. "Existe o fator cultural, de conduta e comportamento do jogador, e existe o fator de personalidade do árbitro, quem é o tipo de árbitro que permite esse tipo de reclamação por conta de uma fraqueza dele próprio", diz Salvio.

Há casos emblemáticos de indecisão da arbitragem em jogos recentes do futebol brasileiro, como o gol marcado por Róger Guedes, pelo Atlético-MG, contra o Corinthians, pela terceira rodada do Brasileirão. Na jogada, o escanteio foi batido pela direita, houve um desvio no primeiro pau e a sobra ficou com Ricardo Oliveira, que finalizou na trave. No rebote, Róger Guedes fez o gol. O árbitro validou o lance, a torcida vibrou, Róger Guedes foi abraçado pelos companheiros, mas uma indicação do adicional de linha de fundo após quase um minuto causou a anulação do gol por causa de um toque de mão de Ricardo Oliveira. 

Antes disso, o árbitro Dewson Fernando Freitas da Silva havia sido cercado pelos jogadores do Corinthians.

Jogadores que "apitam"

Quando a reclamação passa do ponto

Ricardo Duarte/Inter Ricardo Duarte/Inter

D'Alessandro

Experiente meia do Internacional é conhecido pelo estilo explosivo e tem fama de tentar interferir na decisão dos árbitros. Segundo o argentino, foi tudo criado pelos jogadores do Grêmio para fazer com que ele tome cartões que normalmente não tomaria.

Miguel Schincariol/Getty Images Miguel Schincariol/Getty Images

Dudu

Muito emocional, o atacante do Palmeiras tem o costume de reclamar acintosamente contra marcações da arbitragem, o que levou à fama criada pelos rivais. Na semifinal do Paulistão, contra a Ponte Preta, o capitão se irritou tanto que tropeçou.

Daniel Vorley/AGIF Daniel Vorley/AGIF

Balbuena

Zagueiro do Corinthians, que também é capitão do time frequentemente, tem chamado atenção pela postura agressiva contra a arbitragem: em caso de dúvida, ele parte para cima e exerce pressão. Na final do Paulistão seus gestos foram claros.

Antônio Cícero/Photopress/Estadão Conteúdo Antônio Cícero/Photopress/Estadão Conteúdo

Petros

Meio-campista do São Paulo também é conhecido por pressionar árbitros em lances de hesitação. Em amarelo por reclamação em 2017, se disse perseguido por um lance de 2014, quando empurrou o árbitro Raphael Claus.

Curto De La Torre/AFP

Técnica de Oliver (e Arnaldo)

Michael Oliver é um árbitro inglês de 33 anos que, de acordo com o goleiro italiano Buffon, tem uma "lata de lixo no lugar do coração".

A Juventus de Buffon havia sido derrotada por 3 a 0 dentro de seu estádio, para o Real Madrid, no jogo de ida das quartas de final da Liga dos Campeões na Europa. No duelo de volta, na Espanha, a equipe italiana vencia pelo mesmo placar até 47 minutos do segundo tempo, quando Lucas Vázquez dominou de peito, na entrada da pequena área, e Benatia o derrubou antes de o goleiro da Juve ficar com a bola. Oliver marcou o pênalti que adiante seria convertido por Cristiano Ronaldo contra o gol de Szczesny e classificaria o Real sem prorrogação. Espera aí... Szczesny?

Em gesto explosivo, Buffon e seus companheiros partiram para cima de Michael Oliver, sendo o goleiro o primeiro a chegar e mais revoltado pela marcação. Ele foi expulso no ato, e Arnaldo Cezar Coelho explica a técnica utilizada pelo árbitro para tomar esta decisão.

"O árbitro tem que ser treinado para quando partirem todos os jogadores ele pega o primeiro que parte, dá o cartão e parte para o confronto com aquele primeiro jogador. É uma técnica que eu usava e é uma técnica que o juiz inglês Michael Oliver usou, quando os jogadores da Juventus foram para cima. Ele pegou o Buffon e já deu o vermelho. Pode ter sido até exagerado, mas inibiu, porque todo mundo viu que o juiz botou para fora. Agora se o árbitro se deixa cercar e não toma providência nenhuma, aí é ruim", diz o ex-árbitro, que conduziu astros internacionais na final da Copa do Mundo de 1982, entre Itália e Alemanha.

Bruno Cantini/Atlético-MG Bruno Cantini/Atlético-MG

Árbitros não têm proteção

Todo mundo sabe que a arbitragem não é profissionalizada no Brasil. As pessoas que fazem este trabalho não têm carteira assinada e benefícios, por exemplo, e recebem apenas cachês por suas atuações em partidas. Só que o não cumprimento das leis trabalhistas está longe de ser o único problema da classe, como identifica Carlos Eugênio Simon em tom crítico.

"Não é possível um negócio que envolve bilhões e bilhões de dólares, em que os jogadores têm um aparato por trás, com médicos, fisioterapeutas, psicólogos, manter o árbitro como aquela figura solitária. Profissionalização não quer dizer só salário, quer dizer criar condições para os caras exercerem a sua profissão na plenitude, com reuniões, encontros de árbitros, encontro com os instrutores, psicólogos médicos, fisioterapeutas. Hoje o árbitro se machuca é igual à minha época, vai procurar um médico amigo dele para fazer exames. Não evoluímos em nada", conta o comentarista.

Em 2017, a CBF contratou um seguro de vida e de acidentes pessoais em favor dos árbitros, mas somente quando no exercício de suas atividades e se o problema causa incapacidade temporária. Esta medida faz parte de um pacote recente de novidades promovido pela entidade, que realiza cursos de aperfeiçoamento periódicos para os árbitros e aumentou a cobrança por alto desempenho com um novo centro de pesquisa e análise da arbitragem - inclusive de seus erros, que são divulgados em relatório.

O árbitro de vídeo (VAR, na sigla em inglês) também faz parte deste processo para corrigir erros que, de acordo com o presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, Marcos Marinho, "ocorrem menos por incapacidade, mas por impossibilidade humana de percepção de alguns fatos."

O bom árbitro é o que domina as regras, sente o jogo, respeita seus princípios, sua dinâmica, atua com igualdade de critério, serenidade e firmeza, a fim de que a bandeira da arbitragem, que é legitimar o resultado das partidas, seja sempre alcançada.

Alício Pena Júnior

Alício Pena Júnior, Ex-árbitro, vice-presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, no livro de regras do futebol 2017/2018

AFP AFP

Impunidade de tribunais contra os jogadores

Aos 79 anos, o ex-árbitro Romualdo Arppi Filho tem uma visão clara sobre o que considera o principal incentivador do mimimi dos jogadores brasileiros contra a arbitragem: falta de punição. Responsável pela condução da final da Copa do Mundo de 1986, entre Argentina e Alemanha, além de três edições dos Jogos Olímpicos em que representou o Brasil, o ex-árbitro Fifa observou ao longo da carreira e também na atualidade que as condenações por indisciplina de jogadores são mais rápidas na Europa.

"Na Europa o jogo é no domingo e segunda-feira o jogador expulso é condenado. Três, quatro, cinco jogos. Quer recorrer? Pode recorrer, recorre para o Papa, entendeu? Estou falando uma retórica. Mas aqui no Brasil o jogo é no domingo o jogador que foi expulso vai ser julgado daqui a 20 dias, 30 dias, porque tem que sair no jornal, na publicação tem que proclamar, fazer um monte de coisa e depois de cinco ou seis jogos o cara é punido, mas entram com o efeito suspensivo e o jogador joga. Na Europa não tem nada disso, na Europa você vê um caso ali outro aqui de reclamarem. Em jogos internacionais você faz o relatório, manda e no dia seguinte é julgado", diz o árbitro aposentado, que também lembrou-se de Real Madrid 1 x 3 Juventus em sua análise.

"Se o árbitro aqui no Brasil desse um pênalti como foi lá, no último minuto, o que aconteceria? Uma coisa eu te garanto: não iam cobrar esse pênalti de jeito nenhum", aposta. "Nossos jogadores estão acostumados com juízes que não tomam providência e sabem que depois não vai acontecer nada. Durma com esse barulho", conta a voz da experiência.

Thiago Bernardes/Framephoto/Estadão Conteúdo Thiago Bernardes/Framephoto/Estadão Conteúdo

Punições que não resolvem nada

Os frequentes erros de arbitragem do futebol brasileiro levam a um cenário de forte pressão contra as comissões, federações e os próprios profissionais. Na final do Campeonato Paulista de 2018, por exemplo, o Palmeiras vetou um árbitro e o Corinthians vetou outro, sendo determinado Marcelo Aparecido Ribeiro de Souza como responsável pela condução do jogo. O resultado já é conhecido de todos: houve hesitação, polêmica que se arrastou para os tribunais e tormento até na vida pessoal do árbitro de 45 anos, como revelou o UOL.

Em abril, o árbitro Fifa Wagner Reway, da Federação do Mato Grosso, e seus auxiliares Fábio Rodrigo Rubinho e Marcelo Grando foram afastados pela CBF em razão das polêmicas na partida entre Vitória e Flamengo, pelo Brasileirão - na ocasião, o árbitro expulsou Everton Ribeiro por evitar um gol com a mão, sendo que ele o fez com a cabeça. O mesmo Reway já havia sido afastado por 30 dias em 2017, quando deixou de punir os flamenguistas Rhodolfo e Felipe Vizeu, que trocaram agressões durante partida contra o Corinthians. Punições, punições, e...?

"Agora puniram o Reway, semana que vem quem será? O Pedrinho? O Joãozinho? Ano passado puniram um monte, o que mudou? Punem, colocam na geladeira, mas e a mudança estrutural?", questiona Carlos Eugênio Simon, antes de completar: "Os árbitros hoje entram com um trevo na cabeça, tentando agradar A e B. Aí eles desagradam todos".

Temerosa por punições administrativas, inclusive, uma série de árbitros da atualidade se recusou a falar sobre o mimimi dos jogadores.

Como melhorar o cenário?

Alternativas apontadas por especialistas sobre o assunto

Cesar Greco/Palmeiras Cesar Greco/Palmeiras

Profissionalização

No futebol mexicano há um encontro de árbitros logo após as rodadas para que se avalie tudo o que rolou, entre erros e acertos. No Brasil isso é impossível, porque os árbitros não se dedicam exclusivamente ao futebol e têm outros afazeres. Arbitragem é uma tarefa para horas vagas. "Ter remuneração mensal é ter estrutura. Porque a falta de estrutura é que faz o árbitro titubear", identifica Sálvio Spinola. Na Argentina, por exemplo, o árbitro recebe por mês. A profissionalização, então, viria com segurança financeira e segurança de trabalho.

Divulgação/CBF Divulgação/CBF

Fim do sorteio

Diversos árbitros e alguns dirigentes arbitrais são contra a realização de sorteio para definir escalas. O principal argumento é a falta de meritocracia: um árbitro reconhecidamente bom pode ficar fora de várias rodadas por não dar sorte no sorteio - e, além disso, perde o ritmo de competição e a chance de faturamento financeiro. Também há a queixa por ninguém selecionar perfis de árbitros para determinados jogos: alguém menos passivo em um clássico, por exemplo. Não se coloca o melhor árbitro para apitar o jogo mais importante.

Diego Salgado/UOL Esporte Diego Salgado/UOL Esporte

Entrevista coletiva

Há quem defenda o direito de os árbitros se expressarem após os jogos em entrevistas coletivas, como ocorre com os treinadores dos times envolvidos. A ideia é que isso proporcione transparência e ajude a esclarecer questões polêmicas. Carlos Eugênio Simon, no entanto, alerta para a necessidade de realização de media training antes destes pronunciamentos, para que não ocorra algo como foi com Thiago Duarte Peixoto, que chorou diante das câmeras por expulsar o jogador errado em um jogo Palmeiras x Corinthians.

Divulgação/Fifa Divulgação/Fifa

E o VAR, né?

O árbitro de vídeo para solucionar lances polêmicos em partidas do futebol brasileiro já está internacionalmente autorizado, mas não ocorre no Brasileirão por motivos econômicos. Já houve capacitação de profissionais para atuar ou lidar com a tecnologia que pode corrigir marcações e resultados, mas a CBF queria que os clubes pagassem pelo uso ao custo de R$ 20 milhões divididos em 380 partidas. Só sete clubes votaram a favor. Em 11 de março, o clássico entre Inter e Grêmio foi o primeiro com tecnologia: nenhuma decisão foi alterada.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

Cruzada pelo respeito à arbitragem

Em julho de 2015, a CBF lançou uma campanha chamada "Cruzada Pelo Respeito". A ideia era observar a conduta de árbitros, jogadores e todas as pessoas envolvidas em um jogo de futebol para que fossem preservados princípios básicos de educação e respeito um pelo outro - a formação de rodinhas em torno dos árbitros são um claro sinal de desrespeito à sua decisão, de acordo com o lema. Em contrapartida, também havia árbitros punidos por grosserias contra jogadores ou treinadores, porque o objetivo era de "melhorar o espetáculo do futebol e reduzir as reclamações em campo". 

A medida foi vista por muitos como dar "superpoderes" aos árbitros. No Brasileirão de 2016, por exemplo, os 13 primeiros jogos tiveram 18 expulsões por reclamação, indicando autoritarismo na condução das partidas. Houve justificativas como "gesticular de forma acintosa, dando soco no ar, contra decisão do árbitro" ou "desaprovar com gestos persistentemente minhas decisões". Passou da mão, todo mundo estava recebendo cartão por qualquer coisa. E não resolveu o problema.

A última vez que esta campanha foi citada pelas plataformas oficiais da CBF na internet foi em 31 de maio de 2016. 

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