Respire e aperte start

O tiroteio que levou dois gamers à morte levanta a questão: como está o psicológico dos players competitivos?

Ana Carolina Silva Do UOL, em São Paulo
Ethan Miller/Getty Images for Esports Arena Las Vegas

Os torneios de eSports nunca foram tão comentados quanto agora. Diante do lamentável tiroteio que matou dois jogadores do game Madden NFL nesta semana, na Flórida, o público geral começa a olhar com curiosidade (e certa preocupação) para este universo. Porém, se os esportes tradicionais não são estigmatizados por atletas que cometeram crimes e foram condenados, parece justo dizer que os eSports não formarão uma geração de atiradores.

No entanto, isso não significa que este universo não tenha seus próprios problemas. Muitos destes novos campeões são jovens e estão no auge da adolescência, época da vida que costuma nos brindar com dilemas e crises muito particulares. Além disso, jogar em nível competitivo não se resume a apertar alguns botões e torcer pelo melhor: a ciência mostra que a exigência motora e mental equivale ao que se vê no automobilismo. Não é brincadeira.

Mas nada justifica o comportamento tóxico de muitos que jogam online. Não pense em cometer um erro em uma partida que não vale nada, porque alguém pode ver seu deslize como motivo para te perseguir com ofensas. Constantes alvos de assédio e ataques, as mulheres que querem jogar em paz precisam se esconder (ou entrar na briga de cabeça erguida, como muitas têm feito). Felizmente, os times profissionais de eSports valorizam muito o acompanhamento psicológico.

Os gamers brilham e podem conquistar o mundo, mas não deixam de ir ao divã.

Theodore Kaye/Getty Images for Hong Kong Tourism Board Theodore Kaye/Getty Images for Hong Kong Tourism Board

Idade complicada

Os torneios oficiais de Madden ou FIFA têm idade mínima de 16. O Brasileirão de PES, da CBF, não tem restrição

A adolescência já impõe suas próprias dificuldades, como a cobrança para escolher o lugar no mundo, mas imagine como seu filho adolescente reagiria em ambientes competitivos de alta pressão e entenda a importância do trabalho psicológico nos eSports. Quem explica é João Ricardo Cozac, psicólogo da equipe de eSports “Vivo Keyd” e presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte.

“Muitos jogadores de eSports estão no final da adolescência, nos primeiros anos da fase adulta. É uma fase de muitas mudanças psicossociais, fisiológicas, emocionais... Mudanças relacionadas com a identidade de ser atleta, de ser humano. Os atletas são adolescentes ou jovens iniciando a vida no esporte e, muitas vezes, com pouco tempo para interagir com o mundo externo. É importante valorizar o trabalho psicológico para que a gente forme gerações cada vez mais capacitadas para agir e reagir no mundo dos games e da vida", afirmou.

"Atividades como práticas de exercício físico, leituras de outros assuntos que os agradem... Quando se nota que os atletas não demonstram outros interesses, o ideal é conversar e entender o repertório motivacional de cada um. É importante que surjam ideias novas até para arejar um pouco a cabeça. Os eSports consomem muito do campo cognitivo do atleta. É importante ter práticas que sejam lúdicas, relaxantes, e que venham de outros horizontes", concluiu João Ricardo Cozac.

Benoit Tessier/Reuters Benoit Tessier/Reuters

O cérebro de um piloto de corrida

Um estudo publicado em 2016 pela German Sport University, de Colônia, na Alemanha, exibiu resultados impressionantes. Mesmo com tantas exigências físicas, poucos esportes tradicionais chegam perto da intensa atividade cerebral que um atleta de eSports precisa realizar. Trata-se de um ritmo cognitivo parecido com o do automobilismo.

“Os níveis de cortisol produzidos são semelhantes aos de um piloto de corrida. Combinando isso à frequência cardíaca, que pode ficar entre 160 e 180 batimentos por minuto, temos algo equivalente ao que acontece em uma maratona. Ainda há a exigência de coordenação motora. Os eSports exigem tanto quanto outros esportes, talvez mais”, disse o professor Ingo Froböse à revista DW, da Alemanha.

“Estamos impressionados com as demandas de coordenação motora e raciocínio. Só com mouse e teclado, os atletas de eSports podem chegar a 400 movimentos por minuto, quatro vezes mais que a média de um ser humano. E são movimentos assimétricos, porque as duas mãos são movidas ao mesmo tempo e em sentidos diferentes. Várias partes do cérebro são utilizadas ao mesmo tempo”, destacou.

Ben Hoskins - FIFA/FIFA via Getty Images) Ben Hoskins - FIFA/FIFA via Getty Images)

Não olhe para o lado, jogador

No tênis profissional, um atleta é orientado a não festejar efusivamente diante de seu adversário, principalmente se tiver pontuado a partir de um erro do rival. Muitos campeonatos de eSports adotam códigos de etiqueta semelhantes, afinal, assim como o tênis, estamos falando de competições que exigem frieza e extrema concentração. Os próprios players profissionais evitam comemorar de forma que possa ser considerada provocativa.

Essa demonstração de respeito e coleguismo pode garantir a estabilidade emocional dos dois lados. "Como em todo esporte profissional, é importante que os jogadores tenham noção de fair play. São companheiros de profissão, companheiros de torneio. Tem de haver sempre um respeito com a pessoa que está jogando do outro lado", explicou Rafael Fortes, o 'Rafifa', jogador profissional de FIFA na equipe do PSG.

A revolta das mulheres gamers

Joe Buglewicz/Getty Images Joe Buglewicz/Getty Images

A cultura do terror

Muitos games deslumbrantes foram anunciados na feira da E3 neste ano, em Los Angeles, nos EUA. Nem tão deslumbrante assim é o comportamento de muitos players online, praticantes de uma cultura de trash-talk. Muitas mulheres que jogam videogame, por exemplo, rotineiramente se veem obrigadas a engrossar a voz no microfone e esconder seus próprios nomes; caso contrário, se forem descobertas como mulheres, podem ser vítimas de assédio.

“Às vezes é o papinho fofo, tipo ‘pô, menina jogando, me adiciona, eu não sou como todos os outros caras’. Se você nega, às vezes eles transformam a situação em ‘vá lavar louça, então, o que está fazendo aqui, sua p...?’. Hoje em dia eu sinto menos isso, parece que eles têm receio de falar comigo porque eu sou teoricamente famosa nesse meio”, disse Nicolle 'Cherrygumms' Merry, dona da equipe de eSports Black Dragons e co-criadora da campanha “My Game My Name”, que incentiva meninas gamers a não esconderem que são meninas.

“Eles sabem que vão ter uma resposta drástica. Mas, no início, era ‘seu lugar não é aqui, volta para a cozinha’. Se você não tem uma cabeça boa, você realmente afunda. É sempre bom ter exemplo de mulheres… Eu sou mais uma entre vários casos de mulheres que sofreram. As meninas no ‘My Game My Name’ mostram o que cada uma já sofreu. Serve de exemplo para as meninas não desistirem e continuarem nessa luta”, afirmou.

Pai ou mãe como "player 2"

Quando o assunto é videogame, isso vale tanto para o universo casual quanto para o competitivo: ter pai e mãe por perto é sempre bom. Afinal, diante da possibilidade de criar um laço de parceria e companheirismo, não faltam relatos positivos de jovens que jogam ao lado dos pais. Mas há também os fatores segurança e aconselhamento.

“Quando era bem pequenininha, eu jogava com o meu pai, com amigos do meu pai e também jogava sozinha de vez em quando. Um dia, um cara que meu pai conhecia do jogo me chamou no Skype e pediu para jogar comigo. Eu era nova, menor de idade, menor de 14 anos, menor de 10 anos!. Eu falei para o meu pai na hora, porque ele sempre me ensinou a falar com ele tudo que acontecia. Na mesma hora, ele me disse que eu não ia jogar”, relatou Nicolle, a ‘Cherrygumms’.

“Hoje em dia, com 21 anos, eu percebo que provavelmente era um pedófilo. Era uma pessoa que queria conversar com uma menina de 10 anos que estava jogando Quake. Isso é um absurdo!”, completou. O psicólogo João Ricardo Cozac reforça o alerta aos pais. “Acredito que seja tarefa dos pais interagir mais com os filhos, entender o que está acontecendo e avaliar se aquela prática está sendo saudável para o desenvolvimento psicológico, afetivo e social”, explicou.

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Electronic Arts promete segurança

Após o tiroteio da Flórida, a Electronic Arts, produtora de Madden NFL e FIFA, promete revisar seus protocolos de segurança e dar suporte às famílias das vítimas.

"Embora estes eventos sejam organizados por parceiros independentes, nós trabalhamos para garantir a integridade da competição. Nós tomamos a decisão de cancelar os três torneios restantes de Madden enquanto revisamos nossos protocolos de segurança. Nós trabalharemos com nossos parceiros e equipes internas para estabelecer um nível consistente de segurança em todos os eventos competitivos", publicou a EA, em texto assinado pelo CEO Andrew Wilson.

"É impensável que Taylor Robertson e Elijah Clayton [vítimas do tiroteio], dois de nossos melhores jogadores de Madden, tenham perdido suas vidas deste jeito. Eles eram competidores respeitados e habilidosos. Exemplos de personalidade no coração da nossa comunidade. O amor deles pela competição ficou evidente nos últimos anos. Estamos comprometidos a ajudar as famílias de Taylor e Elijah neste momento difícil."

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