"E aí, não vai parar?"

É a pergunta que profissionais têm que responder porque, para muitos, futebol não admite cabelo branco

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

Em um país que tanto discute o preconceito em suas mais variadas formas, outro tipo de discriminação passa batido - mesmo aos olhares mais atentos. A fobia com os mais velhos foi alvo do desabafo de Antonio Lopes, 76 anos, pouco antes de sua demissão do cargo de gerente de futebol do Botafogo, em dezembro de 2017.

Ao lado de vários outros profissionais, que se consideram vítima de atos preconceituosos no futebol atual, Lopes quer ser avaliado pela qualidade de seu trabalho, não pelo número que aparece no RG. O UOL Esporte conversou com especialistas e algumas destas pessoas que consideram ter seu espaço reduzido no esporte em razão da idade. Há quem não veja preconceito, mas a simples ascensão de novos profissionais. Mas há, também, Pinho, que você conhecerá adiante, um técnico de 73 anos que fica mais disputado a cada ano vivido.

Tem de tudo. Só não deveria ter preconceito, manifestado às vezes ingenuamente em frases que repetimos todo dia: "Não liga, ele está velho". "Ele passou da idade para isso". "Não está na hora de parar?"

24 milhões de Lopes

Viu o que Antônio Lopes enfrentou durante seus tempos de Botafogo? É um caso extremo, mas muita gente sente isso todos os dias. Hoje, há mais pessoas com 60 anos ou mais ativas no mercado de trabalho do que no passado. E é justamente aí que nasce a discriminação. Nos últimos 60 anos, o país pulou de 3 milhões para os atuais 24 milhões de idosos, com tendência para crescimento de acordo com dados do Censo.

O ritmo é acelerado e as demandas sobre a velhice se acumulam: há a questão da previdência, políticas públicas específicas, serviços, cuidados médicos e também discussões sobre a qualidade de vida na terceira idade. "A sociedade tem preconceitos que foram desenvolvidos durante toda sua história, em que se atribui aos idosos a imagem de alguém pouco ativo. No Brasil, é a imagem da Dona Benta, que ficava no Sítio do Pica-pau Amarelo, numa cadeira de balanço, olhando o movimento. Esta imagem está sendo desconstruída aos poucos. As pessoas passam a ter necessidade de se manter ativas fisicamente e em termos de atividade social também", diz Rosa Chubaci, coordenadora do curso de graduação em Gerontologia da Universidade de São Paulo.

O envelhecimento começa com o nascimento. E a gerontologia se propõe a estudar processos que melhorem a qualidade de vida dos idosos - inclusive do ponto de vista social, pois a terceira idade já implica naturalmente uma série de questionamentos sobre a relevância do ser no contexto em que está inserido. O futebol, obviamente, é um destes contextos.

Eles não vão parar

Divulgação/Comercial Divulgação/Comercial

O técnico mais velho do Brasil

Olímpio Batista Ferreira Júnior, mais conhecido como Pinho, é o técnico mais velho registrado no futebol brasileiro na atualidade. Aos 73 anos, ele trabalha como treinador desde 1979, quando iniciou a carreira no Novorizontino-SP após fazer carreira como centroavante. Ele calcula que o Comercial de Ribeirão Preto, que dirige na Série B (equivalente à quarta divisão) do Campeonato Paulista, é o 71º clube em trajetória perto de completar 40 anos. 

Pinho é considerado um técnico especialista no campeonato em que atua: alcançou seis acessos em oito edições da quarta divisão de São Paulo. É sucesso quase garantido, o que faz com que novas oportunidades de emprego apareçam em volume constante. Ele considera a "Bezinha" como a "divisão mais difícil que tem" porque 40 clubes iniciam a disputa e apenas dois sobem.

O nome do técnico mais velho do Brasil está tão em alta neste contexto que ele assinou contrato com o Comercial ainda em outubro do ano passado. O clube estava reformando seu estádio e sem elenco, mas garantiu o comandante, que só iniciou o trabalho em 8 de abril, com vitória por 3 a 1 contra o XV de Jaú pela primeira rodada da Série B. Preconceito? Ele percebe, mas faz o possível para passar por cima.

Sinceramente, estou começando a vivenciar situações de preconceito, sim. Acho que é porque eu incomodo muita gente. Incomodo treinadores mais jovens que não conseguem emprego, incomodo torcedores, a própria imprensa, os adversários. Perguntam "você não vai parar?" com um bom tanto de ironia. Então, eu também brinco. Digo que tenho 18 anos, vou fazer 19 mês que vem, não tenho motivo para parar. Aí eles já veem que a gente não gostou da situação. Mas eu não ligo

Pinho, Técnico do Comercial, sobre preconceito

Ainda me sinto muito bem, sem problema nenhum. Quando perceber algo eu paro e volto para minha casa. Agora, estou começando a perceber coisas de fora que nunca tinha visto. Curiosamente, é o momento em que eu estou mais confortável do que nunca. Nunca estive tão bem quanto hoje. Sou um cara feliz, consciente, com filhos e netos que já larguei, mas agora não largo mais. Não estou velho coisa nenhuma: a idade me ajuda muito. Se eu não fosse bom, não iriam atrás de mim

Também Pinho, sobre o estágio da carreira

Miguel Schincariol/Ituano FC Miguel Schincariol/Ituano FC

Fora de campo também vale

Em parceria com um site chamado "Maturijobs", especializado em buscar ofertas de trabalho para profissionais com 50 anos ou mais, o Ituano Futebol Clube empregou quatro idosos durante o Campeonato Paulista de 2018. Não era para trabalhar como treinador ou dirigente, mas como uma espécie de steward, um recepcionista e organizador de espaços dentro do estádio.

Em todas as partidas do time do interior no estádio Novelli Júnior, em Itu, os quatro profissionais (dois homens e duas mulheres) recepcionavam torcedores nos principais pontos de acesso, orientavam na busca pelos assentos e, no fim dos jogos, agradeciam pela presença. A função exigia simpatia, organização e conhecimento do espaço. Dentro do clube, que terminou entre os dez melhores do Paulistão, a avaliação do projeto é positiva, mas não há mais calendário de jogos em 2018.

Divulgação/TV Globo Divulgação/TV Globo

"Tem que ser competente"

Joel Santana filosofa quando questionado sobre preconceito em relação à idade no futebol brasileiro. Aos 69 anos, é famoso por ter sido campeão carioca com os quatro times grandes (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco) e dirigido a seleção da África do Sul na preparação para a Copa do Mundo de 2010. Joel está fora da elite do futebol brasileiro há cinco temporadas, após passagem de um mês pelo Bahia.

Ele ainda dirigiu o Vasco na Série B de 2014, o Boavista no Campeonato Carioca de 2017 e o modesto Black Gold Oil, de uma liga semi-profissional dos Estados Unidos, no ano passado. Sua maior ocupação, entretanto, passou a ser como garoto-propaganda. Alvo de ironias em razão de seu modo de falar inglês, ele capitalizou e se tornou sucesso no mercado publicitário, com propaganda de xampu, refrigerante, escola de inglês... Como treinador, em contrapartida, as oportunidades ficaram escassas. E ele acha que falta respeito.

A pessoa tem que ser competente, é isso que esse país precisa entender. Em qualquer ramo na vida você não pode desprezar competência. Seja técnico, jogador, coach, ator, repórter... Ninguém pode tirar isso de você. É por isso que outros países respeitam se você tem competência, tenha 8 ou 80 anos. Aqui não se respeita, se diz que você está ultrapassado. Na vida não tem que ter preconceito em nada. Se a pessoa é talentosa ela é talentosa. Preconceito é a palavra que criaram para ver defeito em alguém que é competente. Cada um tem que viver a sua vida e cada um faz aquilo que gosta de fazer

Joel Santana, técnico de futebol

Ultrapassados?

Vanderlei Luxemburgo é uma das vozes que denunciam preconceito com os mais velhos no futebol brasileiro. Ele não quis dar entrevista sobre o tema ao UOL Esporte porque está lutando contra esse estigma, mas falou em entrevistas recentes mais abrangentes que "os jovens estão mudando o nome de tudo que já existia no futebol brasileiro".

O técnico de 65 anos acha que os novos treinadores aprendem nas escolas termos mais rebuscados ("ponta" virou "extremo" e "contra-ataque" agora é "transição", por exemplo) e aplicam para serem considerados modernos. Isso, ainda de acordo com a teoria do pentacampeão brasileiro, tira o espaço de quem ficou "ultrapassado" porque "não usa essas palavras". 

Atualmente, é quase imprescindível que treinadores brasileiros já possuam (ou estejam em busca) das quatro licenças distribuídas pela CBF. É sinônimo de modernidade, atualização e conhecimento. E a partir de 2019, será obrigatório obter licença de especialização na área, mesmo que os cursos ainda não sejam reconhecidos, por exemplo, pela Uefa. Então, como ficam os treinadores com experiência reconhecida e que não têm o diploma, seja porque não atingiram a nota ou simplesmente não querem se submeter a 800 horas de aulas?

Para 32 profissionais, a CBF concedeu, em dezembro do ano passado, uma Licença Honorária, usando como critério a idade (mais de 60 anos) e o mérito por títulos no Brasil ou fora. Luxemburgo, Joel Santana e Antonio Lopes, entre os já citados neste texto, foram alguns dos agraciados. Outros nomes que aparecem são os de Carlos Alberto Parreira, Evaristo de Macedo, Levir Culpi, Nelsinho Baptista, Emerson Leão, Sebastião Lazaroni, Abel Braga, Felipão, Carpegiani, Autuori, Muricy Ramalho, Oswaldo de Oliveira, Geninho e tantos outros que não são tidos como "modernos" - mas agora têm diploma da CBF.

Divulgação/ABC Divulgação/ABC

Laço nas costas

"Tem uma frase que eles gostam de usar muito: está superado, não tem mais gás para trabalhar".

Aos 69 anos, Geninho, técnico campeão brasileiro de 2001 pelo Atlético-PR e paulista de 2003 pelo Corinthians, está sem clube desde julho de 2017. Após um ano e meio de trabalho, pediu demissão do ABC-RN meses após subir o time da Série C para a Série B do Campeonato Brasileiro (e conquistar o bicampeonato estadual). Sua última vez na elite foi em 2014, com o Avaí. O mercado do profissional com passagens por clubes como Santos, Atlético-MG, Sport, Vasco e Botafogo está reduzido. 

"Há um pé atrás de algumas pessoas, principalmente aquelas que conhecem menos ou acompanham menos a gente. Porque quem acompanha vê o pique e fala 'poxa, nem parece a idade que tem'. Agora está meio na moda um treinador mais novo. Os caras acham que os mais novos estão estudando mais, mas qualquer um que faz o curso tem esse conhecimento. Talvez eu esteja até na idade de parar, mas toda a vez em que vou fazer um trabalho me sinto motivado e faço no pique. Enquanto eu tiver esse pique e acreditar em mim, vou seguir", diz o treinador.

Geninho, inclusive, acredita que ficou melhor com a idade: "Nos últimos quatro campeonatos eu subi três times: Sport, Avaí e ABC. Em algumas situações, o fato de ser um pouco mais velho e ter mais experiência te ajuda a administrar. Certos problemas não são novidade, como não se levar por uma pressão de imprensa, torcida ou diretoria, ser mais respeitado pelo jogador, esse tipo de coisa. Você vem com o laço nas costas".

Fernando Santos/Folha Imagem Fernando Santos/Folha Imagem

"Poderia trabalhar mais quatro anos, tranquilo"

Jair Picerni não dirige clubes desde 2012. Ao UOL, revela que chegou bem perto de voltar ao futebol no fim do ano passado, quando teve conversas com um time dos Estados Unidos. O San Francisco Deltas é ligado a Ricardo Geromel, irmão do zagueiro gremista Pedro Geromel, e José Carlos Brunoro, diretor-executivo conceituado no futebol brasileiro. A ideia era um projeto de duas temporadas para colocar o time nas principais ligas do país. Mas, segundo o profissional de 73 anos, "as ideias não bateram e não deu certo".

Medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de 1984 como técnico da seleção brasileira, Picerni chegou a dirigir o Corinthians na década de 80, mas teve evidência, mesmo, no começo do século. Foram dois vice-campeonatos nacionais e uma final de Copa Libertadores, em 2002, pelo São Caetano. O feito o credenciou a comandar Palmeiras (na Série B de 2003 e na Série A de 2006) e Atlético-MG.

Hoje em dia, não espera mais por convites para trabalhar como técnico. Às vezes, um ou outro até parece, mas o foco está no descanso de sua residência na cidade paulista de Vinhedo. Ele joga tênis, faz caminhadas e acompanha o futebol de perto, a ponto de falar com conhecimento de causa de todos os eventos atuais do esporte no Brasil e no mundo. Inclusive sobre o limbo vivido pelos profissionais "ultrapassados".

Você vê na Inglaterra e em outros países técnicos que trabalham até 75 anos, mas o brasileiro pensa diferente. Eu poderia muito bem trabalhar mais uns quatro anos, tranquilo. Não estou preocupado com minha idade. Claro que na descida nós temos que botar mais borrachinha embaixo do sapato para ir freando, mas é isso mesmo (risos). A cobrança é maior. Se você é vencedor, você é o cara. Se perde, você é jovem e não vai durar nada ou está com idade e é ultrapassado

Jair Picerni, técnico de futebol

A visão de quem está fora do jogo

Casos como os de Antonio Lopes, Joel Santana, Vanderlei Luxemburgo, Geninho e Jair Picerni se acumulam: há um grande número de profissionais do futebol que acreditam estar excluídos do mercado de trabalho pela idade avançada, não pela qualidade (ou falta dela). Por outro lado, é impossível negar a renovação de nomes do futebol, ainda mais no contexto pós-7 a 1 da Copa do Mundo de 2014. Há novas ideias e novos métodos de treinamento ou gestão. Tudo isso abraçado por novos profissionais na faixa de 30 ou 40 anos.

O processo de renovação é visto como natural. Inclusive por quem está fora dele. "De uma maneira geral, todo ser humano idoso perde muito da procura, porque 'ele tem muita idade', 'já está rodado demais'. Mas eu entendo que isso é perfeitamente normal, todo o ramo de atividade é assim. Eu não vejo isso como preconceito, não", diz Rubens Minelli, fora do futebol por opção própria há 15 anos.

"Eu tenho 89 anos, faço 90 anos em dezembro e de vez em quando eu recebo telefonema me perguntando se eu quero trabalhar. Mas eu não quero voltar, pelo amor de Deus (risos). Eu já cumpri a minha cota, está muito bom. Para mim é até surpresa que eles [Joel Santana, Luxemburgo, entre outros] ainda estejam em atividade, porque, pelo andar da carruagem, já estão com as idades vencidas", critica o veterano.

Pinho, o técnico mais velho em atividade hoje em dia, diz que tenta encontrar espaço para companheiros de sua época nas conversas com dirigentes, mas enfrenta obstáculos: "Os clubes não aceitam, dizem que achavam que tivesse morrido, essas coisas. Não aceitam os mais velhos. Mas estou tentando ajudar".

Faixa de idade dos técnicos da Série A (em abril de 2018)

  • 30 anos

    Mauricio Barbieri (36, interino do Flamengo), Thiago Larghi (37, interino do Atlético-MG) e Jair Ventura (39, do Santos).

    Imagem: Javier Brusco/AP
  • 40 anos

    Odair Hellmann (41, Internacional), Roger Machado (42, Palmeiras), Alberto Valentim (43, Botafogo), Fábio Carille (44, Corinthians), Fernando Diniz (44, Atlético-PR), Enderson Moreira (46, América-MG), Zé Ricardo (46, Vasco) e Rogério Micale (49, Paraná).

    Imagem: Daniel Vorley/AGIF
  • 50 anos

    Gilson Kleina (50, Chapecoense), Vágner Mancini (51, Vitória), Marcelo Chamusca (51, Ceará), Guto Ferreira (52, Bahia), Diego Aguirre (52, São Paulo), Mano Menezes (55, Cruzeiro) e Renato Gaúcho (55, Grêmio)

    Imagem: Ricardo Rimoli/AGIF
  • 60 anos

    Abel Braga (65, Fluminense) e Nelsinho Baptista (67, Sport)

    Imagem: Lucas Merçon/Fluminense

Carro velho?

Por mais que a renovação seja um processo natural, os profissionais mais velhos se incomodam pelo que veem como preconceito de clubes, torcedores e imprensa em relação a sua idade. Para eles, coloca-se o velho como incapaz. Esta visão, reforçada pelos números do Datafolha que indicam uma sociedade que discrimina idosos, aparece também no nosso cotidiano. 

Segundo especialistas em estudos gerontológicos há uma tendência de ligar o conceito de pessoa velha com o de carro velho. Quem já teve um veículo mais rodado pode sentir que ele atrapalha e precisa de mais cuidados que o normal. O adequado, neste caso, é saber que você não está falando do outro, e sim de si mesmo, já que todos envelhecemos. A ideia dos estudiosos da área é intervir neste processo de preconceito a partir da infância, mostrando o que é envelhecer e como se preparar para a velhice. Afinal, já somos 24 milhões de Antonio Lopes.

Se a pessoa está bem para exercer alguma atividade, ela pode, sim, exercer esta atividade. E as outras pessoas devem usufruir da experiência dela. O Brasil está no caminho de incentivar uma velhice ativa e saudável, aproveitando o máximo da capacidade das pessoas. Você vai querer ser respeitado quando tiver essa idade? Então respeite quem tem história de vida e não o coloque como alguém incapaz de exercer atividades

Rosa Chubaci, coordenadora do curso de graduação em Gerontologia da USP

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