O outro lado da Europa

O futebol sem glamour: brasileiros mostram como é e por que vale a pena jogar nos porões da Europa

Gustavo Franceschini Do UOL, em São Paulo

Em 2015, 1.078 jogadores deixaram o Brasil atrás de uma bola - só Portugal, destino mais comum, recebeu 183 representantes do pé de obra nacional, em um mercado que movimentou US$ 303,3 milhões (R$ 955 milhões). Os números, divulgados pela Fifa, fazem parecer que todas as histórias são iguais a de Neymar ou Daniel Alves. Mas não são. O UOL Esporte mostra a realidade de um grupo de brasileiros que joga a terceira, quarta, quinta ou até sexta divisões dos grandes centros da Europa e que fica às margens das fortunas pagas em Barcelona e Madri. 

Sem perspectiva no Brasil, eles chegam a tirar dinheiro do próprio bolso para tentar a sorte no outro lado do Atlântico. Embarcam às cegas, sem saber se vão conseguir arrumar um clube e muito menos como falarão a língua. Na chegada, convivem com salários de 200 euros (R$ 687) e dividem apartamentos apertados com outros imigrantes em situação parecida. O perfil desse aventureiro varia. Eles podem ser jovens de classe média alta ou veteranos mais pobres que estão fazendo uma última aposta.

A ideia é ganhar a vida neste porão da Europa. Times semiamadores, que não treinam todos os dias e nunca têm grana de sobra. Há quem siga sonhando com a vida de Jamie Vardy, o inglês do Leicester que há cinco anos atuava em uma liga regional e hoje é candidato à Bola de Ouro. Só que nem todos podem viver esse conto de fadas. Para a maioria, subir uma ou duas divisões, atingir um salário razoável e aproveitar a qualidade de vida da Europa compensa a distância da família e todos os perrengues longe de casa.

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Ele apostou na Terceirona da Espanha e um infarto mudou tudo

Não havia “oferta”, salário certo ou destino garantido. Quando Lucas Covolan pisou no avião rumo a Madri, sonhava que a Europa lhe desse o que o futebol brasileiro não conseguiu. Depois de seis anos à espera de uma chance em clubes grandes ou peregrinando em pequenos, ele deu um salto no escuro. Não esperava luxo; queria a estabilidade que o país natal não podia oferecer. Uma meta simples, mas com um caminho bastante frágil, como mostra a história desse goleiro de 22 anos.

A força de vontade e o acaso determinam o futuro daqueles que, como ele, embarcam nessa viagem. Lucas conseguiu uma vaga na terceira divisão espanhola porque não tinha para onde ir e aceitou treinar de graça. O titular se machucou, o primeiro reserva brigou com o treinador e ele ganhou o primeiro contrato. No segundo ano de Espanha, achou que tivesse encontrado o padrinho perfeito. E era só o início de um caminho tortuoso. 

Tinha um projeto bem bom, um treinador que apostava muito em mim e tinha bastante contato na Europa. Ele falou que ia me pôr para jogar e me ajudar. Na semana seguinte ele infartou e morreu"
 

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Na Inglaterra, Lucas encarou a xenofobia e foi "rebaixado"

A bola levou Lucas para a Inglaterra quando um treinador argentino assumiu o Whitehawk, da quinta divisão, e levou consigo uma legião de brasileiros. Durou pouco mais de nove rodadas. Quando o técnico foi demitido, a direção do clube decidiu dispensar quase todos os sul-americanos. Lucas ficou, mas a relação com o inglês que passou a comandar o clube logo tornou-se insuportável. 

“Ele era racista, não gostava de estrangeiros. Era estúpido, não respondia quando a gente cumprimentava. Uma vez a gente perdeu de 2 a 0 fora de casa e ele falou que a culpa foi minha. Que eu tinha perdido o jogo, que eu era horrível, que não sabia como eu tinha chegado ali. Comecei a olhar para ele e dizer sim, sim, sim. Ele falou: ‘Se você falar sim mais uma vez vou dar um soco em você’”

Dias depois, Lucas foi emprestado para um time da sexta divisão inglesa.

Sucesso, fama e fortuna? Jogar na Europa pode ser bem mais duro que no Fifa

Por que vale a pena encarar esses desafios?

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Qualidade de vida

"Aqui é diferente, estão todos no mesmo transporte público. Todo mundo vive bem e sem tanto luxo", diz Rafael Conrado, goiano de 21 anos que joga na sexta divisão alemã. A frase é dele, mas poderia ser de qualquer outro entrevistado. Não há quem discorde: Vale a pena passar alguns perrengues para poder viver na Europa e não se preocupar tanto com segurança, desigualdade social ou custo de vida. Ter acesso a uma cultura diferente, aprender uma segunda língua e conhecer lugares que antes pareciam muito distantes são adicionais muito bem-vindos ao pacote.

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Pagamento em dia

Nem tudo funciona perfeitamente na Europa, diga-se. Quem passou por Espanha, Portugal e Itália, por exemplo, eventualmente se queixa de atrasos ou calotes. Em geral, porém, a regra é que os salários sejam depositados em dia, enquanto no Brasil nem a primeira divisão consegue honrar os compromissos. E o custo de vida é menor: "No Brasil você recebe no máximo R$ 1,5 mil, que é quase 400 euros. Se você receber 400 euros aqui dá para sobreviver. Com R$ 1,5 mil no Brasil você não vive como aqui", conta Walder, que atua na Alemanha há sete anos.

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Estrutura dos clubes

Na Europa, a maioria dos clubes possui um estádio pequeno, de cerca de 5 mil lugares, e às vezes um ou dois campos de treinamento. As torcidas não são grandes, mas comparecem semanalmente e dão ares de profissionalismo a ligas semiamadoras. "Comparado à grande maioria dos clubes do Brasil, exceção feita aos grandes, aqui está igual ou melhor. Campos, uniformes, alimentação, alojamento pro clube...", conta Raví Paschoa, ex-goleiro do Corinthians que ganhava a vida dirigindo Uber em São Paulo e decidiu se arriscar na terceira divisão portuguesa, pelo Sertanense.

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Empresários levam para a Europa, mas às vezes podem custar caro demais

Quase sempre é um amigo de um amigo: “Ele tem contato nos clubes e disse que estão procurando jogador”. O interessado manda seu DVD com as melhores jogadas, passa o currículo e espera a proposta. Alguns viajam às custas do empresário, outros põem a mão no bolso. Sami Savicevik é goiano e estava na base do Atlético-GO quando soube de um empresário que estava levando meninos para a Alemanha. Ele pedia R$ 12 mil aos interessados, dizendo que o valor custearia a passagem e a estadia até que os jogadores encontrassem um clube.

Sami foi para o Stahl, clube da região metropolitana de Berlim que disputa a sexta divisão local e abriga outros quatro brasileiros. Os primeiros meses e o contato com outros jogadores na mesma situação fizeram o jovem de 19 anos perceber que havia caído em um golpe.

Eu não tenho vergonha de contar isso não. Ele falava que aqui era assim, que todo mês eu ia ter de pagar 300 euros por mês para o clube. Ele dizia que era o custo da minha transferência, que o dinheiro era para meu ex-clube no Brasil. Ele falava a língua e a gente não entendia nada. Aí eu descobri, parei de pagar e ele sumiu”

A verba era dos pais de Sami, que estavam tirando do próprio bolso para que o filho trabalhasse. A saída do Brasil tinha sido sem custo e eles estavam arcando com um acordo entre o empresário e os cartolas alemães, que cobravam para abrir as portas para os jogadores sul-americanos. Quando percebeu, se livrou do agente golpista e se acertou com o clube europeu. Ele não é uma regra. A maior parte dos jogadores ouvidos pela reportagem fez algum investimento para ir à Europa, mas nem todos foram ludibriados dessa forma. De algum perrengue, no entanto, ninguém escapou. 
 

Quem se deu bem mal: pedido de abrigo e "corte" no aeroporto

Durante uma temporada, Sami jogou no Stahl ao lado de outros quatro conterrâneos. Receptivo a estrangeiros, o clube recebeu uma série de brasileiros para testes. Aceitou alguns e recusou outros. Um deles, ludibriado pelo mesmo empresário no caminho até a Europa, se viu sozinho na cidade, sem ter onde ficar ou conhecimento de alemão depois de ter sido rejeitado em uma peneira. Só não dormiu na rua porque pediu abrigo no apartamento que os outros brasileiros dividiam.

O outro lado da bola é recheado de histórias como essa, de aspirantes que estão dispostos a sair de casa em busca de um sonho incerto. Alguns nem cruzam a fronteira. Em 2015, duas dezenas de jovens se reuniram no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, onde embarcariam para um torneio amistoso na Turquia. Um empresário havia montado um time às pressas com conhecidos de conhecidos para enfrentar Galatasaray e River Plate em pré-temporada. Eles substituiriam o Santos, que desistiu da disputa em cima da hora. 

Eram jogadores sem entrosamento algum, que sequer tinham se encontrado e foram “convocados” por Whatsapp para tapar o buraco dois dias antes. Quem foi teve a oportunidade de jogar contra nomes como Felipe Melo e Sneijder. Ninguém teve chance de fazer teste ou ficar e o time foi goleado, mas a experiência agradou. O problema é que, dos 22 chamados ao aeroporto, só 15 puderam embarcar, porque faltou passagem para os demais. Os sete dispensados voltaram de Guarulhos com malas cheias e mãos abanando.

Pouco dinheiro e com ajuda de tradutor: como é a vida na Europa

  • Trabalho com visto de estudante

    Quem sai do Brasil nessas condições normalmente viaja como turista e gasta os três meses permitidos em busca de um clube. Quando acertam, os jogadores normalmente precisam pedir visto de estudante, porque os clubes semiamadores não querem assumir os custos da permissão para trabalho. Resultado? Eles ganham pouco e não podem complementar a renda com outro emprego. Pior ainda, são obrigados a voltar periodicamente ao Brasil para renovarem a permissão.

  • Ano sem dinheiro ou emprego

    Fernando Martins foi para Portugal com tudo certo para jogar na quarta divisão. Quando chegou no clube, porém, soube que o presidente tinha gastado o dinheiro da sua transferência com uma outra dívida. Com a janela de transferências já fechada, ele ficou a ver navios. O visto não permitia que ele trabalhasse e o clube não fez um contrato. Passou um ano sem dinheiro, vivendo com a ajuda do empresário e pensando em parar de jogar antes de finalmente acertar com outro time.

  • A língua e o tradutor do Google

    Nivetom Cruz trocou Pernambuco pela Alemanha sem saber uma palavra de alemão. Chegou a passar 30 minutos de preleção sem entender uma palavra e tinha de apelar ao Google Translate para tentar se fazer entender. Certa vez, no treino, percebeu que os companheiros tiravam sarro da sua falta de compreensão, se irritou e chegou mais forte em um deles. Por sorte, o técnico entendeu. Convocou uma reunião, deu bronca e pediu apoio ao estrangeiro.

  • Alojamento quase militar

    Em geral, os clubes custeiam apartamentos comuns para que os jogadores dividam o espaço. Em países mais pobres, porém, eles precisam ir para o tradicional alojamento. Bruno Santos viveu isso em Portugal, dividindo quarto com outros três jogadores. Não bastasse a falta de privacidade, ainda tinha de lidar com uma rotina de exército, com hora para acordar, comer e dormir. "Se chegasse atrasado, levava bronca", relembra o jogador.

Quanto eles recebem em cada país?

  • Destino número um

    Portugal é o país mais procurado. Pela língua, pela facilidade para obter visto e pelo acesso dos empresários aos clubes locais. Abaixo da terceira divisão, porém, é comum os clubes pagarem mal e nem sempre em dia. Por mês, os brasileiros costumam ganhar cerca de 200 euros.

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Estrutura e portas abertas

    A Alemanha se destaca pela grande estrutura de futebol. São 12 divisões, sendo que até a sexta há espaço para estrangeiros. Pelo histórico de sucesso dos brasileiros, as portas estão abertas, só que a língua costuma facilitar os golpes dos intermediários. Na sexta divisão, o salário médio é de 300 euros.

    Imagem: Getty Images
  • Muito longe da vida de Neymar

    Em crise, as divisões inferiores do país estão muito distantes da realidade luxuosa que vivem Neymar, Messi e companhia, que chegam a ganhar mais de 20 milhões de euros por ano. Na terceira divisão, os brasileiros que se aventuram não passam de 300 euros por mês.

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Crise e atrasos de salários

    O histórico de abertura para brasileiros é convidativo, mas os clubes do país convivem com uma situação financeira delicada e são comuns os casos de jogadores que não recebem em dia, especialmente no Sul do país.

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Mais rica. E a mais fechada

    É um dos países mais fechados para estrangeiros. Sul-americanos, que costumam ter maior dificuldade de adaptação, são especialmente raros da segunda divisão para baixo (são oito, ao todo). Quem consegue, no entanto, pode levar até 500 libras por semana na quinta divisão (R$ 1,9 mil).

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Estável e rica, mas pouco explorada

    Como a Inglaterra, a França não tem costume de abrir suas divisões inferiores a sul-americanos, embora abrigue muitos africanos. Só que o campeonato é organizado, não atrasa e paga bem. A terceira divisão, por exemplo, chega a distribuir salários de 3 mil euros por mês.

    Imagem: Wikimedia Commons
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Da terceira à primeira divisão: Quando a vida dá certo na Europa

Há um meio-termo entre o fundo do poço e a Cinderela. Quem entra na Europa pelo porão dificilmente vai parar na disputa da Bola de Ouro, mas é possível realizar o sonho. Magno Macedo chegou à Europa em 2005 acreditando que jogaria na primeira divisão do Chipre. Teve de se contentar com a terceira da França, com salários modestos e todas as dificuldades de adaptação características.

Quando se encontrou, foi eleito o melhor goleiro do campeonato e atraiu atenção das equipes B de times médios do país e subiu. Chegou à elite da França pelo Bastia e enfrentou PSG, Lyon, Olympique e companhia em mais um ano pelo Valenciennes. Não se tornou uma estrela, mas teve o gostinho de jogar na elite da Europa e conseguiu a estabilidade sonhada por dez entre dez imigrantes.

Os brasileiros às vezes chegam aqui esperando tapete vermelho e não é assim. Quando a gente joga em divisões não tão altas você tem de ser o melhor. Se não for, por que o clube vai abrir espaço para um estrangeiro em vez de trazer alguém daqui mesmo?”

Quando perdeu espaço no Valenciennes, Magno trocou a vida de reserva na primeira divisão pela titularidade na terceira, onde atua até hoje. Casado com uma francesa, ele mora em Beziers, no Sul da França, tem dois filhos e, aos 33 anos, já estuda educação física para ser preparador de goleiros no futuro. Está vivendo o sonho simples de todos aqueles que um dia entraram em um avião sem saber para que parte da Europa iriam.
 

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