
Muhammad Ali, que morreu neste sábado aos 74 anos, talvez tenha sido o atleta que melhor personificou os dilemas do século 20.
Sua fibra e seu estilo agressivo, sua inteligência e seu carisma excepcional, seu misto de autoconfiança e arrogância, o ajudaram a combater os melhores pugilistas de sua época, assim como as injustiças e os privilégios de classe e de raça que definiram o mundo em que viveu.
Foi um pioneiro dentro e fora das cordas: o primeiro peso pesado a ser tricampeão mundial; o primeiro esportista a alcançar fama global, construída em lutas históricas na África e na Ásia; a primeira personalidade a levantar sua voz e usar seu prestígio contra a guerra e contra o racismo.
“Eu não tenho que ser quem você quer que eu seja”, disse Ali, que mudaria de nome e de religião ao longo da vida. “Eu sou livre para ser quem eu quiser.” Seu exemplo inspirou milhões de jovens negros que, na mesma época e depois, também lutavam para ser quem queriam.
Eu sou os EUA. Eu sou a parte que vocês não reconhecem. Mas se acostumem comigo. Preto, confiante, arrogante; meu nome, não o seu; minha religião, não a sua; meu próprio objetivo. Se acostumem comigo.
Cassius Clay é um nome escravo. Eu não escolhi esse nome, eu não quis esse nome. Eu sou Muhammad Ali, um homem livre, significa "amado por Deus" e eu insisto para que usem esse nome quando falarem comigo.
É só um trabalho. A grama cresce, os pássaros voam, ondas banham a areia... Eu espanco as pessoas.
Eu não tenho nada contra os vietcongues. Nenhum vietnamita jamais me chamou de crioulo.
Muhammad Ali era O Maior, ponto final. Quando você perguntava para ele, ele falava mesmo, claramente. Sua vitória nos ajudou a nos acostumar com a América que reconhecemos hoje. Ele esteve ao lado de Martin Luther King e Nelson Mandela, se levantou nos momentos difíceis e falou quando outros não falavam.
O universo do esporte sofre uma grande perda. Muhammad Ali era meu amigo, meu ídolo, meu herói. Passamos muitos momentos juntos e sempre mantivemos contato todos esses anos
Em uma época em que negros eram vítimas de injustiças e eram chamados de arrogantes e muitas vezes presos, Muhammad sacrificou os melhores anos da sua carreira para lutar pelo que achava certo. Ao fazer isso, fez todos os americanos crescerem, negros e brancos.
Seu estilo era considerado inovador por misturar agilidade, velocidade e força de um jeito nunca antes visto. Ali parecia ciente disso e não cansava de se classificar como o melhor de todos. "Eu sou tão rápido que ontem à noite eu apertei o interruptor do meu quarto e cheguei na cama antes das luzes se apagarem", disse ele certa vez.
Imagem: Getty ImagesEm 1960, no auge da luta dos negros americanos por direitos civis, Ali ganhou a medalha de ouro na Olimpíada de Roma. O relato do feito é primeira menção de seu nome no New York Times, o maior jornal do país. De volta à América, passou a ser chamado de "o crioulo olímpico". Chegou a atirar sua medalha em um rio depois que uma garçonete se recusou a atendê-lo.
Imagem: Central Press/Getty ImagesSua resiliência entre as cordas chamava atenção. Em sua mais famosa luta, contra George Foreman em 74, sabendo que talvez não conseguisse vencer indo pra cima, apanhou pacientemente durante sete rounds e acertou um golpe certeiro no oitavo. Foreman foi à lona e Ali recuperou o cinturão.
Imagem: AFP PHOTOAli antecipou o movimento pacifista dos anos 60 ao se recusar a servir o exército americano na guerra do Vietnã. Por causa da desobediência, foi suspenso do boxe por três anos, durante o período mais importante da carreira. "Por que eles me pedem para por um uniforme e jogar bombas em pessoas mestiças enquanto os que eles chamam de "crioulos" são tratados como cachorros em Louisville?"
Imagem: ReproduçãoO pugilista era um rebelde com causas. Participou de missões pacifistas no Afeganistão e na Coreia do Norte, entregou medicamentos em Cuba furando o embargo americano e foi ao Iraque ajudar a resgatar 15 reféns americanos antes da primeira Guerra do Golfo
Imagem: APPortador do mal de Parkinson por três décadas, Ali se engajou também na busca por uma cura e por tratamentos que pudessem aliviar seus sintomas mais duros. Financiou pesquisas e centros médicos dedicados ao desenvolvimento de remédios. O mundo ficou sabendo de sua doença em 1996, quando ele acendeu a pira olímpica dos Jogos de Atlanta.
Imagem: Getty ImagesNascido Cassius Clay Jr e em berço cristão, o pugilista mudou seu nome e sua religião e fez o mundo tratá-lo do jeito que ele gostaria de ser tratado. Dizia que seu nome antigo não representava o que ele era. Nos EUA, como no Brasil, um escravo em geral herdava o sobrenome de seu senhor. Clay, na visão militante de Ali, representava a opressão sofrida por seus antepassados.
Imagem: APO esporte americano já tinha visto ídolos negros antes de Ali, mas o pugilista foi o primeiro a lutar ativamente pelos direitos civis de uma população explicitamente marginalizada, em uma época em que talvez fosse mais cômodo ficar calado. Em entrevistas, repetia que se achava muito bonito, uma forma de dizer aos negros e negras que a cor de sua pele e seus traços também eram belos.
Imagem: Paul Bereswill/Getty ImagesFrazier foi o grande rival de Ali, e os dois protagonizaram uma das lutas que ficaram conhecidas como "a Luta do Século", em 71. Frazier venceu por decisão unânime dos juízes após 15 rounds. Os dois tiveram uma rivalidade dura e, muitas vezes, desrespeitosa. Ali dizia que Frazier era "um negro a serviço dos brancos".
Imagem: AP Photo/Marty LederhandlerDerrotado por Ali em uma de suas lutas mais célebres, no Zaire, em 1974, Foreman reagiu com ternura à morte do antigo oponente e lembrou do trio formado pelos principais pugilistas do século: "Ali, Frazier e Foreman", escreveu ele no Twitter. "Nós formávamos um só homem. Uma parte de mim foi embora, a melhor parte. Eu o conheci e o amei. Muhammad Ali foi um grande homem, que nunca morrerá."
Imagem: Al Bell/Getty ImagesExiste pelo menos um ponto controverso na personalidade de Ali. Ao mesmo tempo que ele lutava pela igualdade racial, fazia graça com a cor da pele e os traços físico de seu arquirrival, Joe Frazier, negro como ele. Um dos apelidos que Ali lhe deu foi "Gorila". Frazier era tão criticado pelo oponente que disse se sentir discriminado pela própria comunidade negra. Morto em 2011, ele nunca perdoou Ali por isso.
Anos depois de encerrar a carreira, Ali chegou a se desculpar pelos apelidos e provocações a Frazier. Segundo ele, tudo era uma estratégia para promover as lutas.
Em uma entrevista à Playboy americana, em 1975, o boxeador foi questionado sobre como ele gostaria que sua memória fosse lembrada. Reproduzimos sua resposta.
“Eu te digo como eu gostaria de ser lembrado: como um homem negro que ganhou um cinturão de peso-pesado e era bem-humorado e tratava todo mundo bem. Como um homem que nunca desprezou aqueles por quem foi desprezado e ajudou tantas pessoas do seu próprio povo quanto ele podia – financeiramente e também em sua luta por liberdade, justiça e igualdade.
Como um homem que não machucaria a dignidade de seu povo fazendo algo que pudesse envergonhá-los. Um homem que tentou unir seu povo através de sua fé no Islã... [...] E se isso é pedir muito, eu acho que me contentaria em ser lembrado apenas como um grande pugilista campeão que se tornou um pregador e um campeão de seu povo.
E eu não ligaria se o pessoal esquecesse o quão bonito eu fui.”